Literatura de inspiração católica (IV): padre Luís Gonçalves dos Santos

Tendo passado por dois importantes autores do período colonial, o jesuíta São José de Anchieta e o agostiniano Fr. José de Santa Rita Durão, chegamos ao período imperial com um padre secular. Nascido no Rio de Janeiro em 1767, sacerdote da diocese carioca padre Luís Gonçalves dos Santos que, dada a constituição franzina, seus olhos esbugalhados e sua voz fina e estridente, passou para nossa história com a alcunha de ‘padre perereca’, é reconhecido, sobretudo, como cronista do período joanino.

Filho de um ourives nascido no Porto, Luís Gonçalves foi batizado na Igreja de N. Sra. do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, então catedral do bispado. Manifestando grande pendor para os estudos, aos 19 anos já lia os Padres da Igreja, na língua grega, e fez uma elogiada tradução de discursos de Esquinos e Demóstenes. Foi ordenado presbítero em 1796, cantando sua primeira missa na solenidade de Pentecostes. Durante muitos anos, foi professor de gramática latina no Seminário São José. Em 1839, foi nomeado cônego do cabido da catedral, sendo também tesoureiro dos clérigos pobres da Irmandade de São Pedro.

Empenhando ativamente a pena para defender a separação do Brasil de Portugal no processo de independência, o padre Luís Gonçalves foi também um grande defensor do celibato sacerdotal, que era atacado muitas vezes na assembleia legislativa do Império inclusive – ninguém se assuste! – pelo padre Antônio Diogo Feijó, que viria a governar o Brasil no período da regência. Por isso, dentre outras obras, escreverá em 1827 O celibato clerical e religioso defendido dos golpes da impiedade e da libertinagem dos correspondentes da Astreia – com um apêndice sobre o voto em separado do Sr. padre Feijó. Entretanto, reconhecido os méritos de sua eloquente defesa, seja da independência, seja do celibato, sua obra mais célebre e lembrada são as suas Memórias para servir à história do Reino do Brasil, fonte indispensável sobre o período em que aqui viveu a Família Real portuguesa, entre 1808 e 1821.

“Havendo eu tido a felicidade de ver, o que jamais pensei, nem esperei ver na minha vida, o meu augusto soberano com a sua real família, parte da Corte, e grande número dos seus fiéis vassalos europeus desembarcando nas praias do Brasil […], desde logo tomei a resolução de escrever umas memórias de tudo quanto pudesse testemunhar, e chegasse à minha notícia.”[1] É com esse tom laudatório e admirado que o ‘padre Perereca’ nos transmitirá a memória daqueles anos em que por aqui desembarcou e viveu o único monarca europeu a ser coroado nas Américas, D. João VI. Sua obra, porém, tem importância em muitas dimensões. A descrição, por exemplo, que faz, na introdução da obra, da cidade do Rio de Janeiro antes da chegada da corte é preciosa pelas informações que dá acerca de ruas, prédios e instituições da então capital do Vice-reino do Brasil.

Graças a seus relatos, também sabemos que “por um antigo e louvável costume esta cidade do Rio de Janeiro se ilumina por três noites antes da festa do seu padroeiro, o glorioso mártir S. Sebastião.”[2] Muitas outras festas, procissões e expressões culturais são ainda registradas em seus relatos, montando, assim, um interessante quadro da sociedade carioca no período joanino. Merece especial atenção o relato do desembarque de D. João. Após ser recebido pelas autoridades e pelo cabido metropolitano no cais do Largo do Paço, hoje Praça XV, o príncipe regente e toda a família real seguiu em procissão pela atual Rua Primeiro de Março, então chamada Rua Direita, seguindo pela Rua do Rosário até a Igreja de N. Sra. do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos, então catedral, localizada na Rua da Vala, hoje Rua Uruguaiana:

Uma grande orquestra rompeu em melodiosos cânticos, logo que entrou S. A. R. com a sua augusta família; e ao som dos instrumentos, e vozes, que ressoavam pelo santuário, caminhou o príncipe regente Nosso Senhor com muito vagar e custo, por causa do imenso concurso que dentro da igreja se achava, até ao altar do Santíssimo Sacramento, e ali, saindo de baixo do pálio juntamente com as mais pessoas reais, se prostrou com a real consorte, e os augustos filhos, e filhas, ante o trono da majestade divina; entretanto cantavam os músicos o hino Te Deum Laudamus […]; renderam as suas homenagens a Santíssima Virgem Nossa Senhora, e ao glorioso mártir São Sebastião, padroeiro da cidade. Concluído o hino de graças e cantadas as antífonas Sub tuum praesidium, O Beate Sebastiane entoou o revmo. chantre o verso Domine, salvum fac Principem, etc, e cantou as orações respectivas a este ato, como prescreve o cerimonial. Concluída esta sagrada cerimônia, levantaram-se Suas Altezas e benignamente deram a mão a beijar a todos quantos se aproximavam as suas reais pessoas, sem preferência, nem exclusão de alguém.[3]

O beija-mão relatado pelo ‘padre Perereca’ é uma cena à parte do período joanino. Esse era um momento em que as classes sociais se misturavam. Pobres e ricos, escravos e livres se misturavam e concorriam para beijar a mão do soberano na esperança de lhe falar e pedir algum favor.

Apesar do julgamento assaz rígido de figuras como o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), e o célebre jornalista e cronista Luís Edmundo (1878-1961), que chama as Memórias do ‘padre Perereca’ de “literatura de confeitos e água-de-flor-de-laranjeira”, a obra do padre Luís Gonçalves dos Santos tem o grande valor de ser o testemunho de uma das épocas mais importantes da história brasileira. Cronista do período joanino e da independência, teve também o seu valor nos debates políticos e eclesiásticos de sua época. Reconhecido ainda em vida pela sua erudição, foi recebido em 1839 como sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Era também membro da Academia das Ciências de Lisboa. Morreu no Rio de Janeiro a 1 de dezembro de 1844, sepultado na cripta da Igreja da Irmandade de São Pedro. O cônego Januário da Cunha Barbosa, fundador do IHGB, pronunciou em sua sepultura o discurso fúnebre, afirmando que com a morte, cabia agora ao padre Luís Gonçalves dos Santos “ser acrescentado no catálogo dos mais distintos literatos, e dos mais sábios eclesiásticos brasileiros”.[4]

[1] SANTOS, Luís Gonçalves dos. Memórias para servir à história do reino do Brasil: divididas em três épocas da felicidade, honra, e glória. Brasília: Senado Federal, 2013, p. 33.

[2] Ibd., p. 289.

[3] Ibd., p. 305-306.

[4] Revista do Instituto Históricos e Geográfico Brasileiro, tomo VI, 1844, p. 506.

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