Introdução
Entre o final do evangelho da infância (Mt 2,19-23) e o momento em que João iniciou a sua missão transcorreram cerca de trinta anos. Contudo, a intenção do evangelista é clara: apresentar João como precursor de Jesus, estabelecendo um paralelo a fim de declarar as funções próprias de cada um e, com isso, elucidar o centro que diferencia a missão dos dois. Como em João se concretizava a palavra de Isaías, de igual modo, em Jesus se concretizavam as palavras de João. Nessa dinâmica, as palavras de Jesus devem se concretizar em cada um de nós pelo serviço e no amor pelo próximo. É o Reino dos Céus já sobre a terra!
Texto bíblico
1Naqueles dias, apareceu João, o batizador, pregando no deserto da Judeia, 2dizendo: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”. 3Ele é aquele que foi anunciado pelo profeta Isaías quando disse: “Voz de um que grita: ‘No deserto, preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas!’”. 4João endossava uma veste de pele de camelo e um cinto de pele em torno da cintura; o seu alimento eram gafanhotos e mel silvestre. 5Então, acorriam a ele de Jerusalém, de toda a Judeia e das proximidades do Jordão; 6e, confessando os seus pecados, faziam-se batizar por ele no rio Jordão. 7Ao ver, porém, muitos fariseus e saduceus virem ao seu batismo, disse-lhes: “Raça de víboras! Quem vos sugeriu afastar-vos da ira iminente? 8Fazei, portanto, frutos de conversão, 9e não acrediteis que basta dizer: ‘Temos Abraão por pai’. Eu vos digo que Deus pode suscitar filhos de Abraão destas pedras. 10O machado já foi posto à raiz das árvores: toda árvore que não produz bons frutos será cortada e jogada ao fogo. 11Eu vos batizo com água para a conversão; mas aquele que vem depois de mim é mais potente do que eu e não sou digno sequer de tirar-lhe as sandálias. Ele vos batizará no Espírito Santo e no fogo. 12Ele tem a pá nas mãos, limpará a sua eira e recolherá o grão no celeiro, mas queimará a palha em um fogo inextinguível”.
Que diz o texto?
Nos vv. 1-3 se fala de quem: João; de onde: deserto da Judeia; e do que faz: é batizador; ação seguida de um chamado: “Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo”. A pregação de João é como orvalho sobre o deserto: uma metáfora para se falar dos corações e das mentes áridos pelo endurecimento do pecado.
A ação de João e o que estava fazendo são apresentados como cumprimento profético da palavra do profeta Isaías, contida em Is 40,3. Existem duas possibilidades de tradução: “Voz de um que grita no deserto”; ou “Voz de um que grita: ‘No deserto…’”. Em ambas, o local da pregação é o deserto, tanto como lugar quanto como condição dos seus ouvintes. O deserto possui um forte significado teológico, pois dele viria a salvação. Talvez por isso o alerta que Jesus fez em Mt 24,26: “Se, então, vos disserem: ‘Ei-lo no deserto’, não vades até lá”.
A pregação de João é breve, chama à conversão, isto é, a uma mudança de mentalidade, sem a qual não ocorre a mudança de comportamento. Essa ação não tem seu ponto de partida no ser humano, mas em Deus, que move a mente e o coração da pessoa; pressuposto para se experimentar a salvação. A proximidade do Reino dos Céus é o elemento motivador. A locução “Reino dos Céus”, ao invés de “Reino de Deus”, reflete o uso religioso, no qual o nome divino, por respeito, é substituído por uma perífrase. O plural, “céus”, é explicável pela cosmologia da época, segundo a qual os céus eram concêntricos e Deus habitava o sétimo céu.
De acordo com o Antigo Testamento, o senhorio de Deus não é oculto, pois foi revelado; mas somente no fim dos tempos se manifestaria em plenitude. Nesse sentido, João Batista pertence à nova etapa na qual o triunfo de Deus se realiza no envio do Messias. É a chegada do “dia do Senhor”, que Malaquias anunciou: Elias deveria retornar para fazer o coração dos pais se voltar para os filhos e o coração dos filhos para os pais (Ml 3,23-24): metáfora da conversão familiar. João Batista, porém, é um homem que vem do deserto ao encontro da aridez da mente e dos corações de seus ouvintes. Nesse sentido, nele se concretiza a profecia de Malaquias.
É assim que o caminho do Senhor é preparado e as vias, endireitadas; isto é, João Batista age como um arauto que precede e prepara a chegada do seu soberano nos territórios que lhe pertencem. Jesus, ao iniciar a sua missão, também irá proclamar o mesmo anúncio: “Convertei-vos, porque está próximo o Reino dos Céus” (Mt 4,17). Percebe-se a intenção de fazer os anúncios coincidirem, mas sem concorrerem entre os anunciadores.
O evangelista, após dizer quem era João e o que estava fazendo, nos vv. 4-7 apresenta as credenciais dele: a austeridade na vestimenta e na alimentação é compatível com o deserto do qual procede e para o qual endereça a sua mensagem. Por meio da austeridade assumida por João, opção por uma vida ascética, se pode contemplar a mudança de mentalidade e de comportamento que a sua palavra queria provocar. De fato, chamou a atenção: João tornou-se público e notório na região da Judeia. É preciso, porém, levar em conta que se, de fato, houve um fluxo tão grande de pessoas, isso teria despertado a atenção dos romanos, que teriam procurado debelar tal movimento. A presença de fariseus e saduceus poderia ser um sinal de que, de Jerusalém, foram enviados os “homens da lei mosaica” para averiguar os riscos de uma insurreição do povo.
A ligação entre confissão dos pecados e batismo no Jordão, no contexto das escassas circunstâncias de água na região, evocava a necessária higiene do corpo e da limpeza de utensílios. Essa percepção permite dizer o quanto os judeus tinham a convicção de que a purificação evitava doenças e, por sua vez, a morte. Com isso, a confissão pública dos pecados, resposta ao apelo divino feito por meio do profeta, e a imersão no Jordão se tornam atos purificadores em vista da salvação prometida por Deus com a chegada do seu Messias.
Note-se que não se especifica a localidade onde João estaria imergindo as pessoas que vinham a ele. A referência “proximidades do Jordão” é muito genérica. Para realizar a imersão, eram necessários trechos com mais profundidade. Em Jo 1,28 se fala de Betânia, além do Jordão. Já em Jo 3,23 se fala que João também batizava em Enom, perto de Salim, porque as águas eram abundantes.
Fariseus e saduceus eram os dois segmentos mais influentes do judaísmo na época; serão os típicos adversários de Jesus e do seu ministério público. Enquanto o movimento farisaico era formado por leigos que se preparavam para o futuro juízo de Deus por meio de uma rígida conduta de vida, os saduceus formavam a nobreza sacerdotal que liderava Jerusalém e exercitava grande influência no Sinédrio, chefiado pelo sumo sacerdote. Por isso, como dito acima, causa certa estranheza que viessem até João para serem batizados.
As duras palavras que João dirigiu aos fariseus e saduceus estão na direção de uma ofensa declarada pelo mal que praticavam revestido de piedade. A mesma declaração fez Jesus (Mt 12,34; 23,33). Diante dessas lideranças, sejam laicas, sejam sacerdotais, João, pela pergunta, mostra tanto a ironia como a maravilha diante de adversários que acreditavam que conseguiriam se livrar do juízo de Deus. Como, pela sedução da serpente, nossos progenitores foram expulsos do Jardim de Éden e ela foi julgada por Deus, de igual modo fariseus e saduceus, a “raça de víboras”, como que descendentes da antiga serpente, escondidos na falsa religiosidade, também enfrentarão o juízo de Deus. A saída para a ira divina é praticar frutos de conversão. João sabia que o batismo que praticava não podia salvar, mas era uma oportunidade para se voltar a obedecer a Deus.
Ser descendência de Abraão não é um privilégio, mas uma responsabilidade que empenha os que se consideram filhos a terem a mesma obediência que o patriarca teve diante de Deus. Em hebraico, “pedras” (’avānîm) e “filhos” (bānîm) são palavras assonânticas; talvez disso resulte a afirmação de João. Mais do que a onipotência de Deus, João estava enfatizando a liberdade soberana de Deus fazer o que quer. A descendência de Abraão é bendita se procura ser uma bênção para as pessoas; isto é, se age pela fé em Deus que justifica.
A imagem do machado colocado à raiz das árvores indica que o tempo para a conversão é breve e que Deus decidiu manifestar o seu juízo. As que dão bons frutos não são cortadas, mas podadas para que produzam ainda mais (Jo 15,2.6). Já as que não dão bons frutos são cortadas, para não continuarem inutilizando a terra (Lc 13,6-9). Não se fala do tipo de árvore, mas pode-se pensar na vinha como em Is 5,1-7 que, ao invés de ser arrancada para servir de pasto, será cortada e jogada ao fogo. Árvore no singular aponta para o juízo individual.
Ser filho de Abraão não salva do juízo de Deus, nem mesmo o batismo de João; por isso deixou bem claro o propósito: “para a conversão”. Quem salva é “aquele que vem depois de mim”. A referência à indignidade de “tirar-lhe as sandálias” coloca João como o último servidor do Messias do Antigo Testamento, pois não era um concorrente de Jesus. À diferença do fogo do juízo de Deus, o Messias batizará no Espírito Santo e no fogo: ação que destrói a iniquidade e a desobediência, dando lugar à justiça da fé que produz obediência no batizado.
À diferença do batismo de João, feito na água, que apenas tocava na superfície, o batismo do Messias é uma recriação interna pelo sopro renovador do Espírito Santo. É o dom dos últimos tempos, que transforma os corações, pois realiza a justiça de Deus, assumindo um comportamento condizente com a sua vontade. Nesse sentido, o uso do fogo não tem a função de eliminação da pessoa, mas de purificação e de separação.
Enfim, o procedimento que ocorre com a messe acrescenta sentido ao da árvore. Enquanto o grão vai para o celeiro, símbolo do céu, a palha vai para o fogo inextinguível, símbolo do inferno. Para João, aquele que vem depois dele é o realizador da justiça de Deus. É uma boa notícia, pois chancela o anúncio que fez da proximidade do Reino dos Céus, no qual o Espírito suscitará um povo renovado pelo Messias, ao qual ele prepara.
Que propostas o texto faz?
A Palavra de Deus nos liberta da presunção de querer salvar a sociedade com gestos rituais. O que conta é uma vida de obediência a Deus e à sua vontade, a exemplo de João Batista, o arauto de Jesus, o Servo obediente por excelência. No lugar de uma vida intimista com Deus, devemos buscar uma vida de comunhão com Deus e com os irmãos e irmãs, priorizando a solidariedade e a fraternidade na caridade.
A ira e o juízo divinos não devem ser assustadores para nós, mas indicadores das exigências que os novos tempos no Espírito Santo nos convocam a realizar. O dia da ira de Deus, se acreditamos em sua fidelidade, é cada dia da nossa existência sempre chamada à conversão e à purificação de nosso ser: pensamentos, sentimentos, palavras e ações pouco condizentes com Deus e com a sua vontade salvífica.
A certeza de que o Reino de Deus está próximo é uma constante indicação de que, uma vez inaugurado na história, tem a força de conduzi-la rumo à eternidade; isto é, à sua plenitude. Não se trata mais de prepará-lo, mas de concretizá-lo no nosso cotidiano. Por isso, a nossa esperança não é uma espera passiva do Reino dos Céus que vem, mas um empenho concreto e ativo na sua edificação através do nosso compromisso com Deus na história. Em cada batizado, urge o testemunho do mistério salvífico que se experimenta na liturgia.
Que o texto faz dizer a Deus em oração?
Senhor nosso Deus, sabemos tudo o que dissestes e fizestes através da Sagrada Escritura, mas seus textos ainda não estão encarnados em nossas vidas, pois falta em nós a docilidade profética ao vosso Espírito Santo. Não podemos querer um mundo melhor se não formos melhores e autênticos arautos da justiça reconciliadora, que promove a paz duradoura pelo mistério pascal de Jesus Cristo. Dai-nos a coragem de João Batista e o zelo apostólico de Paulo, a fim de que, por palavras e ações, o chamado à conversão continue a ecoar em nós e através de nós. Que o Advento de nosso Senhor Jesus nos renove no vosso amor. Vós que viveis e reinais por todos os séculos dos séculos. Amém.
Que decisões o texto leva a tomar?
Reconhecer que a mera tradição religiosa não garante um coração reto diante de Deus. É preciso praticar ações concretas de arrependimento, revelando que a transformação interior está acontecendo. Nesse sentido, substitui-se a busca por aprovação religiosa por uma integridade que manifeste a poda de Deus, eliminando maus hábitos e atitudes corruptas. Desse modo, a vida não estará centrada na busca do próprio cômodo, mas se adotará uma postura de serviço humilde, pelo desapego de tudo o que não prioriza a justiça do Reino dos Céus.
Relação entre Mt 3,1-12 e Is 11,1-10; Sl 71(72); Rm 15,4-9
O anúncio messiânico do profeta Isaías ecoa na voz do salmista e bem forte nas palavras de João Batista, com a sua vida austera e dedicada a preparar os caminhos do Senhor. A imagem de uma sociedade perfeita e paradisíaca não é utopia, mas possível em cada ser humano que se abre para Deus e o escuta. Uma mensagem de paz e de justiça comporta o confronto com a nossa consciência, chamada a ouvir e a aderir à voz do Espírito Santo, a exemplo de Jesus, o Messias, que veio não para fazer a sua vontade, mas a vontade de Deus como Servo.
O chamado à conversão, à justiça social e ao serviço da promoção da paz são ações irrenunciáveis de cada batizado e alimentam a esperança de que o seu testemunho no mundo continua sendo uma voz que interpela mentes e corpos. A favor do seu testemunho está a vida de comunhão e de reconciliação. Para nós cristãos, como nos tempos do apostolado de Paulo, a vida e o exemplo de Jesus Cristo são os marcos que continuam a nos motivar na vida fraterna, fazendo prevalecer a misericórdia e a atenção mútua e solidária.
Considerações finais
Que estejamos focados na necessidade de uma transformação pessoal, urgente e autêntica, abandonando justificativas para não praticar a autoavaliação; substituindo a superficialidade religiosa por ações concretas de conversão, cujos frutos da presença e ação do Espírito Santo em nós eliminam a opressão e promovem a justiça social e eclesial, geradora de paz e amor ao próximo. Isto sinaliza a eficácia do Reino dos Céus, pois, ao invés de termos o machado na raiz de nossas vidas, veremos brotar o renovo prometido por Deus. O mundo renovado não é utopia, pois é transformado por pessoas em processo de conversão. Que o Advento seja eficaz em nós.
Pe. Leonardo Agostini Fernandes
Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá-RJ
Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio