Introdução
Em um mundo marcado pelo ódio, secularismo, anticlericalismo, por crises sociais e por uma grande pobreza, que se sucederam à Primeira Guerra Mundial, afirmar a soberania de Jesus Cristo era uma forma de responder a tais males, por ocasião da conclusão do Ano Santo Jubilar em 1925, quando Pio XI instituiu a Festa. Associado a isso, estava o grande incentivo ao apostolado leigo, a fim de incrementar no mundo a obediência a Jesus Cristo como Rei dos corações e das mentes, alcançando assim a todas as nações. O que impacta, nesta solenidade, não é Nosso Senhor sentado sobre um trono, com cetro e coroa de ouro, mas escarnecido e crucificado, mostrando ao mundo inteiro que a verdadeira felicidade e liberdade se revelam na obediência a Deus e à sua vontade, sinal de que o amor a Deus e ao próximo testemunha o triunfo da fé no seu reinado.
- Texto
35 O povo estava olhando, enquanto os chefes zombavam, dizendo: “A outros salvou; salve a si mesmo, se este é o Cristo de Deus, o Eleito.” 36 E também os soldados zombavam dele, aproximando-se, oferecendo-lhe vinagre 37 e dizendo: “Se tu és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo.” 38 E sobre ele havia uma inscrição: Este é o rei dos judeus. 39 Um dos malfeitores suspensos blasfemava contra ele, dizendo: “Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós.” 40 Mas o outro, respondendo e repreendendo-o, dizia: “Nem tu temes a Deus, estando nós sob a mesma sentença? 41 Nós estamos recebendo o que é justo pelas coisas indignas que praticamos, mas este nada fez que fosse digno de reprovação.” 42 E dizia: “Jesus, recorda-te de mim quando entrares no teu reinado.” 43 E [Jesus] lhe disse: “Amém, a ti digo: hoje estarás comigo no paraíso”.
- Que diz o texto?
O relato é breve, mas muito “movimentado” pela participação de várias personagens. Nota-se, porém, que a dinâmica é mostrar que a fala do malfeitor arrependido não se contrapõe apenas à do outro malfeitor, mas fortemente ao que disseram os líderes e os soldados, bem como ao povo que simplesmente olhava. Há em comum à fala dos líderes, dos soldados e do malfeitor a provocação para que Jesus salve-se a si mesmo. A metodologia empregada pelo evangelista é a do contraste entre os injustos, que deveriam ser os sentenciados de morte, e o inocente Jesus, que está crucificado pelo que falou e fez, realizando a vontade de Deus. Contudo, existem particulares na fala dos provocadores.
Os líderes do povo são judeus, por isso afirmam a relação entre “Cristo” e “Eleito”. O uso do pronome “este”, que não deveria ser omitido nas traduções, revela identificação, pois, por certo, precisavam diferenciar Jesus dos demais condenados ao suplício da cruz.
Já na fala dos soldados está o suposto “crime” civil que Jesus teria cometido e que o sentenciou de morte: “rei dos judeus”, pois apenas César era considerado rei (Jo 19,15). Foi o delito do qual acusaram Jesus diante de Pilatos, de ser um subversivo, impedindo que o povo pagasse impostos a César e de pretender ser o Messias Rei (Lc 23,2), “crime” confirmado pela inscrição sobre a cruz: “Este é o rei dos judeus”.
Enfim, o malfeitor, por ser provavelmente um judeu, retoma o título “Cristo” e o apelo salvífico; agora, porém, não só em relação a Jesus, mas também em relação a ele e ao outro sentenciado de morte de cruz: “Salva-te a ti mesmo e a nós”. A inclusão do “e a nós” teria forte conotação de um apelo à compaixão, algo que sempre moveu Jesus em seu ministério público. Jesus, porém, não cedeu, pois não foi um apelo sincero.
Visto de maneira rude, a injustiça que Jesus está vivendo é terrível porque a sua última hora parece se tornar a hora dos seus inimigos, a hora do triunfo do maligno. As três injúrias feitas a Jesus pelos líderes, pelos soldados e pelo malfeitor evocam as três tentações que se encontram no início do ministério público de Jesus.
Nessas três posturas, o evangelista busca concretizar o detalhe que ficou em suspense após o diabo ter deixado Jesus nas tentações: “e, tendo esgotado toda tentação, o diabo se afastou até o tempo oportuno” (Lc 4,13). Se, no início do ministério público, em uma situação de morte por estar sofrendo privações no deserto, o diabo não conseguiu subverter a opção de Jesus por fazer a vontade de Deus Pai, a sua última cartada foi, na real situação de morte de Jesus e de um suposto abandono de Deus, propor que usasse a sua unção messiânica para se livrar da morte. Nenhum espetáculo seria maior do que esse, pois “confirmaria” a fala dos líderes, dos soldados e do malfeitor impiedoso. Jesus, centrado em Deus, não cedeu à “última tentação”.
A grande contraposição se encontra na fala do malfeitor arrependido, apelando para o princípio da sabedoria: “Nem tu temes a Deus”. Por isso, as suas palavras estão repletas de bom senso sobre o que fala a respeito dele e do outro sentenciado, mas, principalmente, a respeito de Jesus: “este nada fez que fosse digno de reprovação”. A fala do malfeitor arrependido compara-se à fala de um advogado de defesa. Ao lado disso, a palavra que dirigiu a Jesus ecoa a oração do fiel dirigida a Deus em vários Salmos. É o que se encontra por detrás do “recorda-te de mim” (Sl 25,6-7; 79,8-9; 89,47-50; 106,4). É uma sincera súplica por misericórdia.
Note-se que, enquanto os malfeitores são punidos pelo mal que fizeram, Jesus era assassinado, pois nenhum mal havia cometido que lhe merecesse a morte. Por um lado, a fala do malfeitor arrependido permite dizer que, em suas palavras, se encontra uma síntese da obra messiânica de Jesus. Por outro lado, nelas ecoam as palavras de Pilatos frente às acusações que lhe foram apresentadas: “Não encontro nesse homem motivo algum de condenação” (Lc 23,4.14); “Que mal este homem fez?” (Lc 23,22). Essas três falas de Pilatos são mais do que suficientes para a declaração: “É inocente”. Não obstante isso, foi sentenciado de morte.
Todavia, o desfecho favorável para o malfeitor arrependido atesta não apenas que a oração sincera foi atendida, mas que está de acordo com o sentido da morte de Jesus: a salvação para todo aquele que nele crê (At 4,12; 10,43; 13,38-39; 16,31), pois por Ele se é justificado (Rm 1,16-17; 3,21-26; 10,9-13; Gl 2,16 etc.).
O “amém” da resposta de Jesus confirma as palavras do malfeitor arrependido, pois significa: “é isso mesmo” ou “é verdade o que dizes”. A revelação que fez, “hoje estarás comigo no paraíso”, além de aludir a um dado da fé judaica de que “ao justo cabe a bênção” (Dt 28,1-4; Sl 1,1-3; 5,13; Pr 10,6), revela a maior e a melhor medicina para o momento, pois não é só uma promessa, mas um veredito dado pelo sentenciado de morte, como eles, que, na verdade, ali crucificado é o justo juiz da misericórdia infinita de Deus.
No “hoje”, usado por Jesus, encontra-se consolo para o suplício que se estava vivendo, mas também a superação de um desejo. A afirmação de Jesus, quanto ao paraíso, parece evocar Gn 2,4b-25, quando o ser humano vivia no Jardim de Éden, mas também a concessão ao acesso que fora vetado (Gn 3,22-24), pois o malfeitor arrependido fez exatamente o contrário de Adão e Eva: reconheceu seus pecados e suas culpas.
Jesus, suspenso sobre o madeiro, é, ao mesmo tempo, o fruto e a “árvore da vida” do Jardim de Éden. Por suas palavras, na declaração do “hoje”, concedeu ao malfeitor arrependido a entrada na vida eterna. Com isso, atesta-se que, entre os judeus da época, não existia somente a crença no sheol após a morte, mas a esperança de se regressar ao paraíso que, no Novo Testamento, só é citado em 2Cor 12,4 e Ap 2,7.
Por último, entendo frisar a dimensão régia de Jesus. A primeira aparece no sarcasmo dos soldados (v. 37). A segunda, na referência à inscrição posta sobre a cruz (v. 38). E a terceira, na declaração do malfeitor arrependido (v. 42). Enquanto a primeira e a segunda enfatizam que Jesus é “rei” (βασιλεύς), a terceira pode ser traduzida tanto por “reino” como por “reinado” (βασιλεία), enfatizando o sentido que exerce por ser “rei”. A história da monarquia de Israel, bem como a de todos os povos circunvizinhos, atesta que são os súditos que morrem pelo rei. Com Jesus deu-se o contrário: é o Rei Universal que dá a sua vida e morre por seus súditos.
- Que propostas o texto faz ao leitor?
Diante dos olhos, pela leitura, e dos ouvidos, pela audição, não temos um “quadro”, mas atores. Por isso, o grande número de personagens nesse breve relato. É um recurso eficaz, usado pelo evangelista para nos provocar, a fim de que cada um de nós reveja as próprias posturas em relação a Jesus e à sua Boa Nova.
Por um lado, estão os líderes, soldados e o malfeitor egoísta, pretendendo que Jesus use a sua unção para demonstrar que não é um mero ser humano, mas o Cristo Rei, confirmando a inscrição que foi colocada sobre a cruz. Por outro lado, está o malfeitor arrependido, que assume seus erros, “pede perdão” e faz uma oração sincera: “Jesus, recorda-te de mim quando entrares no teu reinado”. De que lado queremos estar? Em nossas orações, queremos que Jesus demonstre o seu poder ou o reconhecemos Senhor na sua humilhação?
Com Jesus crucificado, são superadas todas as supostas realidades salvíficas que, na história, foram assumidas pelo ser humano, pautadas em carismas pessoais ou no mero poder autoritário. Jesus, ao contrário, pôs a sua autoridade, fruto da sua divina Pessoa e da sua unção messiânica, a serviço do ser humano, em particular dos mais fracos e necessitados, usando dessa prerrogativa até o último ato de sua vida. Estamos dispostos a morrer com Jesus Cristo para vivermos com Ele em sua glória? Ou queremos o reino deste mundo, pela glória que se busca na religião, em detrimento da eternidade sob o seu reinado já vivido no aqui e agora?
A vida e a obra de Jesus não foram uma manifestação de violência, mas de total disponibilidade para realizar o plano salvífico de Deus, libertando o ser humano da escravidão do pecado e do domínio da morte. Esse domínio, porém, deve ter início em cada um de nós, abandonando as injustiças, as formas de opressão e de violência. A opção pelo reinado de Deus não descarta a cruz, mas a entende não como fraqueza, e sim como destruição do domínio do mal. Consideramos Jesus um perigo para o domínio das potências do mal, sob as quais muitos de nós ainda estamos prisioneiros pelo egoísmo, egocentrismo e individualismo, ou nos colocamos sob o seu reinado, que nos liberta e nos salva desses males que só se apoiam no poder injusto?
- Que o texto faz dizer a Deus em oração?
Senhor nosso Deus, concede-nos a graça de nos colocarmos ao vosso serviço como o vosso Filho Jesus, reconhecendo e aceitando-o como Senhor e modelo de humanidade transformada no amor. Que possamos perceber a vossa presença em todos os momentos de nossa vida, em particular nas adversidades e situações de morte. Que tudo, em nós, esteja submetido ao seu domínio e ao seu Nome, que está acima de todo nome, a fim de que nada nem ninguém nos separe do vosso amor bondoso e misericordioso. Assim, com confiança filial, saibamos viver com fé, esperança e caridade, a fim de que, ao longo da nossa vida e principalmente na hora de nossa morte, experimentemos a vitória redentora que nos mereceu o vosso Filho encarnado. A unção do vosso Espírito Santo nos revista de bondade e que, na terra, a infidelidade ceda lugar à fidelidade, a injustiça à justiça, a maldade à bondade, a mentira à verdade e o egoísmo ao amor. Fiéis às vossas promessas, realizadas na nova aliança pelo sangue redentor de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, o mundo seja irrigado e fecundado de paz e fraternidade. Vós, que sois Deus Uno e Trino pelos séculos dos séculos. Amém.
