Um olhar para Lc 12,32-48: Onde estiver o tesouro, lá estará o coração!

Introdução

Lc 12,32-48 chama-nos à confiança na providência divina, ao desapego dos bens materiais e à vigilância constante na missão cristã. Nele, Jesus convoca seus discípulos, representados por Pedro, a viverem como fiéis administradores, conscientes de que sua vocação exige responsabilidade proporcional aos dons recebidos. Por meio de imagens como lombos cingidos, lâmpadas acesas e o inesperado ladrão, o texto revela a urgência de uma prontidão ativa, fundamentada na esperança do Reino e no serviço fraterno.

Somos confrontados com o contraste entre o servo diligente e o infiel, que serve de advertência àqueles que receberam encargos na comunidade de fé. A interpelação de Pedro e a resposta de Jesus nos convidam a refletir sobre as implicações da autoridade espiritual e o exercício prudente da liderança na Igreja. Por fim, a moral da parábola, “a quem muito foi dado, muito será exigido”, amplia seu alcance para toda a vida cristã, unindo conhecimento, responsabilidade e misericórdia como pilares da vocação e da missão.

 

  1. Texto bíblico

32 Não temais, pequeno rebanho, porque foi do agrado do vosso Pai dar-vos o Reino.

33 Vendei o que possuís e dai em esmola. Fazei para vós bolsas que não envelheçam, um tesouro inesgotável nos céus, onde os ladrões não chegam nem a traça destrói.

34 Pois onde está o vosso tesouro, lá também estará o vosso coração.

35 Estejam cingidos os vossos lombos e acesas as lâmpadas.

36 E sede semelhantes a homens que esperam o seu senhor voltar das núpcias, a fim de que, quando chegar e bater, logo lhe abram.

37 Bem-aventurados aqueles servos que o senhor, quando vier, encontrar vigilantes. Em verdade vos digo que ele se cingirá, os fará reclinar à mesa e, passando, os servirá.

38 E se ele vier na segunda ou na terceira vigília e assim os encontrar, bem-aventurados são eles.

39 Sabei, porém, isto: se o dono da casa soubesse a que hora o ladrão viria, não deixaria sua casa ser arrombada.

40 Também vós, ficai preparados, porque o Filho do homem virá na hora em que não pensais.

41 Disse, então, Pedro: “Senhor, dizes esta parábola para nós ou também para todos?”

42 O Senhor respondeu: “Quem é, pois, o fiel e sábio administrador, a quem o senhor colocará sobre a sua casa, para que, a seu tempo, lhes dê a porção de alimento?

43 Bem-aventurado aquele servo que o seu senhor, quando vier, encontrar fazendo assim.

44 Em verdade vos digo que o constituirá sobre todos os seus pertences.

45 Mas, se aquele servo disser em seu coração: ‘O meu senhor demora a vir’, e começar a espancar os servos e as servas, a comer, a beber e a embriagar-se,

46 o senhor daquele servo virá num dia em que ele não o espera e numa hora que ele não sabe, e o cortará ao meio e lhe dará a parte com os infiéis.

47 Aquele servo que, sabendo a vontade do seu senhor, não se preparou nem fez conforme a sua vontade, receberá muitos açoites;

48 mas aquele que não sabia, e fez coisas dignas de açoites, receberá poucos. A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito lhe será pedido.”

 

  1. Que diz o texto?

Lc 12,32-48 possui três momentos. O primeiro, vv. 32-34, faz parte da fala de Jesus sobre abandonar-se à divina providência (Lc 12,22-34), e complementa o ensinamento sobre a ganância dos bens (Lc 12,13-21). Já o segundo, vv. 35-40, trata do alerta sobre o retorno do Filho do homem. Enfim, o terceiro, vv. 41-48, resulta da interpelação de Pedro sobre o sentido da fala de Jesus e sua “direta” aplicação “voltada”, em primeiro lugar, para ele mesmo, que fez a pergunta, pois a resposta de Jesus fala do “administrador” no singular e parece ser uma clara alusão ao ofício que seria confiado a Pedro e aos seus sucessores. É importante lembrar que, quando o Evangelho de Lucas surgiu (70-75 d.C.), Pedro e Paulo, colunas da Igreja de Roma, já tinham sido martirizados.

Nota-se claramente, levando-se em consideração o contexto precedente, que Lc 12,32-34 é um clímax sobre o que significa abandonar-se à divina providência diante das preocupações básicas da vida: ter o que comer, beber e vestir. Tal abandono fica ainda mais forte ao se pensar nos missionários que, deixando suas casas, se dedicavam à evangelização. Ao lado disso, a ação despojada encontra maior sentido na caridade a favor dos irmãos e irmãs expostos às necessidades. A exortação de Jesus fundamenta o relato de At 4,32-35.

A prontidão aparece exemplificada nas alusões aos lombos cingidos e às lâmpadas acesas. No primeiro caso, é a prontidão para se caminhar. No segundo, caminhar inclusive à noite. Esta ação alude igualmente à disposição que os servos devem ter, sabendo que o seu senhor pode chegar a qualquer hora do dia ou da noite. Se pensarmos na instituição da Última Ceia, a ação insólita do senhor, que se cinge e serve seus empregados, deixa de ser incompreensível, pois Jesus não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos (Mt 20,28; Mc 10,45). Lucas, assim, disse a mesma coisa de forma diferente. A segunda vigília ocorria das 21h às 0h, ponto central da noite; e a terceira, das 0h às 3h, na qual acontecia o “canto do galo”.

A breve alusão à “hora do ladrão” serve para dissipar esperas imediatas a respeito da parusia, tornando a prontidão mais adequada na história. Dentre tantas palavras de Jesus, a sua comparação à vinda de um ladrão inesperado é, por muitos estudiosos, considerada uma alusão própria de Jesus (ipsissima verba Christi). A vinda de Jesus será uma irrupção repentina, por isso a imagem do “ladrão” serve para insistir sobre a prontidão dos discípulos. É um meio muito eficaz para se evitar a procrastinação no serviço, na missão e na evangelização.

A interpelação de Pedro não serve apenas para ampliar a fala de Jesus, mas oferece a ocasião para se introduzir o tema da responsabilidade da comunidade de fé e das relações entre líderes e fiéis. Assim se passa da exortação geral para a particular, visando quem for colocado como administrador da casa, correspondendo ao líder da comunidade de fé. O administrador não é o dono, que é Deus, nem tampouco o herdeiro, que é o “Filho do homem”, mas é quem conhece os desígnios de Deus revelados em seu Filho. Então, Jesus se dirigiu diretamente a Pedro e a todos os que, com ele, se tornariam servidores de seus irmãos e irmãs na sua Igreja.

Fidelidade e prudência devem ser as virtudes essenciais do administrador, que não goza de privilégios, mas recebeu grandes responsabilidades. Quem as cumprir, realizando a missão com zelo e cuidado, será constituído sobre todos os pertences de seu senhor. Jesus havia dito que os apóstolos se tornariam juízes das doze tribos de Israel (Mt 19,28; Lc 22,30). A bem-aventurança sobre o servo diligente nas suas tarefas diz respeito tanto à estima de seu senhor como à recompensa futura. Pensemos na parábola dos talentos (Lc 19,11-27).

Nos vv. 45-46, encontra-se a antítese, apresentando um administrador infiel e imprudente, porque o seu senhor tarda a voltar. Subjaz à mudança de comportamento a insensatez marcada pelo abuso do poder e pela posição que ocupa na casa do seu senhor. Em vez de cuidar dos servos, servas e de suas necessidades, os maltrata e vilipendia os bens do seu senhor, que é, de fato, o único dono da casa e de todos os seus pertences, incluindo os servos e servas. Ao administrador infiel cabe a perda da função e ser relegado ao grupo dos infiéis.

Tese, vv. 43-44, e antítese, vv. 45-46, não poderiam ser melhores para exemplificar o que Jesus, de forma profética, previu que poderia acontecer em sua Igreja. A história, nesses quase dois mil anos de cristianismo, confirma essa predição. Triste constatação! Ao lado de homens e mulheres, santos e santas, que em vida agiram e agem de forma consciente e vivem a fé e o ministério exercido na Igreja, encontram-se outros tantos que macularam e maculam sua fama e função no mundo, gerando descrédito, desconfiança e abandono da fé.

A moral da parábola é feita por duas sentenças que aludem diretamente ao comportamento devido, ou não, ao conhecimento que se tem, ou não, das consequências (agere sequitur esse). As últimas palavras de Jesus para concluir o seu ensinamento evocam Sb 6,6-7. Assim, justapõem-se conhecimento e responsabilidade, de um lado, e ignorância e responsabilidade, de outro. Por isso, Jesus aplica o princípio da proporcionalidade.

 

  1. Que propostas o texto faz?

Confiar irrestritamente na providência divina, pelo desapego material, não significa cruzar os braços e esperar que o necessário caia do céu. A partilha dos bens, pela caridade fraterna, é a forma eficaz de se vencer o egoísmo, o egocentrismo e o individualismo que têm reinado na mente e nos corações de muitos fiéis.

Vigilância e prontidão são duas atitudes que o fiel não pode deixar de ter e de cultivar ao longo da sua vida. Professamos a fé no retorno de Jesus Cristo, por isso devemos estar prontos para quando Ele nos chamar.

Essas atitudes não nos fazem descuidar dos dons e das responsabilidades que assumimos com o Batismo, em particular quem recebeu a Sagrada Ordem ministerial. A Igreja é o Corpo Místico de Jesus Cristo, e todos os seus membros são responsáveis pelo bem uns dos outros. Se o trabalhador é digno do seu salário, os fiéis têm o direito de receber boa comida, boa bebida e boas vestes: boa homilia e celebração digna.

Como bons administradores da multiforme graça de Deus, não podemos ser complacentes com o erro, mas misericordiosos com quem errou; tampouco abusar da autoridade que o Senhor Jesus confiou aos membros da sua Igreja. O Senhor tarda, mas a sua hora chegará para cada um de nós, e sabemos que cada um receberá a justa retribuição por tudo o que fez ou pelo bem que deixou de fazer, se tinha condição de fazê-lo.

A consciência que temos do plano salvífico de Deus nos torna responsáveis perante Ele e com os nossos irmãos e irmãs. Conhecer a vontade de Deus e ignorá-la, por palavras e ações, compromete a nossa felicidade.

O princípio da proporcionalidade recai sobre todos os níveis da nossa vida pessoal e eclesial, aplicando-se aos dons espirituais, às responsabilidades ministeriais e aos bens materiais; em particular ao dom da vida.

 

  1. Que o texto faz dizer a Deus em oração?

Senhor Jesus, pelo mistério da tua encarnação temos acesso aos bens que Deus Pai tem para nós reservado, mas em particular ao dom do Espírito Santo. Que sejamos dóceis à sua presença e moção em nossas vidas, pois é por Ele que podemos rezar devidamente a oração que nos ensinaste, e é Ele quem intercede por nós, pois conhece as profundezas de nosso íntimo e sabe o que é melhor para nós. Que estejamos atentos, vigilantes e dispostos a colocar em prática os teus ensinamentos, nos quais está o sentido pleno da nossa vida. Que sejamos diligentes, cautelosos e pressurosos no exercício da missão, desapegados dos bens terrenos, buscando, pela caridade e pela partilha dos dons, os bens do céu. Assim, como bons administradores, serviremos com amor, sem parcimônia ou abusando da vossa graça que nos conduz, mas que também não nos deixa esquecer que: “a quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito lhe será pedido”. Tu que vives e reinas com Deus Pai, na unidade do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amém.

 

  1. Que decisões o texto leva a tomar?

Confiar plenamente na providência de Deus e buscar o seu Reino acima de tudo, deixando a ansiedade e a preocupação excessiva com as necessidades materiais, pois a verdadeira riqueza vem d’Ele.

Viver com desapego material para acumular tesouros no céu requer a capacidade de usar devidamente os bens para a caridade e para o serviço a Deus, investindo em valores eternos que não se corrompem.

Viver em constante vigilância e prontidão, pela oração, sacramentos e obediência, certo do retorno do Senhor, sempre atento e preparado para o encontro com Jesus Cristo, seja na parusia ou no momento da morte.

Ser um administrador fiel e responsável dos dons recebidos: tempo, talentos, recursos, oportunidades e a própria fé, servindo aos irmãos e irmãs com esses dons para o bem e a promoção do Reino de Deus, ciente de que “a quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito lhe será pedido”.

 

  1. Relação entre Lc 12,32-48 e Sb 18,6-9; Sl 32; Hb 11,1-2.8-19

Deus libertou os filhos de Israel da opressão no Egito. Essa ação foi preparada pela vocação e missão de Moisés, líder que Deus colocou à frente do seu povo. Assim, Deus deu a conhecer os seus planos, de modo que todo o povo não só aderisse, mas, como resposta, fosse protagonista ao seu lado e de Moisés. Para tanto, necessitaram ficar vigilantes e prontos para o tempo da intervenção divina que ocasionaria a libertação do Egito.

A certeza da intervenção de Deus perpassa todo o Sl 32. Tudo isso reforça a noção de que o juízo e a salvação de Deus não são arbitrários. Quem se beneficiou com a libertação deve se tornar agente libertador. Se Deus alimenta o seu povo em tempo de penúria, o faz para ensinar o sentido da caridade fraterna, a fim de que a comunidade favoreça o bem comum. Desse modo, compreende-se que a quem muito foi dado, muito será pedido.

A definição de fé em Hb 11,1-2 e o seu reconhecimento na vida dos patriarcas permitem compreender como Deus conduz a vida e a história de quem n’Ele deposita a sua confiança. De modo insuperável, Jesus agiu assim, e o seu ensinamento sobre a vigilância e a prontidão requer do discípulo a mesma diligência no exercício da vocação e da missão, pelas quais o desapego aos bens torna-se apego às promessas de Deus, demonstrando as implicações práticas da fé, da esperança e da caridade que devem guiar os que chamou a conduzir a Igreja.

 

Considerações finais

Jesus ilumina o sentido profundo da vocação cristã: viver com confiança absoluta na providência divina, renunciar ao apego aos bens materiais e exercer com zelo a missão que nos foi confiada. A imagem do servo fiel e vigilante não é apenas um ideal, mas um chamado concreto à responsabilidade diante dos dons recebidos e da autoridade exercida em todos os níveis na comunidade de fé.

A parábola revela que a prontidão não se restringe apenas a uma expectativa escatológica, mas se traduz na vivência diária da caridade, do serviço e da integridade. A máxima final ecoa como critério ético e espiritual para todos os que conhecem a vontade de Deus e são chamados a testemunhá-la com fidelidade. O discípulo, consciente de sua missão, sabe que sua vigilância não é motivada pelo medo, mas pela fé, esperança, dedicação e amor ao Senhor Jesus, que sempre cumpre as suas promessas. Ele virá e quer nos encontrar prontos e vigilantes.

 

Padre Leonardo Agostini Fernandes

Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá-RJ

Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio

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