O Santo Padre, o Papa Francisco, publicou, com data de 24 de outubro último, a Encíclica (= circular) que tem por título as palavras em latim Dilexit nos. Inspiram-se em Romanos 8,37 e desejam, como realça no título, relembrar à Humanidade o amor – cujo símbolo é o coração (cf. Capítulo 1, n. 2) – humano e divino do coração sagrado de Jesus por todos nós. Sim, Ele, o próprio Cristo, nos amou primeiro (cf. 1Jo 4,10), nos chamou de amigos (cf. Jo 15,9.12) e, é graças a Jesus, que conhecemos o amor do Pai celeste por nós (1Jo 4,16). Depois desta brevíssima Introdução, o documento realça a importância do coração (Capítulo 1), os gestos e palavra de amor (Capítulo 2), a grandeza do amor do Coração de Jesus (Capítulo 3), o amor que dá de beber (Capítulo 4), amor por amor (Capítulo 5) e a Conclusão. Percorramo-la com vivo interesse em seus pontos mais salientes, com votos de que cada um leia e medite esta nova Encíclica.
No Capítulo 1, o Papa Francisco realça a importância do coração como símbolo do amor do Sagrado Coração de Jesus por nós, mas convida-nos a entender bem o sentido do termo coração: “No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima dos seres humanos, dos animais e das plantas. Em Homero, indica não só o centro corpóreo, mas também a alma e o centro espiritual do ser humano. Na Ilíada, o pensamento e o sentimento pertencem ao coração e estão muito próximos um do outro [Cf. Homero, Ilíada, canto XXI, verso 441]. O coração aparece como o centro do desejo e o lugar no qual são forjadas as decisões importantes de uma pessoa [cf. Ibid., canto X, verso 244]. Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função ‘sintetizante’ do que é racional e das tendências de cada pessoa, uma vez que tanto o comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que convergem no coração [cf. Timeu, § 65c-d; § 70]. Assim, desde a Antiguidade, advertimos a importância de considerar o ser humano não como uma soma de diferentes capacidades, mas como um complexo anímico-corpóreo com um centro unificador, que dá a tudo o que a pessoa experimenta um substrato de sentido e orientação” (n. 3).
Já na Escritura, várias e várias passagens nos falam da importância do coração. Como cremos serem de conhecimento dos leitores ou de fácil acesso para consultas, apenas as citaremos, comentando quando necessário: Hb 4,12; Lc 24,32; Jz 16,15.18 – sobre o segredo escondido, mas depois revelado de Sansão para com Dalila, sua esposa – Jr 17,9 – a perversidade – Pr 4,23-24. E, assim, conclui o Papa: “nada que valha a pena pode ser construído sem o coração. As aparências e as mentiras só trazem vazio” (n. 6).
Hoje, porém, em um mundo marcado pela volatilidade das coisas e até das pessoas, é preciso voltar-se para o coração e fazer-lhe as perguntas essenciais (cf. n. 7-9). Mas não é só hoje. Certas escolas da Filosofia, ao longo do tempo – o racionalismo grego pré-cristão, o idealismo pós-cristão, o materialismo em suas diversas modalidades (cf. n. 10) – também não valorizaram devidamente o coração, o que resultou em uma antropologia assaz pobre. Ora, “ao não se dar o devido valor ao coração, desvaloriza-se também o que significa falar a partir do coração, agir com o coração, amadurecer e curar o coração” (n. 11). Viver à luz do coração é ter paz consigo e com o próximo. Viver sem coração é tornar-se, na expressão de Romano Guardini, citada pelo Santo Padre (cf. 12), um demônio. E, assim, chega a uma conclusão de ontem, de hoje e de sempre: “Em última análise, poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas. O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais ‘standard’ do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração” (n. 14). Aliás, a palavra coração é um desafio a todas as ciências e mesmo aos conhecimentos filosófico e teológico, pois nenhuma consegue explicá-lo a contento. Ele leva, como dito, o ser humano ao mais íntimo do seu ser (cf. n. 15-16). É ele o responsável, pois, pelo encontro consigo mesmo, com o próximo e com Deus (cf. n. 17-18).
E ainda mais: só o coração é capaz de unir: “No Evangelho, a melhor expressão do que pensa o coração é oferecida por duas passagens de São Lucas que nos dizem que Maria ‘guardava (synetérei) todas estas coisas, ponderando-as (symbállousa) no seu coração’ (cf. Lc 2,19.51). O verbo symbállein (do qual provém a palavra ‘símbolo’) significa ponderar, unir duas coisas na mente, examinar-se, refletir, dialogar consigo mesmo. Em Lc 2,51, dietérei é ‘conservada com cuidado’, e o que ela guardava não era apenas ‘a cena’ que via, mas também o que ainda não compreendia, conservando-o presente e vivo, na esperança de unir tudo no seu coração” (n. 19). A inteligência artificial, tão em voga, não capta, em seus algoritmos, os mais íntimos sentimentos do ser humano evocados em suas lembranças: “Porque o garfo, as piadas, a janela, a bola, a caixa de sapatos, o livro, o pássaro, a flor… são sustentados pela ternura preservada nas memórias do coração” (n. 20). Vendo o coração como núcleo do ser humano, entendemos também que se ele for bem cultivado no amor, teremos paz; se mal cultivado ou mesmo esquecido, vêm as guerras que tanto assolam a Humanidade em frequentes desentendimentos e matanças. Isto porque “amando, a pessoa sente que sabe o porquê e para que vive. Assim, tudo converge para um estado de conexão e de harmonia. Por isso, diante do próprio mistério pessoal, talvez a pergunta mais decisiva que se possa fazer seja esta: tenho coração?” (n. 23).
Ainda no mesmo Capítulo 1, o Papa, enquanto sábio conhecedor da pedagogia teológica de Santo Inácio de Loyola (e o citará várias vezes no decorrer do documento), afirma que, para o santo fundador da Companhia de Jesus, seu princípio está no affectus. “O discurso é construído sobre uma vontade fundamental – com toda a força do coração – que dá energia e recursos à tarefa de reorganizar a vida” (n. 24). Na mesma linha de raciocínio, o Papa cita também São Boaventura: “‘saber que Cristo morreu por nós não permanece (somente) conhecimento, mas torna-se necessariamente afeto, amor’ (Proemium in I Sent., q. 3)”. Cf. n. 26. Ainda: “Perante o Coração de Jesus vivo e atual, o nosso intelecto, iluminado pelo Espírito, compreende as palavras de Jesus. Assim, a nossa vontade põe-se em ação para as praticar. Mas isso poderia permanecer como uma forma de moralismo autossuficiente. Ouvir, saborear e honrar o Senhor pertence ao coração. Só o coração é capaz de colocar as outras faculdades e paixões e toda a nossa pessoa numa atitude de reverência e obediência amorosa ao Senhor” (n. 27).
Eis, como consequência prática deste primeiro capítulo, que só o coração humano bem orientado com a graça de Deus é capaz de mudar o mundo: “Só a partir do coração é que as nossas comunidades serão capazes de unir e pacificar os diferentes intelectos e vontades, para que o Espírito nos possa guiar como uma rede de irmãos, porque a pacificação é também uma tarefa do coração. O Coração de Cristo é êxtase, é saída, é dom, é encontro. N’Ele tornamo-nos capazes de nos relacionarmos uns com os outros de forma saudável e feliz, e de construir neste mundo o Reino de amor e de justiça. O nosso coração unido ao de Cristo é capaz deste milagre social” (n. 28). Sem reformar o próprio coração, não se reforma nada na sociedade (cf. Gaudium et spes, 82. 10. 14. 26). Só Cristo, por meio do seu coração, centro do mundo, pode curar esta terra ferida (cf. n. 30-31).
Eis, em resumo, o Capítulo 1 de Dilexit nos.
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