Como dissemos em outras ocasiões, Orígenes é o mestre cristão da interpretação espiritual da Escritura. Reconhece-o De Lubac: “Se é verdade que a realidade da história sagrada em todas as passagens esconde mistérios, isto não significa apenas que há, sob cada fato bíblico, um sentido a ser descoberto, como uma virtude secreta reside em cada planta. O ‘oceano de mistérios’ que Orígenes nos ensina a ver nas Escrituras vai mais fundo. Inclui maravilhas mais variadas” (Henri de Lubac. ‘Histoire et Esprit: L’inelligence de l’Écriture d’après Origène’. Paris: Aubier, 1950, p. 139). Hoje, Orígenes interpreta para nós o ‘salmo de Maria’, o Magnificat. Há muitos temas interessantes e importantes neste louvor de Maria. Acentuamos aqui o aspecto do poder de Deus, Seu ‘domínio’ sobre nós.
Qual poderia ser o domínio de Deus sobre nós? Este termo hoje tão antipático, domínio, na verdade lembra o nome do Senhor (Dominus), cujo poder sobre nós é que se manifesta hoje no louvor de Maria em visita a Isabel. Na Homilia 8 sobre o Evangelho de Lucas (1, 46-51), Orígenes comenta o ‘Magnificat’: “Antes de João, Isabel profetiza; antes do nascimento do Senhor Salvador, Maria profetiza. E como o pecado começou com o erro de uma mulher, para desembocar depois em um homem, assim também o princípio da salvação teve seu começo com as mulheres, a fim de que outras mulheres também, superada a fragilidade de seu sexo, imitem a vida e a conduta daquelas santas mulheres, sobretudo daquelas que agora são descritas no Evangelho. Vejamos, pois, a profecia da Virgem” (Orígenes. ‘Homilias sobre o Evangelho de Lucas’. São Paulo: Paulus, p. 36).
A pessoa inteira de Maria entrega-se ao louvor, isto é, é toda Igreja, a Igreja em unidade que louva a Deus na figura de Maria: “Ela diz: “A minha alma engrandece o Senhor, exultou de alegria o meu espírito em Deus, meu Salvador”. Duas realidades, a alma e o espírito, se unem em um duplo louvor. A alma celebra o Senhor, o espírito, a Deus: não que um seja o louvor do Senhor e outro o louvor de Deus, mas porque aqu’Ele que é Deus é o mesmo que também é o Senhor, e aqu’Ele que é o Senhor é o mesmo que também é Deus” (p. 36).
É importante ter presente que é sempre Deus que nos move em nossas ações em favor do próximo. Assim, o ‘salmo de Maria’ é, pois, um louvor às experiências do divino no homem. “Pergunta-se como a alma engrandece o Senhor. Com efeito, se o Senhor não pode receber nem acréscimo nem diminuição, e se ele é o que é, em que medida pode Maria dizer: “Minha alma engrandece o Senhor”? Se considero que o Senhor Salvador é a “imagem do Deus invisível” e vejo que minha alma foi feita “à imagem do Criador”, de modo que seja imagem da imagem — minha alma, com efeito, não é expressamente a imagem de Deus, mas foi criada à semelhança da primeira imagem — então compreenderei isto: a exemplo daqueles que costumam pintar imagens e utilizar o exercício de sua arte para reproduzir um modelo único, por exemplo, o rosto de um rei, cada um de nós transforma sua alma à imagem do Cristo, e traça d’Ele uma imagem maior ou menor, ou deteriorada ou sórdida, ou clara e reluzente, correspondendo à efígie da imagem principal. Quando, pois, tiver ampliado a imagem da imagem, isto é, minha alma, e a tiver “engrandecido” por minhas obras, meus pensamentos e minhas palavras, então a imagem de Deus se tornará grande e o próprio Senhor, de quem é a imagem, será engrandecido em nossa alma. Do mesmo modo que o Senhor cresce em nossa imagem, igualmente se formos pecadores, ela diminui e decresce” (p. 36).
A nossa debilidade é uma desfiguração de nossa Humanidade: “Mas certamente o Senhor nem diminui nem decresce; mas nós, no lugar de imagem do Senhor, nos revestimos de outras imagens; no lugar de imagem do verbo, da sabedoria, da justiça e de outras virtudes, tomamos a forma do diabo, a ponto de que se possa dizer de nós: “serpentes, raça de víboras”. Mas revestimos a máscara do leão, do dragão e das raposas? Quando somos venenosos, cruéis, astutos; e também revestimos a do bode, quando somos mais inclinados à luxúria” (p. 37).
Podemos, então, nos transformar em ‘víboras’? Vejamos o que nos diz Orígenes: “Eu me lembro de um dia estar explicando uma passagem do Deuteronômio, em que está escrito: “Não façais nenhuma imagem de homem ou de mulher, a imagem de nenhum animal”, que eu disse, porque a “Lei é espiritual”, que uns se fazem imagem de um homem, outros de uma mulher; que um se parece com os pássaros, que outro com os répteis e serpentes e um outro se torna semelhante a Deus. Aquele que as ler, saberá como estas palavras devem ser entendidas” (p. 37).
Por isso tudo não é muito claro por que Deus vota seu olhar para nós: “Assim a alma de Maria primeiramente “engrandece o Senhor” e depois “o espírito exulta em Deus”; se nós não tivermos crescido antes, não podemos exultar. Ela diz: “Ele voltou os olhos para a humildade de sua serva”. Para qual humildade de Maria o Senhor voltou os olhos? O que tinha a mãe do Salvador de humilde e de abjeto, que gerava o Filho de Deus no ventre? O que, portanto, disse: “voltou os olhos para a humildade de sua serva”, é tal como se dissesse: “voltou os olhos para a justiça de sua serva”, “voltou os olhos para a sua temperança”, “voltou os olhos para a sua fortaleza e a sua sabedoria”. De fato, é normal que Deus volte seus olhos para as virtudes. Alguém objetará e dirá: “Entendo como Deus volte seus olhos para a justiça e sabedoria de sua serva. Como, porém, Ele pode prestar atenção na humildade, não me é claro o suficiente”. Quem se faz tais perguntas, considere que precisamente nas Escrituras a humildade é considerada como uma das virtudes” (p. 37).
Ele é manso, este é seu poder: “O Salvador, com efeito, diz: “Aprendei de mim porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis o repouso para vossas almas”. Porque, se queres ouvir o nome dessa virtude, como também é chamada pelos filósofos, escuta que a humildade, para a qual Deus volta os olhos, é a mesma que é chamada por eles de ‘atyphia’ ou de ‘metriótes’. Mas nós podemos defini-la em uma perífrase: é o estado de um homem que não se enche de orgulho, mas se abaixa ele próprio. Quem, pois, se enche de orgulho, segundo o Apóstolo, cai “na condenação do diabo” — que, precisamente, começou pelo inchaço do orgulho e da soberba –; ele diz: “a fim de que não caia inchado de orgulho na condenação do diabo”. “Ele voltou os olhos sobre a humildade de sua serva”. Deus me olhou, disse ela, porque eu sou humilde e busco a mansidão e a sujeição” (p. 37).
A mansidão de Deus manifesta-se de muitas formas, mas, sobretudo, em sua misericórdia: “E sua misericórdia se estende de geração em geração”. E não é sobre uma, duas, três nem mesmo cinco gerações que se estende “a misericórdia” de Deus, mas eternamente, “de geração em geração. Para os que O temem, Ele estendeu o poder de seu braço”. Se mesmo como enfermo te aproximares do Senhor, se O temeres, poderás ouvir Sua promessa, que o Senhor te faz por causa de teu temor” (p. 38)
A promessa do Senhor: “Que promessa é essa? “Para os que O temem, Ele estendeu o poder”. O poder ou o império é um domínio real. De fato, “krátos”, que nós podemos traduzir por “poder”, se aplica àquele que governa ou àquele que tem tudo sob seu domínio. Se, pois, temeres ao Senhor, Ele te dará a fortaleza ou o poder, te dará o Reino, de modo que, submetido ao “Rei dos reis”, possuas o “reino dos céus” em Cristo Jesus: “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém” (p. 38).
Com o ‘Magnificat’ compreendemos muitas coisas da mensagem e da vida de fé cristã. Maria, assim como Jesus e os Apóstolos louvavam a Deus com salmos. Esta é, por isso mesmo, a oração própria dos cristãos. Ao dizer, ‘minha alma engrandece o Senhor’, Maria resume todo o sentido dos salmos. Este é o poder de Deus: fazer-nos capazes de engrandecê-Lo e louvá-Lo. Trata-se de uma transformação poderosa, uma transfiguração.
Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO