Introdução
As leituras estão em função da solene veneração a Maria, cultuada no Brasil como padroeira, sob o título de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. O foco, por um lado, é a intercessão; por outro, está o olhar para a sua dignidade como Mãe de Deus e Rainha. As leituras propostas formam um caminho espiritual que apresenta Maria como a nova Eva, intercessora e Mãe da Igreja, cumprindo o papel de “porta de acesso” ao mistério de Jesus Cristo. Os textos, portanto, acrescentam um aspecto da missão da Mãe de Deus e nossa; juntos, revelam o sentido profundo da celebração litúrgica que nos convida a reconhecer e a imitar a missão de fé, esperança e de total entrega de Maria ao plano salvífico de Deus, revelado e concretizado em Jesus Cristo.
- Texto bíblico
1 E, no terceiro dia, aconteceu um casamento em Caná da Galileia, e a mãe de Jesus estava lá. 2 Foi convidado também Jesus ao casamento, com seus discípulos. 3 E, faltando vinho, disse a mãe de Jesus a ele: “Não têm vinho”. 4 E Jesus respondeu-lhe: “Mulher, que há entre mim e ti? Não chegou ainda a minha hora”. 5 Disse sua mãe aos servidores: “O que Ele vos disser, fazei”. 6 Estavam lá seis talhas de pedra, postas para a purificação dos judeus, capazes cada uma de conter duas ou três medidas. 7 Disse-lhes Jesus: “Enchei as talhas de água”. Encheram-nas até a borda. 8 E disse-lhes: “Tirai agora e levai ao mestre-sala”. Eles levaram. 9 O mestre-sala provou a água tornada vinho e não sabia de onde viesse, mas os servidores sabiam, pois eles tinham tirado a água. O mestre-sala chamou o esposo 10 e lhe disse: “Todo homem serve primeiro o vinho bom e, quando estão ébrios, aquele inferior; tu conservaste o vinho bom até agora”. 11 Este foi o princípio dos sinais de Jesus em Caná da Galileia: manifestou a sua glória, e creram nele os seus discípulos.
- Que diz o texto?
O episódio das bodas de Caná da Galileia não tem paralelos nos outros evangelhos e precisa, portanto, ser contextualizado. Se a recepção do batismo pelas mãos de João — no qual se verificaram três sinais: a abertura dos céus, a unção do Espírito e a voz do Pai (Jo 1,29-34) — marca o início do ministério público de Jesus, o episódio das bodas de Caná marca, segundo o entendimento do evangelista, “o início dos sinais de Jesus” em Caná da Galileia, e produziu dois efeitos: “manifestou a sua glória” e “creram nele os seus discípulos”.
A escolha desse episódio não ilustra apenas o papel da Mãe de Jesus em relação ao problema ocorrido nas bodas, mas, principalmente, serve para demonstrar, desde o início, que Jesus é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Assim como o Verbo se fez carne, a água foi transformada em vinho. De igual modo, deve ocorrer a transformação que Deus espera que seja operada no ser humano: passar da morte à vida.
A presença de Jesus, dado cristológico, e a dos discípulos, dado eclesiológico, são reforçadas pelo dado mariológico, pois “a Mãe de Jesus”, isto é, a Theotókos, estava presente e atuante. Pela índole do texto, Jesus e os discípulos foram convidados graças a ela, que vem mencionada por primeiro. Some-se a isso o evento e o local onde tudo acontece: bodas em Caná da Galileia, reforçando, ainda mais, a união hipostática que existe em Jesus — união inseparável das duas naturezas, a divina que assume a humana — e atestando a profunda aliança e sua significação vinculante com a Igreja, que é seu Corpo Místico e sua Esposa Mística sob a figura de Maria.
O ponto de partida é a participação de Maria, de Jesus e dos discípulos nas bodas, marcada pela falta de vinho — um problema ou uma grande necessidade que deixaria marcas profundas na vida dos cônjuges e de toda a família. É preciso lembrar que, na época, as bodas podiam durar de uma a duas semanas (Tb 8,19-20); não podia faltar comida e, muito menos, o vinho que “alegra o coração do ser humano” (Sl 104,15). Visto que as bodas de Caná simbolizam a antiga aliança, a falta de vinho aponta para a sua imperfeição a ser superada.
Nota-se que, intencionalmente, o evangelista quis acentuar um protagonismo da Mãe de Jesus, tomando uma iniciativa que, para muito além da situação, provocou uma ação de Jesus, consciente de que sua “hora ainda não chegou”. Com isso, o evangelista determina os dois momentos participativos da Mãe de Jesus, nunca mencionada pelo nome: no início, nessas bodas; e, no fim, diante de seu Filho crucificado (Jo 19,25-27).
Nos dois momentos, Jesus se dirige à sua Mãe chamando-a de “mulher”. Nesta palavra, ainda que esteja escrita em grego no vocativo (γύναι), ecoa o aramaico ’ittā’, correspondente ao hebraico ’ishâ. É a mesma palavra com a qual o primeiro homem chamou a primeira mulher (Gn 2,23). É a nova criação que corresponde, de igual modo, à redenção anunciada em Gn 3,15. Assim como a primeira mulher, Eva, recebeu sua carne do primeiro homem, Adão (Gn 2,21), o Verbo-Jesus, novo Adão, recebeu a sua carne de Maria, a nova Eva, Virgem e Imaculada. Ao contrário de Eva, por Maria nos veio o Salvador que nos impede de sermos excluídos do Reino de Deus — o Éden renovado na obediência e no amor. Maria é consagrada como modelo para toda a Igreja, que é chamada a ser virgem-mãe e fecunda de filhos renovados em Jesus Cristo, seu único Esposo e Senhor (Ef 5,32).
A resposta de Jesus à sua Mãe não foi nem um “não” nem um “sim”. Deve-se acentuar que a Mãe de Jesus apenas constatou e relatou uma situação: “Não têm vinho”. Nada pediu. Ela é sinal do povo eleito que, com confiança, expressa ao seu Deus a sua penúria e, nesta, o desejo de que o necessário nunca falte.
Para Jesus, bastou perceber a obediência dos que serviam em relação à ordem de sua Mãe, pois foram além do que lhes ordenou — encheram as talhas de pedra até a borda, sinal de generosidade na resposta —, e a água mudou-se em vinho. A resposta adequada, ensinada pela Mãe de Jesus aos que serviam, indica a ação adequada diante da vontade de Jesus no Calvário, tornando-a Mãe da Igreja e, portanto, nossa Mãe.
Não se percebe, com clareza, se o conteúdo da fala do mestre-sala ao esposo é uma reprovação ou um elogio. Por certo, afirma-se que a inversão no protocolo podia acontecer: se todo mundo faz de uma forma, nada impede de se inverter a ordem: “Tu conservaste o vinho bom até agora”. É o momento transformador, pois Jesus fez entrever, pelo sinal que realizou, o que a sua “hora” é e pode realizar na vida do ser humano.
Jesus é o vinho novo que assumiu a tarefa de preparar os odres novos e cheios, isto é, os discípulos que, a exemplo de Maria, aprenderão a contê-lo pela fé: mudando a mentalidade, muda-se o comportamento. Assim como a Mãe de Jesus suscitou nele a adesão pela necessidade dos cônjuges, Jesus, pelo sinal realizado, suscitou nos seus discípulos a fé necessária para ver a própria vida transformada. Na hora da cruz, as núpcias de Jesus com a sua Esposa, a Igreja, se realizam. Nesse sentido, a Mãe de Jesus, nas bodas de Caná da Galileia, é símbolo da ruptura com a esperança meramente humana e sinal da consumação do amor que redime a humanidade.
- Que propostas o texto faz?
Se, por um lado, somos interpelados a acompanhar as cenas que se sucedem com grande atenção, por outro lado, cada cena aponta para um dado essencial da nossa fé focada em Jesus e participada intensamente por Maria, a fim de servir de exemplo para os discípulos. Com Maria, se aprende a interpelar Jesus e a ouvi-lo.
A experiência das bodas em Caná da Galileia renova o “sim” de Maria na ordem que deu aos que serviam: “O que Ele vos disser, fazei”. A experiência da fé de Maria, que proporcionou a encarnação de seu Unigênito Filho — “Faça-se em mim conforme a tua palavra” (Lc 1,38) —, aponta para a obediência que seus discípulos são chamados a ter: o “sim” que só serve se for para servir. Na ordem da Mãe de Jesus aos servos reside a direção que todo discípulo precisa tomar em relação à nova aliança. O que os servos fizeram concretiza, de fato, o que os filhos de Israel disseram a Deus na aliança do Sinai: “Tudo o que disse o Senhor, nós o faremos” (Ex 19,8; 24,7).
A maravilha da quantidade e da qualidade do bom vinho não pode passar despercebida. Ela indica a intenção de Deus para a renovação da humanidade: contemplar Jesus e aceitá-lo como o vinho novo da vida a ser colocado em odres novos. Como doou vinho bom e abundante nas bodas, Ele nos doa vida e alegria. Nota-se, igualmente, a mudança de serventia: se as jarras eram destinadas à purificação, após a realização do sinal passaram a servir para conter o vinho novo. É símbolo da humanidade purificada e convertida no amor.
O bem da salvação, que só Jesus pode dar aos seres humanos chamados à aliança com Deus na forma das bodas (Jr 2,2; Os 2,16-22), supera todos os bens terrenos e sacia as aspirações mais profundas, que parecem atestar a falta do necessário. Tal afirmação faz lembrar as palavras de Jesus em Jo 6,35: “Quem vem a mim não terá mais fome e quem crê em mim não terá mais sede”. Sob a atuação de Maria, cada um de nós deve aprender a imitá-la na fé, na intercessão e na colaboração com o plano salvífico de Deus em Jesus Cristo.
- Que o texto faz dizer a Deus em oração?
Senhor Jesus, no início da vossa missão, percebemos que a vossa atenção estava voltada para suscitar a fé dos discípulos. Para nós, é importante acolher o lugar e o papel que a vossa Mãe ocupou no episódio das bodas de Caná da Galileia. Ela soube se aproximar de Vós e igualmente soube se aproximar dos que serviam. Ensinai-nos a ser como ela: atentos às necessidades de nossos irmãos e irmãs, sem abdicar do que nos compete fazer para que a transformação aconteça em nossas vidas. Que a docilidade e a obediência ao Espírito Santo nos façam participar de cada celebração eucarística na certeza de que a audição da vossa Palavra e a manducação das espécies consagradas não são privilégios, mas resposta pessoal à graça que de Vós recebemos para a honra e glória de Deus Pai. Como brasileiros e povo de fé, humildemente vos pedimos que nossa devoção à vossa Mãe não seja um mero sentimento, mas um compromisso com a vossa Igreja em nosso país, revelando a devida atenção que nos leva à ação preferencial pelos mais empobrecidos. Vós, que sois Deus, viveis e reinais com Deus Pai, na unidade do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amém.
- Que decisões o texto leva a tomar?
Tudo é possível para aquele que crê. Nesse sentido, a fé é a ação que precede a transformação da água em vinho. Não à toa, o evangelista atesta: “Este foi o princípio dos sinais de Jesus em Caná da Galileia, manifestou a sua glória, e creram nele os seus discípulos”. A opção da Mãe de Jesus, em apresentar a situação, deve ser também a nossa opção: a sua fé impulsiona a nossa fé e nos faz confiar em Jesus com a mesma entrega.
A fé não busca o milagre, mas proporciona a sua realização. O milagre não é o fim, mas o meio para que a fé se deixe orientar ao que realmente conta: a paixão e morte de cruz como glorificação de Jesus em nossa vida. Na sua exaltação, somos igualmente exaltados. Só pela fé podemos contemplar e abraçar o amor de Deus revelado e, como a Mãe de Jesus, permanecer de pé pela fé. O que se espera de nós: crer como Maria.
Assim como em Jesus se realizam as núpcias eternas de Deus com a humanidade, pela Mãe de Deus e nossa, essas núpcias denotam fecundidade e obediência. Nesse sentido, a imagem das bodas se transforma em símbolo das novas bodas de Jesus, Esposo, com toda a humanidade redimida, a Esposa, simbolizada em sua Mãe e em seus discípulos. O vinho bom aponta para a nova aliança no sangue de Jesus, versado na cruz.
Apreciar a cena das bodas de Caná da Galileia nos impulsiona a perceber e a compreender a manifestação de Deus em cada liturgia que celebramos, na qual participamos do banquete que nos prepara e antecipa as núpcias eternas na Jerusalém Celestial. Esta se torna a Esposa que o Cordeiro Imolado apresenta, santa e imaculada, diante de Deus sentado em seu trono de glória (Ap 21,1–22,5).
- Relação entre Jo 2,1-11 e Est 5,1b-2; 7,2b-3; Sl 44(45); Ap 12,1.5.13a.15-16a.
Em nível simbólico, Ester e Maria intervieram diante de seus reis e representam a passagem do antigo Israel, em sua deficiência e em seu desejo de uma festa que não conheça mais as faltas e as insuficiências, para o novo povo de Deus, consagrado a não se deixar levar pela ganância e por qualquer forma de intolerância. Assim como Ester encontrou graça aos olhos de seu rei e esposo, a Mãe de Jesus encontrou graça e favor diante do Rei dos reis.
O papel de ambas está na linha salvífica. Ester, diante da porta do rei, seu esposo, está para a Mãe de Jesus diante da entrada em ação de seu Filho. Ester e Maria reconhecem a necessidade do ser humano e se apresentam em busca de solução. Ambas são “servas”, mas de senhores distintos. A identidade comum, como servas, sublinha que não agem por iniciativa própria, mas em resposta ao chamado de Deus, que as caracteriza na obediência.
Essa é a beleza que ultrapassa os sinais visíveis e entoados no Salmo. O maior encanto que o esposo pode ter pela esposa não está no externo ou nos adornos, mas no interno, que o faz exultar de alegria. Isto, porém, não impede nem anula as tribulações que a beleza da fé expressa nas mulheres virtuosas que vieram antes de Maria e, principalmente, na vida da humilde serva do Senhor, que se tornou imagem da serva-Igreja, que, nas tribulações sofridas por amor a Jesus, seu divino Esposo, aprende a confiar na sua presença previdente e providente.
Considerações finais
A Igreja caminha pelas estradas deste mundo, sempre com fé e renovada esperança, que a faz viver e atuar com caridade, rumo às suas bodas definitivas na eternidade com seu divino Esposo, Jesus Cristo, nosso Senhor. Não obstante isso, em muitos de seus filhos e filhas que se deixam abater pelas vicissitudes da vida, pode faltar o vinho novo da alegria e do amor esponsal. A certeza de que a Mãe de Deus não apenas estava nas bodas de Caná, mas estava muito atenta a tudo o que acontecia, ao mesmo tempo em que nos consola, aponta-nos o caminho a percorrer em nosso cotidiano: confiar em Jesus, seu Filho, que é capaz de suprir todas as nossas necessidades abundantemente. Se a sua intercessão não substitui a única mediação de Jesus Cristo, a Ele nos dirige, revelando o que a obediência da fé pode alcançar em meio às tribulações da vida. Que nossas intenções, opções e tomadas de decisão estejam pautadas no serviço, a exemplo da Mãe de Deus e nossa.
Padre Leonardo Agostini Fernandes
Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá – RJ
Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio