Agostinho: acaso morre Cristo outra vez?

Esta interessante questão retórica que Agostinho propõe ao início de sua segunda homilia sobre o Salmo 21, tem a finalidade de nos introduzir no mistério pascal. A morte de Cristo não pode ser separada de sua ressurreição. Por isso, temos de viver os mistérios de sua paixão com o olhar pascal, isto é, de que é a própria morte que foi vencida: “Não devemos calar e compete-vos ouvir aquilo que Deus não quis omitir nas Sagradas Escrituras. A paixão do Senhor, como sabemos, realizou-se uma só vez; uma só vez Cristo morreu, o justo pelos injustos (1Pd 3,18). Sabemos, temos certeza, sustentamos com fé inabalável que ‘Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte não tem mais domínio sobre ele’ (Rm 6,9). São palavras do Apóstolo. Não nos esqueçamos, contudo, de que a ação realizada uma só vez renova-se anualmente em memorial. Acaso Cristo morre todas as vezes que se celebra a Páscoa?” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos. Salmos 1-50’. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2014, p. 125).

Embora todo o sofrimento de Cristo, que seguiremos nas celebrações desta semana, não indiquem mais que Cristo está sofrendo, nós, porém, enquanto vivemos no sofrimento, prevemos na sua paixão a nossa vitória: “No entanto, a celebração anual de certo modo representa o que outrora se realizou, e assim nos comove, como se víssemos o Senhor pendente da cruz; não com zombarias, mas com fé. Ao pender do madeiro agora, e já não podemos irritar-nos contra os judeus que zombaram dele moribundo, mas não agora que reina? Quem é que ainda zomba de Cristo? Desejável seria que fosse um só, fossem dois, que se pudessem contar! Zomba dele toda a palha de sua eira, e geme o trigo, enquanto o Senhor é escarnecido. Por este motivo quero gemer convosco. É tempo de chorar. Celebre-se a paixão do Senhor. Tempo de gemer, de chorar, tempo de confessar, de suplicar. Quem de nós é capaz de derramar lágrimas condignas de tamanha dor? O que fala o profeta a respeito disso? ‘Quem fará de minha cabeça um manancial de água, e de meus olhos fonte de lágrimas’ (Jr 8,23)?”.

Por isso que se diz que somos o ‘odor’ de Cristo, isto é, o odor pascal de Cristo: “Irmãos, o que faremos das palavras que acabamos de ouvir? Se pudessem ser escritas com lágrimas! Quem era a mulher que entrou na sala com unguento (Mt 26,7)? De quem era tipo? Não seria da Igreja? O que figurava aquele unguento? Talvez o bom odor mencionado pelo Apóstolo: ‘Somos o bom odor de Cristo em todo lugar’ (2Cor 14,15)? Também o Apóstolo insinuava a própria Igreja, porque ao dizer: ‘somos’, refere-se aos fiéis. E o disse? Somos o bom odor de Cristo em todo lugar”.

As duras palavras do salmo que o Cristo dirigiu ao Pai na cruz recobrem o mistério que vimos comentando: “‘Deus, meu Deus, olha-me. Por que me desamparaste?’ Ouvimos este primeiro versículo, recitado pelo Senhor na cruz, ao dizer: ‘Eli, Eli’, que se traduz: ‘Meu Deus, meu Deus. Lama sabachthani?’, isto é, ‘Por que me desamparaste?’ (Mt 27,46). O evangelista verteu e narrou que ele disse em hebraico: Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?’ O que queria dizer o Senhor? Deus não o abandonara, porque ele era Deus. Efetivamente, Deus, filho de Deus, na verdade Deus, Verbo de Deus. Ouve como inicia seu escrito o evangelista, exalando o que bebera do peito do Senhor (Jo 13,23) e vejamos se Cristo é Deus: ‘No princípio era o Verbo e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus’. O próprio Verbo que era Deus, ‘se fez carne e habitou entre nós’ (ib 1,14). E quando o Verbo, Deus feito carne, pendia da cruz e dizia: ‘Meu Deus, meu Deus, olha-me, por que me desamparaste?’ assim se exprime porque nós lá estávamos com ele, porque a Igreja é o corpo de Cristo. Por que razão rezou: ‘Meu Deus, meu Deus, olha-me. Por que me desamparaste?’ a não ser para despertar nossa atenção e nos declarar: Este salmo foi escrito a meu respeito?”

O corpo dilacerado de Cristo põe-nos humanamente num dilema de vida e morte. Mas a única morte salvífica é a de Cristo: “‘Meu Deus, clamarei durante o dia e não me escutarás, e à noite, e não me será atribuída a loucura’. Falou efetivamente de mim, de ti, dele. Pois, representava seu corpo, isto é, a Igreja. A não ser, irmãos, que penseis que o Senhor tinha medo de morrer, pois disse: ‘Meu Pai, se é possível, que passe de mim este cálice’ (Mt 26,39). O soldado não é mais forte do que o general. Basta que o discípulo se torne como o mestre (Mt 10,25). Afirma Paulo, soldado de Cristo rei: ‘Sinto-me num dilema: o meu desejo é partir e ir estar com Cristo’ (Fl 1,23). Ele prefere a morte para estar com Cristo, e o próprio Cristo temeria a morte? A não ser que ele carregasse nossa fraqueza e assim se expressasse em lugar dos membros de seu corpo que ainda temem a morte. Daí provém aquela voz. Era a voz dos membros, não da cabeça. Igualmente aqui: ‘Clamarei durante o dia e à noite, e não me escutarás’”.

Os paradoxos da paixão de Cristo têm na história antiga sua prefiguração: “‘No entanto, habitas no santuário, ó glória de Israel’. Habitas naqueles que santificas, e fazes com que entendam o seguinte: Não atendes a alguns, visando ao bem deles, e a outros ouves para sua própria condenação. Paulo não foi atendido para seu bem; o diabo foi ouvido para sua condenação. Ele pediu permissão de tentar a Jó e foi-lhe concedida (Jó 1,11). Os demônios pediram licença para entrar nos porcos e foram ouvidos (Mt 8,31). Os demônios são atendidos; o Apóstolo, não! Mas eles são atendidos para sua condenação, o Apóstolo não é ouvido para sua salvação. ‘Não me será atribuído a loucura. No entanto, habitas no santuário, ó glória de Israel’. Por que razão não ouves também os teus? Por que estou dizendo isto? Lembrai-vos de repetir sempre: graças a Deus”.

É preciso percorrer liturgicamente todos os sofrimentos de Cristo para que a fragilidade do corpo humano se torne a força de Deus: “‘Minha força secou-se qual vaso de argila’. Foi magnífica afirmação: Meu nome se fortificou com a tribulação. A argila é mole antes de passar pelo fogo, depois torna-se resistente; assim o nome do Senhor antes da paixão era desprezado e depois é honrado. ‘Minha língua pegou-se ao paladar’. Este membro apenas nos serve para falar; assim que seus pregadores, isto é, sua língua, aderiram ao paladar, para de seu íntimo apreenderem a sabedoria. ‘Reduziu-me ao pó da morte’”.

Eis que essa força divina se manifesta na fraqueza: “‘Porque muitos cães me cercaram. Um bando de malvados me assediou’. Vede o evangelho. ‘Traspassaram-me as mãos e os pés’. Então abriram-se as chagas; e as suas cicatrizes foram tocadas pelo discípulo hesitante, que afirmara: ‘Se não puser meus dedos nas cicatrizes das chagas, não acreditarei’. Quando o Senhor lhe disse: ‘Vem, e mete a tua mão, incrédulo’, meteu a mão e exclamou: ‘Meu Senhor e meu Deus!’ E ele: ‘Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!’ (Jo 25,27.28) ‘Traspassaram-me as mãos e os pés’”.

Novamente, em todos os momentos da fragilidade da condição humana que vemos na paixão de Jesus, encontramos também elementos da sua virtude, o poder do Espírito: “‘Contaram todos os meus ossos’, quando pendia, estendido no madeiro. Não descreveria melhor a distensão do corpo no madeiro do que falar: ‘contaram todos os meus ossos’. ‘Estiveram a olhar-me e me examinaram’. Olharam e não entenderam. Examinaram e não viram. Pousaram os olhos na carne, mas o coração não atingiu o Verbo. ‘Dividiram entre si as minhas vestes’. Suas vestes, seus sacramentos puderam ser divididos pelas heresias. Mas havia ali uma veste que ninguém dividiu. ‘E sobre a minha túnica lançaram sortes’. A ‘túnica’, conta o evangelista, era ‘toda tecida de alto a baixo’ (Jo 19,23). Portanto, do céu, do Pai, do Espírito Santo. Que túnica é esta, senão a caridade, que ninguém pode dividir? O que é esta túnica, a não ser a unidade?”

Nós somos também o fruto do sofrimento de Cristo: “Ó Cristo, filho de Deus, se não quisesses não terias padecido. Mostra-nos o fruto de tua paixão. Ouve, diz ele, qual foi o fruto. Eu não me calo, mas os homens são surdos. Escuta qual foi o fruto de ter sofrido tanto. ‘Anunciarei o teu nome a meus irmãos’. Vejamos se anuncia o nome de Deus a seus irmãos só em uma parte da terra. ‘Anunciarei o teu nome a meus irmãos. No meio da Igreja te cantarei’. É o que acontece agora. Mas, vejamos qual é esta Igreja, uma vez que disse: ‘No meio da Igreja te cantarei’. Vejamos que Igreja é esta, pela qual padeceu”.

O Domingo de Ramos permite que vivamos os mistérios do sofrimento de Cristo já com o olhar pascal. Ouvimos a narrativa de sua entrada em Jerusalém, de seus sofrimentos e de sua morte. O salmo ressoa isso: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me desemparaste?’ Mas este mesmo salmo celebra a vitória do vencedor, que é capaz de dizer também ‘Vós que temeis ao Senhor Deus, dai-lhe louvores, glorificai-o’.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO  

 

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