A liturgia é poesia

A liturgia é poesia.

Não porque embeleza a fé com ornamentos inúteis, mas porque é o lugar onde o invisível se faz gesto, onde o eterno toca o tempo, onde o Verbo — Palavra feita carne — se oferece de novo, como canto, como rito, como silêncio.

Não é exagero dizer que a liturgia é o poema mais antigo ainda recitado, e o mais vivo.

Ela nos é dada como uma obra coral que atravessa os séculos, composta por santos e anônimos, por mártires e camponeses, por doutores e pescadores — todos afinando o coração na mesma tonalidade do Cordeiro. É por isso que ela não se fecha no passado, nem se curva ao presente. Ela transcende. Ela resiste. Ela permanece.

Joseph Ratzinger, com a precisão de quem pensa de joelhos, afirmou algo essencial sobre a linguagem litúrgica:

“A linguagem da liturgia deve ser uma linguagem elevada, mesmo que não rebuscada; não cotidiana, mas ao mesmo tempo compreensível, com o sabor e a dignidade do sagrado”¹.

É essa linguagem que o poeta reconhece: uma fala que não se explica, mas se contempla. Uma linguagem que não é apenas funcional, mas simbólica, sacramental — como a linguagem da poesia. Ambas falam ao coração sem pedir permissão à lógica. Ambas dizem mais do que dizem.

A liturgia é poesia porque se estrutura como um poema: tem ritmo, tem pausas, tem imagens, tem sons que ultrapassam a lógica para alcançar o coração. Tem início e fim, mas toca aquilo que não passa. No altar, como no poema, o mais importante nem sempre é o que se diz, mas o que se cala. O que permanece entre as palavras.

Romano Guardini compreendeu isso quando descreveu o verdadeiro objetivo da liturgia:

“A Liturgia quer que o homem entre em ordem com o mundo, com os outros homens e consigo mesmo, e, assim, fique pronto para o contato com Deus”².

Ela é obra de arte e oração ao mesmo tempo. Não nos pede eficiência, mas entrega. Não exige que a compreendamos como um discurso — pede que nos deixemos elevar por ela como quem é conduzido por uma música.

Aliás, talvez só a música se compare à liturgia. Ou melhor: talvez a liturgia seja a única música que nunca acaba.

Uma sinfonia cujas notas foram compostas no Céu, mas executadas no tempo. E mesmo quando não há instrumentos ou vozes, há o som da adoração. O som do silêncio cheio. O som de quem ouve — como Elias — a brisa leve onde Deus ainda fala.

Adélia Prado, com sua mística do cotidiano, sintetizou a força da liturgia com a beleza de quem vive a fé em carne viva:

“A poesia me salva. Eu rezo como quem escreve. E escrevo como quem reza”³.

Para ela, a liturgia não é uma fuga da realidade, mas sua transfiguração. Um modo de viver com olhos que enxergam mais fundo, de comer o pão como quem reconhece o Mistério, de tocar o cotidiano com mãos lavadas na pia batismal. Sua poesia é eucarística — não porque fala da Eucaristia, mas porque nasce dela.

Poesia e liturgia têm isso em comum: ambas são inúteis aos olhos do mundo, mas absolutamente necessárias à alma. Ambas exigem tempo, atenção, escuta. Ambas desinstalam. Ambas geram silêncio depois de si. E ambas ferem: ferem o orgulho, ferem a pressa, ferem a superficialidade.

A liturgia é o poema mais antigo e mais novo.

Repetida há séculos, e sempre nova.

Sempre a mesma Missa, e nunca a mesma comunhão.

Sempre a mesma Palavra, e sempre outro coração a recebê-la.

Ela é também como o vinho bom das bodas de Caná: servida por último, quando o mundo já acha que tudo perdeu o sabor.

Quem prova, percebe. Não é qualquer vinho — é o melhor. É Cristo que se dá em forma de festa e sacrifício, de memória e presença.

A liturgia nos reeduca. Ensina a andar mais devagar, a respirar melhor, a fazer silêncio. Ensina que o tempo não é apenas medida de produção, mas espaço de salvação. Ensina que o corpo, quando ajoelha, fala. Que o olhar, quando se eleva, adora. Que o canto, quando se oferece, se torna oração.

Ela é escola de contemplação, onde o rito revela a profundidade da realidade e nos afasta da tentação do superficial.

A liturgia não é distração — é atenção suprema. É ali, entre incenso e salmos, que o coração aprende a esperar. Aprende a ouvir. Aprende a adorar.

Talvez por isso a liturgia assuste quem quer uma fé rápida e sem mistério.

Ela exige. Convida. Provoca. Recoloca o homem no seu devido lugar: não como criador do sagrado, mas como criatura diante do mistério. A liturgia é a resposta obediente ao Deus que se revela com gestos concretos. E toda vez que tentamos reinventá-la fora dessa obediência amorosa, ela se empobrece. Perde sua música. Perde sua poesia.

Por fim, para usar uma expressão da moda, a liturgia bem celebrada é uma forma de resistência.

Em um tempo de algoritmos e impermanência, ela afirma o valor do gesto repetido, da fidelidade, da tradição viva.

Ela é a linguagem dos pobres em espírito, dos que sabem que não precisam criar algo novo para encontrar Deus.

Basta voltar ao altar. Repetir o gesto. Ajoelhar. Ouvir. Comungar.

E por isso, quando tudo em volta grita, a Igreja insiste em cantar.

Porque sabe que a salvação vem como um cântico que sobe.

Que o mundo não será salvo pela força, nem pela velocidade, mas — como disse Adélia — pela beleza. Pela beleza que salva porque é verdadeira. Pela beleza que é capaz de converter.

E como toda poesia, a liturgia incomoda os práticos, entedia os apressados, irrita os técnicos.

Porque ela não foi feita para ser dominada, mas acolhida.

Não foi feita para ser produtiva, mas fecunda.

Não foi feita para ser compreendida de imediato, mas para ser degustada como um salmo, como um vinho, como uma oração.

Nem todo mundo entende poesia. Nem todo mundo entende liturgia.

Mas quem entende — cala, contempla e comunga.

 

RAMON ORNELLAS

Administrador, agente do mercado financeiro e membro do Conselho para Assuntos Econômicos da Paróquia Cristo Operário e Santo Cura D’Ars.

 

Referências

  1. Joseph Ratzinger. Introdução ao Espírito da Liturgia. São Paulo: Loyola, 2001, p. 176.
  2. Romano Guardini. O Espírito da Liturgia. São Paulo: Cultor de Livros, 2010, p. 20.
  3. Adélia Prado. Entrevista concedida a Frei Betto. Revista Caros Amigos, abril de 2003.
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