A Carta aos Hebreus, segundo Santo Tomás, fora escrita por São Paulo. E comentou-a no conjunto de seus comentários às epístolas do Apóstolo. No 10, 11-18, Tomás apresenta-nos uma importante reflexão sobre o sacerdócio de Cristo, fazendo-nos compreender que o sacrifício pascal de Cristo é o sacrifício único do único sacerdote de Deus. Todo sacerdócio das Escrituras encontra em Cristo sua realização e perfeição.
Inicialmente, Tomás apresenta os pontos principais da passagem a ser comentada: “Ao dizer no versículo 11: ‘Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto’, São Paulo compara o sacerdócio do Novo Testamento com o sacerdócio do Antigo Testamento. Deve ser lembrado aqui que havia dois sacrifícios solenes na Lei: um, no dia da expiação e ministrado somente pelo Sumo Sacerdote, como já foi explicado detalhadamente; o outro era o holocausto perpétuo, no qual era oferecido todos os dias um cordeiro pela manhã e outro à tarde, como está prescrito no livro de Números (28, 4). O apóstolo também tem este último em vista e aproveita, primeiro, para determinar o que pertence ao sacerdócio do Antigo Testamento; depois, o que pertence ao sacerdócio do Novo Testamento; terceiro, confirma o que uma autoridade disse. O segundo passo (v. 12) diz: [Cristo] ‘tendo oferecido um sacrifício único…’; o terceiro passo (v. 15): e é isso que o Espírito Santo lhe dita” (Tomás de Aquino. ‘Commentaire de la lettre de saint Paul aux Hébreux’. Traduction reprise et corrigée par Charles Duyck, 2008, c. 10, 1-18. Disponível em: http://docteurangelique.free.fr/bibliotheque/ecriture/hebreux.htm consultado em 12/11/2024, tradução do autor).
O sacerdócio de Jesus Cristo distingue-se do sacerdócio da Antiga Lei, mas isto não significa que não se reconheça o sacerdócio precedente. Ao contrário, ele era figura do sacerdócio único e o único sacrifício: “O Apóstolo diz, portanto, no versículo 11, ‘todo o sacerdote’, para marcar a diferença do sacrifício de expiação, que era oferecido apenas pelo Sumo Sacerdote. Quanto a este, [o holocausto perpétuo], o versículo 11 diz: ‘Todo sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo muitas vezes os mesmos sacrifícios’, pois cada vez ofereciam um cordeiro, e estas eram as vítimas oferecidas todos os dias, que nunca podiam apagar o pecado, que eram assim renovados. Por isso, Jeremias 11, 15 diz: ‘As carnes sacrificadas apartarão de ti as tuas malícias, para que te glorias?’ Este holocausto perpétuo representava Cristo e a eternidade daquele que é o cordeiro imaculado”.
O sacrifício de Cristo é único. Sacrifício é o ato de ‘fazer sagrado’, por isso a Eucaristia é sacrifício, pois celebra a Páscoa de Cristo, sua morte e ressurreição, consagrando todos os que comungam de sua única oblação pascal: “Quando São Paulo acrescenta ‘Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados’, estabelece o que pertence ao sacerdócio de Cristo. (…) Diz, portanto, (v. 12): ‘Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus’, isto é, sacrifício capaz de apagá-los, enquanto a lei antiga oferecia muitas vítimas que não expiar os pecados. Mas Cristo, oferecendo uma só hóstia, porque só se ofereceu uma vez pelos nossos pecados, sentou-se, não como um ministro, como o pontífice da Lei que deve estar sempre disposto a oferecer, mas como o Senhor (Sl 109, 1): ‘Disse o Senhor a meu senhor: Senta-te à minha direita’; ‘O Senhor Jesus está sentado à direita do Pai’ (Mc 16, 19). Ele, portanto, sentou-se à direita de Deus, o Pai, em perfeita igualdade de poder com Deus, e em suas melhores posses como homem. E sentado para sempre, pois ele não morrerá mais de agora em diante, porque Cristo (Rm 6, 9), ‘tendo sido ressuscitado dentre os mortos não morre mais’. E Daniel 7, 14 diz: ‘Seu poder é um poder eterno’.
Cristo vence e submete tudo à sua justiça e misericórdia. Não há angústia na espera dessa misericórdia que vem da vitória de Cristo, pois já participamos dela: “‘Não lhe resta mais senão esperar até que seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés’ (v. 13). Não indica em Cristo uma espécie de ansiedade, como nos homens; ‘a esperança adiada aflige a alma’, como diz o livro de Provérbios (13, 12), mas marca o desejo de mostrar a misericórdia que Deus reserva para nós. E Isaías 30, 18: ‘O Senhor espera o momento em que vos fará misericórdia’”.
A vitória de Cristo, pela qual ele sujeita todo mal, é igualmente tema do Evangelho de Marcos deste domingo: ‘Então, vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória’ (13, 26). Cristo inaugura para nós um sacrifício espiritual e não mais cruento, embora o tenha conquistado com sua morte. Esta submissão do mal é a Páscoa total de Cristo: “Estão, portanto, no final, reduzidos a servir de escabelo, isto é, à humanidade de Cristo; alguns por vontade própria, e é nesta submissão, isto é, em fazer a vontade dele, que consiste a sua salvação. Por isso, lê-se em Êxodo 10, 3: ‘Até quando recusarás a sujeitar-te a mim?’ Os ímpios, pelo contrário, estão sujeitos a ele, mas contra a sua vontade, porque não cumprindo a sua vontade por seu próprio movimento, esta vontade, no entanto, é realizada neles pela obra de sua justiça. É assim que, de uma forma ou de outra, todos lhe estão sujeitos, conforme o Salmo 8, 7: ‘Tu puseste todas as coisas debaixo de teus pés’”.
Tomás insiste em nos mostrar que o sacrifício de Cristo nos consagra a Deus, isto é, nos santifica: “Ao dizer: ‘De fato, com esta única oferenda, levou à perfeição definitiva os que ele santifica’ (v. 14), o Apóstolo atribui a razão do que acaba de apontar, a saber, por que Jesus se assentou como Senhor, e não como ministro, igualmente ele se postou como pontífice da lei antiga, pois esta não apagava os pecados com um único sacrifício, mas vários deles: ‘Pois todo sacerdote é escolhido dentre os homens, para oferecer dádivas e sacrifícios’ (Hb 5, 1). Porém, o sacrifício que Cristo ofereceu apaga todos os pecados”.
Não se pode isolar a morte de Cristo de sua Ressurreição, pois é pela Páscoa que Jesus santifica seu povo: Assim, Cristo foi oferecido uma vez para apagar os pecados de muitos. Isto é o que faz São Paulo dizer que, com uma única oblação, ele completou para sempre, isto é, aperfeiçoou, aqueles a quem santificou, reconciliando-nos e unindo-nos a Deus, como ao nosso primeiro princípio, porque Cristo, como vítima, que é Deus e homem, contém em si uma eficácia ilimitada para santificar: ‘Jesus, tendo que santificar o povo com o seu próprio sangue’ etc. É de fato por meio de Cristo que nos tornamos perfeitos e que nos unimos a Deus. ‘É por ele que temos acesso a Deus’ (Rm 5, 2)”.
E é o Espírito Santo que atualiza em nós o sacrifício único de Cristo: “Quando finalmente o Apóstolo diz: ‘O Espírito Santo no-lo testifica’ (v. 15), ele confirma o que acaba de dizer por uma autoridade, tirada de Jeremias 31, 33, sobre o qual não nos detemos, porque foi explicado anteriormente. Porém, digamos que pode ser dividido em duas partes. Primeiro, São Paulo cita esta autoridade; então ele extrai um argumento disso (v. 18): ‘Ora, onde existe o perdão, já não se faz oferenda pelo pecado’. Então aqui está seu raciocínio. No Novo Testamento, os pecados são perdoados pela oblação de Cristo, porque é para a remissão desses pecados que o sangue de Cristo foi derramado. Portanto, neste Testamento, onde os pecados e as iniquidades são perdoados, como se diz na passagem citada, não há mais necessidade de oblação pelos pecados. Compreendei: ‘de nova oblação’, pois ‘não são os que estão bem, mas são os doentes que precisam de médico (Mt 9, 12). [Uma nova oblação] seria um insulto à vítima do mundo, Jesus Cristo’”.
Um dos temas centrais da Carta aos Hebreus é o sacerdócio de Cristo e, por conseguinte, seu sacrifício, isto é, sua morte e ressurreição. Nenhum outro sacrifício é necessário depois do sacrifício de Cristo, do qual participamos espiritualmente, por poder e ação do Espírito Santo, conforme o próprio texto acima.
Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO