Em seu comentário ao livro da Sabedoria, São Boaventura, 1217-1274, conhecido como Doutor Seráfico, informa-nos, de início, que este livro bíblico trata de dois temas fundamentais para a vida dos governantes e dos prelados: a justiça e a sabedoria. O primeiro tema, isto é, a justiça, é tratado do capítulo 1 ao 5; o segundo, a sabedoria, do capítulo 6 ao final do livro. A perícope de hoje está inserida na segunda parte, versando assim sobre o tema da sabedoria, e é esta: “Qual é o homem que pode conhecer os desígnios de Deus? Ou quem pode imaginar o desígnio do Senhor? Na verdade, os pensamentos dos mortais são tímidos e nossas reflexões incertas: porque o corpo corruptível torna pesada a alma e tenda de argila oprime a mente que pensa. Mal podemos conhecer o que há na terra, e com muito custo compreendemos o que está ao alcance de nossas mãos; quem, portanto, investigará o que há nos céus? Acaso alguém teria conhecido o teu desígnio, sem que lhe desses Sabedoria e do alto lhe enviasses teu santo espírito? Só assim se tornaram retos os caminhos dos que estão na terra, e os homens aprenderam o que te agrada, e pela Sabedoria foram salvos”, Sb 9,13-18.
Ocorre que Boaventura subdivide seu comentário à segunda parte do livro da Sabedoria deste modo: “Ouvi, pois, ó reis, e compreendei: aprendei, vós que sois juízes dos confins da terra. Tendo aconselhado reis e governantes sobre a justiça, aqui o autor \[do livro da Sabedoria] começa a aconselhá-los sobre a busca e o amor à sabedoria: em primeiro lugar, por um argumento extraído do perigo do cargo daqueles que ele aconselha; em segundo lugar, no capítulo sete, por um argumento extraído de um exemplo daqueles a quem ele está aconselhando; em terceiro lugar, por um argumento tirado dos muitos benefícios da sabedoria que o autor recomenda, do capítulo dez até o fim”. (Boaventura. ‘Commentarius in librum Sapientiae’. ‘Opera Omnia’, vol. VI. Quaracchi: Ex Typographia Collegii S. Bonaventurae, 1893, p. 144). Entendemos, então, que a passagem que nos importa fixa-se no exemplo daqueles que devem buscar a sabedoria. E, mais especificamente, na dificuldade de se alcançar a sabedoria por esforços humanos.
Efetivamente, o caminho da sabedoria é árduo, que o digam os filósofos gregos! Portanto, que dizer da Sabedoria que vem do próprio Deus? “‘Qual é o homem que pode conhecer os desígnios de Deus? Ou quem pode imaginar o desígnio do Senhor?’ Aqui, \[o autor sagrado do livro da Sabedoria] mostra a dificuldade para se alcançar esse fim e explica: primeiro, que a vontade de Deus não pode ser conhecida sem a sabedoria; segundo, que ela só pode ser conhecida pela sabedoria: ‘Acaso alguém teria conhecido o teu desígnio, sem que lhe desses Sabedoria e do alto lhe enviasses teu Santo Espírito?’; terceiro lugar, a partir de uma comparação com as coisas sensíveis, ‘mal podemos conhecer o que há na terra’” (p. 169).
Resta-nos pedir ao próprio Deus: “Eu disse bem: ‘envia-a do teu santo céu’, pois ‘qual é o homem’, isto é, que simples homem, poderia conhecer, sem a sabedoria, o conselho de Deus?” O autor refere-se a prever e ordenar o que deve ser feito. Em Isaías 40,13, lê-se: “Quem ajudou o espírito do Senhor? Quem foi seu conselheiro e lhe ensinou o que devia fazer?” Ou quem poderia pensar, ou seja, conhecer ao pensar, qual é a vontade de Deus? Isto se aplicaria a quem pudesse realizar as coisas previstas, como se dissesse: ninguém! Daí, Romanos 11,33: “Ó profundidade das riquezas da sabedoria e do conhecimento de Deus!” (p. 169-170).
Mas não se trata de simplesmente pedir a Sabedoria, pois, até para pedi-la, encontramos dificuldades: “Pois os pensamentos dos mortais, a saber, enquanto permanecermos no estado mortal, são temerários, ‘ou seja, frágeis’, e isto se aplica a coisas que estão além da razão. E nossos conselhos incertos: ‘Porque a alma é mutável e a carne corruptível’, e isto se aplica às coisas que estão abaixo da razão e ao conhecimento do que é verdadeiro” (p. 170).
Toda a Escritura concorda neste ponto com o que diz o livro da Sabedoria: “Pois o corpo corruptível está continuamente sujeito à corrupção e, por isso, é comparado à podridão, conforme Jó 25,6: ‘quanto menos o homem, que é podridão, e o filho do homem, que é um verme!’ O corpo corruptível é um fardo para a alma, que mantém sua afeição pelas coisas celestiais, conforme Gálatas 5,17: ‘pois a carne se opõe ao espírito’. O corpo corruptível é um fardo para a alma. Nota que o corpo mancha a alma pelo pecado original, Jó 14,4: ‘Quem pode fazer sair o puro do impuro?’. Além disso, vincula a alma à necessidade do pecado venial, Romanos 7,15: ‘faço o mal que não quero’. Da mesma forma, o corpo empurra a alma para o pecado mortal, Gênesis 8,21: ‘porque os sentidos e os pensamentos do coração do homem são inclinados para o mal desde a sua juventude’. Da mesma forma, o corpo obnubila a mente na contemplação da verdade, conforme Sabedoria 2,5: ‘A nossa vida se desvanecerá como o rasto duma nuvem’, ou seja, interpõe-se um corpo opaco entre a alma e o sol da justiça. Além disso, o corpo retém as afeições de amor às coisas celestiais, como aqui: ‘o corpo corruptível é um fardo para a alma’. Além disso, impede e aprisiona as forças motivadoras do bem; Salmo 141,8: ‘Tira-me desta prisão’, ou do cárcere. Da mesma forma Romanos 7,15: ‘Porque não faço o bem que quero’. Além disso, provoca guerra contínua no espírito; Gálatas 5,17: ‘pois a carne se opõe ao espírito’. Ademais, a preocupação consigo mesmo perturba o espírito, contra o qual Mateus 6,31 diz: ‘Não vos aflijais, pois, dizendo: Que comeremos? etc.’. Mais, o corpo perturba a alma com suas aversões, Daniel 13,22: ‘De todas as partes me vejo cercada de angústias’. Da mesma forma, por sua capacidade de mudar, perturba e varia silenciosamente, Jó 14,2: ‘E nunca permanece no mesmo estado’” (p. 170).
E os efeitos da Sabedoria são claros na vida do sábio: “‘Acaso alguém teria conhecido o teu desígnio, sem que lhe desses Sabedoria e do alto lhe enviasses teu santo espírito?’ Aqui, o autor sagrado mostra que a vontade divina só pode ser conhecida por meio da sabedoria. Ele mostra isso atribuindo-lhe um efeito triplo, a saber, um efeito de ensinar à inteligência; um de corrigir as faltas: ‘Só assim se tornaram retos os caminhos dos que estão na terra’; o de sanar a natureza: ‘e pela Sabedoria foram salvos’” (p. 170).
Embora a Sabedoria de Deus esteja em todas as suas obras, somente pelo Espírito Santo a alcançaremos: “‘Acaso alguém teria conhecido o teu desígnio?’, isto é, o conselho e a vontade de Deus? Isso equivale a dizer: ninguém. A menos que dês sabedoria, para iluminar o intelecto, conforme Eclesiástico 1,10: ‘Ele a difundiu por todas as suas obras (…) e a comunicou aos que o amam’; Tiago 1,5: ‘Deus a dá a todos abundantemente’; e Daniel 2,21: ‘Deus dá sabedoria aos sábios e conhecimento aos entendidos’. E envias teu Espírito Santo, inflamando os afetos, como se dissesse: ninguém! Pois, ‘com efeito, qual dos homens conhece as coisas que são do homem, senão o espírito do homem, que está nele? Assim, também, as coisas que são de Deus ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus?’ 1Coríntios 2,11” (p. 170).
Assim, a sabedoria cura a todos aqueles que agradam ao Senhor, ou seja, aqueles que dele se aproximam. Ela é convincente. Por isso, Jesus, no evangelho deste domingo, indaga-nos sobre a nossa sabedoria humana: “Quem de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar?”, Lc 14,28, para, no fundo, dizer: “qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo!”, Lc 14. “E assim, continua Boaventura, pelo dom da sabedoria e pelo envio do Espírito Santo, os caminhos são corrigidos, isto é, as obras dos que estão na terra, isto é, dos homens, afastando-os do mal, conforme João 16,8: ‘O Paráclito convencerá o mundo’. E ele diz bem: os caminhos dos que estão na terra, isto é, dos pecadores. Porque os caminhos dos anjos pecadores não podem ser corrigidos. ‘E os homens aprenderão as coisas que te agradam’, por conformação ao bem, assim, João 14,26: ‘O Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai vos enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas’” (p. 170).
Ao apresentar a condição da razão humana, enfraquecida pela propensão ao erro, Boaventura enfatiza que a verdadeira sabedoria não é fruto do esforço pessoal, mas dom do Espírito Santo, que ilumina o intelecto, corrige a vontade e guia a ação. Nesse sentido, a sabedoria é mais do que conhecimento: é o princípio de uma vida justa, do discernimento moral e da comunhão com a vontade de Deus.
A obra do Doutor Seráfico ecoa toda a tradição bíblica e patrística, que enfatiza a inadequação do mero conhecimento humano para realizar os propósitos divinos. A sabedoria celestial é luz e cura: luz para compreender a vontade de Deus e cura para curar nossas feridas. Para Boaventura, portanto, a grandeza humana não reside em dominar a terra por meio da engenhosidade, mas no humilde reconhecimento das próprias limitações e na busca cheia de fé pela sabedoria que vem do alto.