Crisóstomo: a salvação em Cristo

São João Crisóstomo nasceu em Antioquia por volta de 349, depois dos primeiros anos no deserto, foi ordenado sacerdote por Fabiano e tornou-se seu colaborador. Grande pregador, em 398, recebeu em razão disso o nome de ‘boca de ouro’ (‘crisó-stomos’). Em razão de muitas intrigas políticas e eclesiais, Crisóstomo foi exilado mais de uma vez. Viveu então, primeiro na Armênia, depois às margens do Mar Negro, onde morreu aos 14 de setembro de 407. Crisóstomo foi um escritor e pregador prolífico.

Crisóstomo, em sua IV homilia sobre a Epístola aos Hebreus, comenta alguns versículos do Capítulo 2. Por sua vez, o autor da Epístola aos Hebreus, que Crisóstomo pensava ser Paulo, cita, no versículo 6 desse capítulo, o Salmo 8, como que para dar o tom das palavras que se seguirão: ‘Que é o homem, para que dele te lembres? Ou o filho do homem, para que o visites?  Fizeste-o um pouco menor que os anjos, de glória e de honra o coroaste, tu o estabeleceste sobre a obra de tuas mãos, e todas as coisas colocaste debaixo dos seus pés’. E Crisóstomo interpreta isso deste modo:

“Apesar de aplicar-se à humanidade comum, estes versículos propriamente convêm a Cristo segundo a carne, pois a expressão ‘todas as coisas colocaste debaixo dos seus pés’, mais se adapta a ele do que a nós. O Filho de Deus, quando nada éramos, visitou-nos e, tendo assumido o que é nosso e unido a si, fez-se superior a todos. ‘Se Deus lhe submeteu todas as coisas, nada deixou que lhe ficasse insubmisso. Agora, porém, ainda não vemos que tudo lhe esteja submisso’ e muito menos, como declara o salmista: ‘e todas as coisas colocaste debaixo dos seus pés’. É, pois, verossímil que os hebreus estivessem angustiados. Em seguida, intercalando poucos argumentos, acrescentou este testemunho: ‘atualmente, porém ainda não vemos que tudo lhe esteja submisso’, Hb 2, 8, a fim de que não se diga: como colocou os inimigos a seus pés se sofremos tanto? (…). Não julgues que, por não lhe estarem sujeitos ainda, eles não se sujeitarão, pois é claro que deverão estar sujeitos” (João Crisóstomo. ‘Comentário às Cartas de Paulo’/3. São Paulo: Paulus, 2013).

As palavras acima, vêm-nos conclamar à prudência e, sobretudo, devoção, em nossos juízos a respeito da economia da salvação, e Crisóstomo completa: “Por isso diz a profecia: ‘Se Deus lhe submeteu todas as coisas, nada deixou que lhe ficasse insubmisso’. Por que, então, não lhe estão sujeitas todas as coisas? Porque hão de estar sujeitas. Se, portanto, todas as coisas lhe devem estar sujeito e, no entanto, ainda não o estão, não te irrites, nem te perturbes. De fato, se o fim tivesse chegado e tudo lhe estivesse sujeito, e passasses por tais padecimentos, com razão o sentirias; mas agora ainda não vemos que tudo lhe esteja sujeito. O rei ainda não obteve inteiramente o domínio. Por que então te perturbas, suportando-o mal? O anúncio não atingiu a todos ainda. Ainda não é o tempo da perfeita submissão”.

Cristo é dito um pouco menor que os anjos por ter assumido a natureza humana, que é ontologicamente inferior aos anjos. Assumiu a natureza humana até a morte, de modo a levar aos homens a vida: “Em seguida, mais uma consolação, a saber, aquele que deverá ter a todos submissos a si, morreu e passou por inúmeros padecimentos: ‘Vemos, todavia, Jesus, que foi feito um pouco menor que os anjos, por causa dos sofrimentos da morte’, Hb 2, 9. E adicionou os prêmios: ‘coroado de glória e de honra’, Hb 2, 9. Viste que todas as coisas combinam com Jesus? Pois convinha-lhe a expressão ‘um pouco menor que os anjos’ somente a ele que, por somente três dias, esteve no inferno, e não a nós, que longamente nos corrompemos. De modo semelhante, a fórmula: ‘de glória e de honra’ é mais conveniente a ele do que a nós. De novo, relembrou-lhes a cruz em dois pontos: mostrando sua solicitude por nós, e persuadindo-os a suportarem generosamente todas as coisas, fixando o olhar no Mestre. Com efeito, se aquele que é adorado pelos anjos tolerou ser um pouco menos do que os anjos por tua causa, muito mais tu, que és menor que os anjos, deves tudo suportar por ele. Em seguida mostra que a cruz é honra e glória, conforme sempre a denomina, nesses termos: ‘É chegada a hora em que será glorificado o Filho do Homem’, Jo 12, 23. Se, portanto, ele chama de glória o que sofreu pelos servos, muito mais tu a teus sofrimentos por causa do Senhor. Vês quantos os frutos da cruz? Não temas a realidade: parece-te triste, mas gera inúmeros bens”.

Jesus veio salvar todos os homens, e todos, sem exceção, podem participar de sua graça: “Em seguida, diz que, ‘pela graça de Deus ele provou a morte em favor de todos os homens’, Hb 2, 9. ‘Pela graça de Deus’, Ele sofreu pela graça de Deus, em nosso favor. ‘Não poupou o seu próprio Filho, e o entregou por todos nós’, Rm 8, 32. Qual a causa disso? Não nos era devido, mas o fez gratuitamente. E, ainda, na Carta aos Romanos, Paulo escreve: ‘Com quanto maior profusão, a graça de Deus e o dom gratuito de um só homem, Jesus Cristo, se derramaram sobre nós’, Rm 5, 15. É que ‘pela graça de Deus, ele provou a morte em favor de todos os homens.’ Não somente pelos fiéis, mas pela terra inteira. Morreu, de fato, por todos. Mas, como se explica que nem todos acreditaram? Ele completou o que lhe cabia. E propriamente disse: ‘Ele provou a morte em favor de todos os homens’ (…). Um médico, embora não tenha necessidade de provar os alimentos preparados para o doente, primeiro o prova, cuidadoso, para persuadir o doente a ingerir sem susto o alimento; assim Cristo, uma vez que todos os homens temiam a morte, a fim de persuadir que fossem corajosos diante dela, ele próprio a provou, apesar de não ter tal obrigação. ‘Pois o príncipe do mundo vem; contra mim, ele nada pode’, Jo 14, 30. Assim, ao dizer: ‘pela graça’ e ‘ele provou a morte em favor de todos os homens’, o escritor sagrado exprime o mesmo”.

Jesus sofreu e é o Primogênito do Pai, portanto, não nos sintamos desconsolados em nosso sofrimento: “‘Convinha de fato que aquele, por quem e para quem todas as coisas existem, e que desejou conduzir muitos filhos à glória, levasse o iniciador da salvação deles à consumação, por meio de sofrimentos’, Hb 2, 10. É atinente ao Pai. Vês como de novo lhe adapta a expressão: ‘Por quem’? Não o faria se fosse uma diminuição e só conviesse ao Filho. Declara o seguinte: Fez o que era digno de sua bondade, o que tornaria mais ilustre o Primogênito, e como genuíno atleta vencedor dos demais, servisse de exemplo aos outros. ‘Autor da salvação deles’, isto é, causa da salvação. Vês a diferença? É Filho e somos filhos, mas ele salva e nós somos salvos. Viste como nos une e distingue? ‘Conduzindo muitos filhos à glória’; aqui une: ‘Autor da salvação deles’. E de novo distingue: ‘Levasse à perfeição, por meio de sofrimentos’. Os sofrimentos, portanto, são perfeição e causa de salvação. Vês que sofrer não é peculiar aos que foram abandonados?”

O Pai honrou o Filho e, pelo Filho, honra a cada um de nós: “Deus, portanto, em primeiro lugar honrou o Filho, que conduziu por meio dos sofrimentos. Em verdade, é muito mais assumir a carne e sofrer o que sofreu do que ter criado o mundo e tirado do nada. É fruto da benignidade, muito maior do que o ato de criar. Demonstrando-o, ele declara: ‘A fim de mostrar nos tempos vindouros a extraordinária riqueza da sua graça, com ele nos ressuscitou e nos fez assentar nos céus, em Cristo Jesus’, Ef 2, 7.6. ‘Convinha, de fato, que aquele por quem e para quem todas as coisas existem, conduzindo muitos filhos à glória, levasse à perfeição, por meio de sofrimentos, o autor da salvação deles’. Importava que aquele que de todas as coisas cuida, e produziu-as para que existissem, entregar o Filho pela salvação dos demais, um só por muitos. Todavia não o disse, mas: ‘Levasse à perfeição, pelo sofrimento’. Expõe que aquele que sofre por outro, não somente oferece proveito ao próximo, mas também se torna mais ilustre e perfeito. Declara-o aos fiéis, animando-os. De fato, Cristo foi glorificado ao sofrer. Quando, porém, digo: foi glorificado, não penses que ele assumiu a glória; aquela glória da natureza sempre a teve, não assumiu coisa alguma”.

Crisóstomo é um mestre da retórica cristã, a qual lhe permitiu aprofundar as verdades da Palavra de Deus. Na homilia que percorremos aqui, Crisóstomo mostrou-se um consolador para as nossas ansiedades e angústias, ao fazer-nos ver a vitória de Cristo sobre o mal, mesmo quando, desanimados, tendemos a pensar o contrário.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

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