- Que decisões o texto leva o leitor a tomar?
Se, por um lado, a solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, tem uma terminologia e um espírito que provêm de uma mentalidade triunfalista, elementos que precisam ser superados por quem professa a fé cristã; por outro lado, não devem obscurecer o sentido e o significado profundos que ainda são válidos para qualquer época e lugar: o senhorio de Jesus Cristo em nossas vidas é um reinado que nos faz perceber e compreender que a verdadeira felicidade consiste em obedecer a Deus e fazer a sua vontade.
O poder que Jesus Cristo exerceu com autoridade salvífica e que recebeu em plenitude por sua morte e ressurreição sobre a realidade existente, em particular sobre o ser humano, é libertador, dom de uma graça interior que nos permite viver as bem-aventuranças no mundo sob a inspiração e condução do seu Espírito Santo. Damos testemunho de que Jesus Cristo é nosso Rei na medida em que a sua palavra e as suas ações se encarnam na nossa vida, promovendo a nossa libertação e nos tornando agentes libertadores de todas as formas de opressão que escravizam o nosso próximo, em particular o mais necessitado.
- Que relações existem entre Lc 23,35-43 com 2Sm 5,1-3; Sl 121(122); Cl 1,12-20?
Se a necessidade de um rei levou os filhos de Israel a pedi-lo ao profeta Samuel, a eleição e a unção de Davi por parte de Deus prefiguravam a realeza que seria instaurada em Jesus Cristo. O reconhecimento da realeza de Davi pelas tribos do Israel Norte atesta que a unidade do povo é expressão do amor de Deus, mas este alcançou a sua plenitude em Jesus Cristo, nosso Bom Pastor, que deu a sua vida pelo seu rebanho, concretizando, de igual modo, a profecia de Ez 34. Um pastoreio que foi além dos confins do povo eleito.
Se o Sl 121(122) canta a alegria do peregrino que decide fazer a viagem rumo a Jerusalém para estar na casa do Senhor, onde encontrava “a sede da justiça” e “o trono de Davi”, Paulo, por sua vez, foi muito além da ação das tribos de Israel e do orante ao exprimir a presença eterna de Cristo na criação de todas as coisas. Só por isso o seu domínio já é universal, mas era necessário não apenas extrair o ser humano do domínio do pecado e da morte; era fundamental reconciliar o ser humano com Deus pela redenção e perdão dos pecados. Nesse sentido, a criação, pela redenção em Jesus Cristo, foi reunificada, pacificada e seu domínio estabelecido.
Considerações finais
Se a glória e o esplendor de Jesus Cristo não se fizerem visíveis no povo que se diz cristão, como o restante da humanidade acreditará na sua divina realeza? Nosso Senhor deixou-nos o caminho a seguir: assumir o seu projeto messiânico declarado na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18-19), executado por suas palavras e ações, deixado como critério de identificação com Ele (Mt 25,35-46) e consolidado em seu mistério pascal. Por isso, o reinado de Jesus Cristo não se confunde com alguma forma de poder político; é exercício de cidadania, pela qual o cristão, assumindo o seu papel na sociedade, não se deixa levar pela corrupção, mas busca promover os valores humanos com base na liberdade restaurada pelo mistério pascal. Tomemos consciência de que o domínio de Jesus Cristo sobre a história se revela, sobretudo, na nossa pessoal adesão de fé ao seu reinado, sinal de esperança de que as obras de caridade possuem a força de modificar a realidade socioeclesial.
Padre Leonardo Agostini Fernandes
Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá-RJ
Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio