Beda: de onde vêm as guerras?

É o que São Beda, que viveu de 672 a 735, nos ensina a partir das palavras de Tiago. Diz-nos o Apóstolo Tiago em sua Carta (3,16-4,3): “Caríssimos, onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens e toda espécie de obras más. Por outra parte, a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, modesta, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem fingimento. O fruto da justiça é semeado na paz, para aqueles que promovem a paz. De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós? Não vêm, justamente, das paixões que estão em conflito dentro de vós? Cobiçais, mas não conseguis ter. Matais e cultivais inveja, mas não conseguis êxito. Brigais e fazeis guerra, mas não conseguis possuir. E a razão está em que não pedis. Pedis, sim, mas não recebeis, porque pedis mal. Pois só quereis esbanjar o pedido nos vossos prazeres”.

Retomemos: ‘Onde há inveja e rivalidade, aí estão as desordens e toda espécie de obras más’. São Beda associa este versículo de Tiago a um versículo do livro dos Provérbios (4, 23): “ ‘Guarda teu coração acima de tudo, pois dele provém a vida’. Pois todo fruto da ação está à vista do árbitro interno do mesmo tipo que a raiz do coração; e é distorcida toda ação daquele que escondeu em seu coração a maldade da inveja ou da contenda no seu, por mais reta que pareça ser aos homens, por conta da instabilidade de sua mente oscilante para um lado e para outro, porque negligenciou prender-se à única âncora da visão celestial” (Beda, o Venerável. ‘On the Seven Catholic Epistles’. By David Hurst. Kalamazoo, Michigan: Cistercian Publications, 1985, p. 45, tradução do autor).

As propriedades da sabedoria cristã excluem qualquer tipo de contenda: “ ‘Por outra parte, a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura, depois pacífica, modesta, conciliadora, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem fingimento’. Esta é a mansidão da sabedoria, Tg 3, 13, que Tiago mostrou acima que deveríamos ter, oposta certamente ao ciúme, à amargura e à contenda tola; por ela, a virtude e o ensinamento dos santos pregadores são por sua vez unidos na paz da caridade e concórdia. Primeiro, diz Tiago, é modesta, e então pacífica; modesta, porque entende modestamente; mas pacífica, porque pelo orgulho ele se separa muito pouco da companhia de seus vizinhos. Contido, de fato, dócil, em concordância com o que é bom, porque certamente cabe a um homem sábio dar consentimento à persuasão do bem — como Pedro, embora agitado, curvou-se à repreensão de Paulo, Gl 2, 11-14 —, e rejeitar com todo esforço, seja ensinando ou vivendo, o ensinamento dos perversos. Cheio de misericórdia e bons frutos. Este é também o bom modo de vida que acima ele aconselhou os sábios e aprendeu a mostrar, a saber, sendo misericordioso de mente, manifestando externamente os frutos dessa mesma misericórdia por meio de obras de devoção. E julgando sem pretensão. Quanto mais a sabedoria modesta faz uso pessoal dessa virtude, mais ela carece completamente de uma sabedoria blasfema e contenciosa. Pois é necessário para qualquer um que queira parecer mais instruído e mais perfeito do que os outros trabalhar para ser capaz de corrigir seu próximo astutamente, como se este fosse menos perspicaz [do que ele], e que ele possa às vezes enganosamente fingir ter feito ou dito aquelas coisas para as quais ele é um estranho” (p. 46).

Não se pode buscar justiça sem a promoção da paz, sobretudo se pensarmos na justiça no sentido bíblico de santidade: “ ‘O fruto da justiça é semeado na paz, para aqueles que promovem a paz’. Tudo o que fazemos nesta vida é a semente da recompensa futura, mas a recompensa em si é o fruto das obras presentes, como o Apóstolo testemunha quando diz: ‘O que o homem semear, isso também ceifará, e quem semear na carne, da carne colherá corrupção, mas quem semear no espírito, do espírito colherá vida eterna’, Gl 6, 7-8.  E, portanto, é dito corretamente que o fruto da justiça é semeado na paz para aqueles que fazem a paz. Pois o fruto da justiça é a vida eterna, que é a recompensa pelas obras justas, porque aqueles que buscam a paz e a seguem cobrem o solo de seu coração com a própria paz pela qual estão ansiosos, como se fosse com a melhor semeadura, para que, por meio do aumento diário de boas ações, possam alcançar o fruto da vida celestial sobre o qual foi escrito em outro lugar: ‘Aqueles que em lágrimas semeiam, colherão com alegria’, e assim por diante, Sl 126, 5. Os condenados também semeiam e colhem, porque no julgamento receberão o que merecem. Mas é dito que eles colhem não frutos, mas corrupção, porque não desfrutam de bens eternos — ‘fruto’, de fato, é chamado assim por causa da ‘fruição’ — mas em retorno à corrupção em que viveram, eles pagarão a penalidade da punição eterna” (p. 47).

A concupiscência é fonte de nossas disputas, das rixas e das guerras. Não se trata, como bem nos mostra São Beda do entendimento popular e reduzido de concupiscência, isto é, a concupiscência sexual. Trata-se de todo tipo de ambição, ganância e domínio sobre os outros, como se entende do ensinamento neotestamentário, especialmente em Paulo: “ ‘De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós?’ Vêm do ciúme e da contenda que se havia proibido acima? Tg 3, 14. Assim também aqui, ao explicar o mesmo mais extensivamente, Tiago continua: ‘Vêm, justamente, das paixões que estão em conflito dentro de vós’. Concupiscências guerreiam em nossos membros quando a mão ou a língua, ou uma combinação dos outros membros, obedecem imoderadamente àquelas coisas que uma mente vil perversamente sugere. A respeito disso, ele diz na parte anterior desta Carta: ‘Cada um, de fato, é tentado por sua própria concupiscência, que o arrasta e seduz’, Tg 1, 14. Concupiscências, no entanto, podem ser entendidas neste lugar como também se referindo a bens terrenos, isto é, desejos por um reino, por riquezas, honras, dignidades. Pois é por causa dessas coisas e de inúmeras outras desse tipo que brigas e guerras são frequentemente travadas entre os maus” (p. 47).

E o pior de tudo é que o cultivo da concupiscência não resulta naquilo que o concupiscente busca: “ ‘Cobiçais, mas não conseguis ter. Matais e cultivais inveja, mas não conseguis êxito. O Apóstolo diz: brigais e fazeis guerra devido à glória temporal e não sois capazes de obtê-la, certamente pela razão de que não tomastes cuidado de pedir ao Senhor para vos conceder todas as coisas que levam à salvação. Pois se lhe pedísseis com intenção devota, Ele vos concederia as coisas terrenas necessárias para o uso atual e coisas boas do alto para desfrutar para sempre” (p. 48).

Podemos pedir sim, podemos pedir os benefícios de Deus. Tudo o mais é concupiscência: “ ‘Pedis, sim, mas não recebeis, porque pedis mal. Pois só quereis esbanjar o pedido nos vossos prazeres’. Ele tinha acabado de dizer que eles não pediram e agora ele diz que eles pedem perversamente, porque, aos olhos da testemunha interior, aquele que pede perversamente já parece nada pedir. Pede, no entanto, perversamente quem, desprezando os mandamentos do Senhor, deseja benefícios do Senhor; também pede perversamente quem, tendo perdido o amor das coisas de cima, busca apenas obter os bens mais baixos, e estes não para o suporte da fragilidade humana, mas para a superfluidade do prazer desnecessário. Pois é isso que o Apóstolo quer dizer quando diz: ‘só quereis esbanjar o pedido nos vossos prazeres’ ” (p. 48).

‘De onde vêm as guerras? De onde vêm as brigas entre vós?’ — perguntava o Apóstolo em sua Carta. Sua resposta foi aprofundada para nós por São Beda nestes termos: “Concupiscências, no entanto, podem ser entendidas neste lugar como também se referindo a bens terrenos, isto é, desejos por um reino, por riquezas, honras, dignidades. Pois é por causa dessas coisas, e de inúmeras outras desse tipo, que brigas e guerras são frequentemente travadas entre os maus”. Entre os maus? Poderíamos dizer que também entre os bons. A disputa pelo melhor lugar, pelo domínio e o poder sobre os outros, amigos, familiares, cidadãos, não vêm da paz evangélica, mas da concupiscência que cultivamos no oculto do coração.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

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