50 anos de consagração monacal

Dia 2 de fevereiro é o Dia da Vida Consagrada porque durante muito tempo foi o dia das celebrações dos votos e consagrações da vida religiosa. A minha primeira consagração como monge cisterciense foi em 1969, e celebrei o jubileu de ouro na abadia de origem, a Abadia Nossa Senhora de São Bernardo, em São José do Rio Pardo (SP), renovando os votos. Três anos depois, como era costume na época, fiz os votos solenes. Por isso neste ano de 2022 agradeço a Deus pelos 50 anos dos votos definitivos na vida consagrada. Quais são os significados do jubileu de consagração monacal que queremos celebrar? Creio que possam ser resumidos em um olhar sobre o tempo que o Senhor me deu, um tempo que se desdobra em sua dimensão tríplice e unitária de passado- -presente-futuro. 

Sou chamado, antes de tudo, a voltar às origens de minha consagração, a recordar quando e como descobri e aceitei o chamado do Senhor, vendo nele o desdobramento do plano de amor de Deus para comigo. Sim, isso aconteceu ao longo do tempo, mas tem sua fonte primordial fora do tempo, na própria eternidade de Deus, que – como escreve o Apóstolo Paulo – “sempre nos conheceu e nos predestinou para nos conformarmos à ‘imagem de seu Filho’” (Romanos 8,29). 

De certo fui chamado a percorrer o caminho que vai desde o chamado de Deus à resposta que lhe dei ao longo dos anos – meio século da consagração solene como monge –, um caminho, meu, nosso e de todos em que se entrelaçavam momentos e experiências várias. 

Finalmente, sou também chamado a olhar para frente, para o futuro, para os passos que o Senhor me dará a possibilidade de dar novamente, até a meta que nos espera: a do encontro e da comunhão definitiva com Cristo Senhor, Esposo de nossas almas, aqu’Ele em que se completará a consagração que fiz. 

Faço este tríplice olhar – para o passado, para o presente e para o futuro – com os olhos do nosso coração de fiéis, isto é, com os olhos iluminados pela fé e com um coração cheio de sentimentos e ação de graças. Mas o que a fé nos mostra? E que sentimentos e ação de graças se movem em nosso coração neste momento em que consideramos nossa profissão religiosa em nossa vida concreta e cotidiana? 

São sentimentos que queremos acalentar e alimentar cada um no seu coração, mas que também queremos exprimir todos juntos com as nossas palavras. Deus nos chama para uma imitação de Cristo mais concreta, uma sequela Christi, pautada nos conselhos evangélicos, de pobreza, castidade e obediência, ou em outros votos que podem caracterizar o próprio instituto, o seu carisma, no caso de nós cistercienses os votos de obediência, conversão dos costumes e estabilidade segundo a regra de São Bento. 

Penso que há pelo menos três sentimentos fundamentais que devem crescer em nossos corações por ocasião dos Jubileus de Consagração Monacal.

1. O primeiro é, sem dúvida, o sentimento de gratidão pela vocação à vida consagrada. Isso, por sua origem e sua natureza íntima, é um dom, é fruto do amor absolutamente livre e gratuito de Deus. Agradecendo a Deus por todos os que passaram pela minha vida nestes tempos.

A vocação é um dom, é graça. Os Atos dos Apóstolos nos dizem isso de forma luminosa. Depois que Pedro declarou que o encargo de Judas deve ser assumido por outro para “tornar-se, juntamente conosco, testemunha da ressurreição” de Jesus, e depois que dois nomes – José chamado Barsabás e Matias – foram apresentados, os apóstolos se voltam para Deus com esta oração: “Tu, Senhor, que conheces o coração de todos, mostra-nos qual destes dois designaste para ocupar o lugar neste ministério e apostolado que Judas abandonou…” (At 1, 24-25). É precisamente com a oração que os Apóstolos expressam, da forma mais simples e mais forte, a sua convicção sobre a vocação de Deus como dom: é Deus, só Deus, aquele que conhece o coração de todos, que indica e constitui o novo apóstolo. A vocação como dom é um fato essencial e central na consciência viva da Igreja de todos os tempos. 

Si revera Deus quaerit – ‘Se procura verdadeiramente a Deus’; isso é o que São Bento pede àqueles que batem à porta do mosteiro, e procurar verdadeiramente a Deus, constitui do monge um “buscador de Deus”, sendo solícito ao Ofício Divino (Opus Dei), à obediência, pois quem escuta obedece (obsculta, obaudire) e aos opróbrios, toda vocação vem provada, para demonstrar sua autenticidade, e se demonstre, que se procura verdadeiramente a Deus. 

A oração de consagração parece ressoar aos meus ouvidos como naquele dia, vendo que o chamado é verdadeiramente um dom de Deus: “Deus, Pai de misericórdia, por meio do Filho que é coeterno convosco, criastes todas as coisas e no mistério da sua Encarnação quisestes renovar o universo marcado pelo pecado: concedei agora, vos rogamos, que a graça do Redentor venha repousar com bondade sobre este seu servo que renuncia ao mundo. De modo que, transformado em seu íntimo, deponha o velho homem com sua conduta e se alegre por revestir-se do novo, que foi criado segundo Deus. Por Cristo nosso Senhor.”

2. Um segundo sentimento fundamental, com o qual deve ser marcado os nossos jubileus de consagração monacal, é o da serenidade do coração. Na realidade, não podemos deixar de ser serenos em nós mesmos se experimentarmos verdadeiramente a fidelidade de Deus, que nos acompanha e sustenta em cada dia.

Sim, olhar para o passado deve tornar-se contemplação do rosto do Deus fiel: uma contemplação que, por sua vez, conduz ao louvor pleno ao Senhor que é “fiel para sempre”. É o louvor do salmista, que encontra eco nos nossos corações: “Cantarei sem cessar as graças do Senhor, com a minha boca proclamarei para sempre a tua fidelidade, porque disseste: “A minha graça permanece para sempre”; a tua fidelidade está fundada nos céus… Quem é igual a ti, Senhor, Deus dos exércitos? Tu és poderoso, Senhor, e a tua fidelidade te coroa… Justiça e direito são a base do teu trono, graça e fidelidade precedem a tua face… Encontrei Davi, meu servo… Minha fidelidade e minha graça serão com ele e em meu nome levantará o seu poder… Ele me invocará: Tu és meu Pai, meu Deus e a rocha da minha salvação” (Salmo 89,1ss.). 

A de Deus é uma fidelidade que, intimamente unida à sua graça, está inteiramente entrelaçada de amor e, por isso, está aberta ao perdão. É, portanto, a fidelidade do Deus “rico em misericórdia” (Ef 2,4) diante de nossas diversas preguiças, nossos atrasos, nossas incoerências e infidelidades. Essa fidelidade incansável e inatacável é a base muito sólida e, ao mesmo tempo, a força irresistível que nos leva a retornar ao amor de Deus cada vez que nos afastamos dele. Por sua vez, a fidelidade misericordiosa e perdoadora de Deus gera A missa em ação de graças pela data foi realizada na Catedral de São Sebastião, no dia 29 de janeiro naqueles que convertem a alegria profunda e sempre nova de um abraço redescoberto com o Pai. 

3. Há ainda outro sentimento, o terceiro, que deve fazer vibrar nosso Jubileu de Consagração Monacal: coragem diante do amanhã. Talvez esse sentimento não seja imediato e fácil. Ele não corre o risco de ser oprimido ou ameaçado pela preocupação, desconfiança e medo das condições e situações em que as pessoas religiosas muitas vezes se encontram? Estou pensando, em particular, nas muitas dificuldades relacionadas à velhice, doença ou enfermidade, solidão, às vezes, marginalização. E ainda outras dificuldades. 

O nosso futuro não está nas mãos do Senhor? E isso não deveria ser suficiente para que tenhamos plena confiança nele e em sua graça infalível? Sim, a confiança no Senhor dá força e garante coragem. E não pode ser de outra forma, se estivermos convencidos de que “você sempre pode amar!”, mesmo nas condições mais pesadas e conturbadas e nas situações humanamente mais pesadas. 

Este é o significado mais verdadeiro, o verdadeiramente qualificador da profissão religiosa: o amor. O Apóstolo Paulo nos lembra disso ao afirmar, depois de apresentar os vários dons de Deus e as várias responsabilidades que os membros do corpo de Cristo têm para o bem de todos, e tem uma conclusão muito breve e decisiva, revelando o dom mais elevado e a responsabilidade mais exigente que os cristãos podem esperar: “aspirai aos maiores carismas!” (1Coríntios 12,31). Numa palavra, é o carisma do amor, da caridade, como diria imediatamente o Apóstolo categoricamente: “mas, se não tiver caridade, nada sou” (1Coríntios 13,2). 

Os nossos pensamentos finais e invocação são agora a Maria Santíssima, a mãe de Cister, que é, na história da Humanidade, a perfeita consagrada segundo Cristo. 

Nós a saudamos, nós a veneramos, rezamos a ela e a seguimos como um exemplo luminoso para nossa consagração e, ao mesmo tempo, como uma fecunda mãe de graça em nosso caminho de santidade e em nosso impulso para servir a Igreja de Cristo. 

Rezando, concluo: “confirmai, ó Deus, o que em mim operastes, no meio do vosso santo templo! 

 

ORANI JOÃO, CARDEAL TEMPESTA, O. CIST. ARCEBISPO METROPOLITANO DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO, RJ

Foto: Gustavo de Oliveira

 

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