A passagem do Evangelho de João em que Jesus nos ensina seu novo mandamento está inserida numa espécie de antecipação da despedida entre Jesus e seus discípulos. Em vista disso, Jesus lhes deixa um testamento: o mandamento do amor. Trata-se da passagem de João 13, 31-35. A ausência próxima de Jesus há de ser substituída por sua presença mística, cujo sinal e vitalidade é o amor ao próximo. Esta é a face de Jesus que veremos em sua Igreja, pois os discípulos não mais o verão como o viam. SantoTomás de Aquino propõe-nos um caminho muito peculiar para entendermos esta mística de amor de Cristo.
Comecemos pelo anúncio de sua partida: “Jesus prediz brevemente sua próxima partida, dizendo: ‘Filhinhos, por pouco tempo estou ainda convosco’. Ele usa as palavras de um pai a seus filhos para inflamar seu amor ainda mais, pois é quando os amigos são prestes a deixar um ao outro que brilham de amor: ‘Tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim’, 13, 1. Ele diz ‘filhinhos’ para mostrar imperfeição deles, pois não eram crianças perfeitas, porque ainda não amavam perfeitamente. Não eram perfeitos na caridade: “Meus filhos, por vós sinto, de novo, as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós’, Gl 4, 19. Haviam crescido um pouco em perfeição, porque de escravos tornaram-se criancinhas…” (Tomás de Aquino. ‘Commentary on the Gospel of John’: Chapter 13-21. By Fabian Larcher, O.P., and James A. Weisheipl, O.P. Washington: The Catholic University of America Press, 2010, p. 40, tradução do autor).
Jesus mesmo acentua a dificuldade de seus discípulos em segui-Lo: “Primeiro, ele nota o esforço deles: ‘Vós me procurareis’ Jo 13, 33b, a mim, a quem vós abandonastes espiritualmente por fugas e negações. ‘Vós me procurareis’, digo, em razão de vosso arrependimento, como fez Pedro, que chorou amargamente: ‘Buscai o Senhor enquanto ele pode ser achado’, Is 55, 6 e: ‘Na sua angústia me procuram’, Os 5, 15. Ou, ‘vós me procurareis’, ou seja, querereis minha presença em corpo: ‘Dias virão em que desejareis ver um só dos dias do Filho do homem, e não o vereis’, Lc 17, 22” (p. 41).
A fraqueza dos discípulos não é insuperável, assim como as nossas, porque a vitória é sempre do Ressuscitado: “Em segundo lugar, Ele mostra a fraqueza deles, dizendo, como disse aos judeus assim agora vos digo: ‘Para onde vou, não podeis ir’. No entanto, isso lhes foi dito de modo diferente. Alguns dos judeus nunca seriam convertidos, de modo que a estes se disse que não poderiam ir para onde Cristo estava indo. Mas agora que Judas se foi, nenhum dos restantes discípulos seriam separados de Cristo. E para eles não foi dito ‘não podeis ir’, e sim ‘agora vos digo’. É como se dissesse: disse aos judeus, isto é, aos obstinados entre eles, que eles nunca poderiam ir. Mas, a vós, digo, que por enquanto, não podeis seguir mim, porque não sois perfeitos o suficiente na caridade para quererdes morrer por mim” (p. 41).
Como alcançaremos a aptidão para seguir o Senhor? “Então, Jesus lhes ensina como eles se podem tornar aptos a segui-Lo: um novo mandamento vos dou. Primeiro, Ele menciona o especial caráter deste mandamento; em segundo lugar, mostra por que eles deveriam viver de acordo com esse mandamento (…). A característica deste mandamento é sua novidade. E assim Ele diz, um novo mandamento. Mas não tinha o Antigo Testamento, ou a Lei, um mandamento sobre o amor ao próximo? Sim, porque quando Cristo foi questionado sobre qual seria o maior mandamento, ele respondeu: “Amarás o Senhor teu Deus”, e continuou: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, Mt 22, 37. Isto também é encontrado em Levítico: ‘Amarás o teu próximo como mesmo’, 19, 18”.
A novidade do mandamento é sua eficácia: “No entanto, há três razões especiais pelas quais se diz que este mandamento é novo. Primeiro, por causa da novidade, da renovação, que ele produz: ‘já vos despojastes do homem velho e de seu modo de agir, e vos revestistes do homem novo, o qual se renova à imagem de seu Criador’, Cl 3, 9. Esta novidade vem da caridade, da caridade a que Cristo nos impele. Em segundo lugar, diz-se que este mandamento é novo pela causa que produz essa renovação: um novo espírito. Existem dois espíritos: o velho e o novo. O velho espírito é o espírito de escravidão; o novo é o espírito de amor. O primeiro produz escravos; o segundo, filhos por adoção: ‘vós não recebestes o espírito de escravidão para voltardes ao medo, mas recebestes o Espírito de filiação’, Rm 8, 15; “Dar-vos-ei um coração novo e porei dentro de vós um espírito novo”, Ez 36, 26. O espírito incendeia-nos com amor porque ‘o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Espírito’, Rm 5, 5. Em terceiro lugar, é um novo mandamento por causa da efeito que estabeleceu, isto é, uma Nova Aliança” (p. 42).
O amor de Cristo por nós é a referência para que possamos vivenciar todas as dimensões de seu mandamento: “A importância do mandamento é o amor mútuo, pois diz: ‘que vos ameis uns aos outros’. É da própria natureza da amizade não ser imperceptível, caso contrário, não seria amizade, mas apenas boa vontade. Para uma amizade verdadeira e firme, os amigos precisam de um amor mútuo, pois esta duplicação a torna verdadeira e firme. Nosso Senhor, querendo que haja perfeita amizade entre os seus fiéis e discípulos, deu-lhes este mandamento de amor mútuo: ‘Todo aquele que teme que o Senhor orienta corretamente sua amizade’, Eclo 6, 17. O padrão para este amor mútuo é dado quando ele diz ‘Eu vos tenho amado’. Ora, Cristo amou-nos de três maneiras: gratuita, efetiva e corretamente. Ele amou-nos gratuitamente porque começou a nos amar e não esperou que comecemos a amá-lo: ‘Não que tenhamos amado a Deus, mas porque ele nos amou primeiro’, 1Jo 4, 10. Da mesma forma que devemos primeiro amar o próximo e não esperar sermos amados por ele ou que ele nos faça um favor. Cristo amou-nos efetivamente, o que é óbvio pelo que ele fez, porque o amor é provado a partir do que se faz. A maior coisa que uma pessoa pode fazer por um amigo é se entregar por esse amigo. Isso é o que Cristo fez: ‘Cristo nos amou e se entregou por nós’, Ef 5, 2. Então lemos: ‘Ninguém tem maior amor do que aquele dá a vida por seus amigos’, Jo 15, 13. Também devemos ser guiados por este exemplo e amar uns aos outros de maneira eficaz e frutífera: ‘Não amemos com palavras ou com a boca, mas em obras e em verdade’, 1Jo 3, 18. Cristo amou-nos também corretamente. Já que toda amizade é baseada em algum tipo de partilha, pois a semelhança é causa do amor. A amizade correta é a que se baseia na semelhança ou no compartilhamento de algum bem. Ora, Cristo amou-nos como seus semelhantes pela graça da adoção, amando-nos à luz desta semelhança para nos atrair a Deus: ‘Eu vos amei com amor eterno, por isso vos atraí com misericórdia’, Jr 31, 3” (p. 43).
O paradoxo do mandamento do amor é justamente este, a presença ausente de Cristo: “Então, quando ele diz: ‘Por isso todos os homens saberão que sois meus discípulos’, Ele apresenta a razão para seguirmos este mandamento. Aqui podemos notar que quem está no exército de um rei deve usar o emblema desse exército. O emblema de Cristo é o emblema da caridade. Então qualquer um queira estar no exército de Cristo deve ser carimbado com o emblema da caridade. É isto o que se diz aqui: ‘Por isso todos os homens saberão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros’. Quero dizer, um amor santo: ‘Sou a mãe do belo amor e do temor, do conhecimento e da santa esperança’, Eclo 24, 24. Embora os apóstolos tenham recebido muitos dons de Cristo, como a vida, a inteligência e a boa saúde, bem como bens espirituais, como a capacidade de realizar milagres: ‘Eu vos darei palavras e sabedoria’, Lc 21, 15, nenhum deles é o emblema de um discípulo de Cristo, pois eles podem ser possuídos tanto pelos bons quanto pelos maus. Em vez disso, o sinal especial de um discípulo de Cristo é a caridade e o amor mútuo: ‘Ele pôs o seu selo sobre nós e deu-nos o seu Espírito’, 2Cor 1, 22” (p. 43).
Tomás reserva para o final de seu comentário o mistério maior do amor: o Espírito Santo, pois é n’Ele que acolhemos o mandamento. Jesus Cristo partirá em breve e ‘não mais O veremos’, mas Ele nos deixará o Espírito. Ele nos deixará duas heranças: o mandamento do amor, por testamento; e o Espírito, como aquele que torna real o amor em nós.
Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO