Um olhar para Lucas 16,19-31: “Há um grande abismo entre nós”

Introdução

A parábola do rico esbanjador e de Lázaro, narrada em Lc 16,19-31, é uma das mais provocativas e impactantes do terceiro evangelho, desafiando o leitor a refletir sobre a relação entre riqueza, justiça e destino eterno. A nossa reflexão articula os elementos bíblicos com a realidade contemporânea, à luz da missão de Jesus e do discipulado cristão. A análise textual e estrutural da parábola identifica seus momentos narrativos e destaca os personagens em seus contrastes existenciais. A proposta é conectar com a nossa vida socioeclesial e com os desafios éticos do presente, culminando em atitudes concretas de conversão, oração e compromisso com a justiça. Trata-se de uma abordagem que une fidelidade ao texto bíblico com sensibilidade pastoral, convidando-nos a atravessar o “grande abismo” da indiferença e a viver segundo a lógica do Reino de Deus.

 

Texto bíblico

19 Ora, certo homem era rico, e vestia-se de púrpura e linho fino, alegrando-se esplendidamente dia após dia. 20 Mas certo pobre, de nome Lázaro, estava junto ao seu portão, cheio de feridas, 21 e desejava saciar-se das migalhas que caíam da mesa do rico; até os cães vinham lamber suas feridas. 22 Aconteceu, porém, que morreu o pobre, e foi levado pelos anjos para o seio de Abraão; morreu também o rico e foi sepultado. 23 E no Hades, levantando os olhos, estando em tormentos, viu Abraão de longe e Lázaro em seu seio. 24 E, clamando, disse: “Pai Abraão, tem misericórdia de mim, envia Lázaro para que molhe a ponta do dedo dele em água e refresque a minha língua, porque estou sofrendo nesta chama”. 25 Disse, porém, Abraão: “Filho, lembra-te de que recebeste os teus bens durante a tua vida, e Lázaro, ao invés, os males; agora, porém, ele é consolado aqui, e tu, atormentado. 26 E, além de tudo isso, entre nós e vós um grande abismo foi estabelecido, para que os que querem passar daqui para vós não possam, nem os daí passar para nós”. 27 Ele disse então: “Rogo-te, pois, pai, que o envies à casa de meu pai, 28 pois tenho cinco irmãos, para que lhes dê testemunho, a fim de que também eles não venham para este lugar de tormento”. 29 Abraão, porém, disse: “Eles têm Moisés e os Profetas; ouçam-nos”. 30 Ele, porém, replicou: “Não, pai Abraão, mas se alguém dos mortos for até eles, se arrependerão”. 31 Ele, porém, lhe respondeu: “Se não ouvem a Moisés e aos Profetas, tampouco se deixarão persuadir por alguém que ressuscite dos mortos”.

 

Que diz o texto?

A fala de Jesus, pelo contexto, parece ter sido dirigida aos fariseus que zombavam dele por ensinar o desapego às riquezas e para que aprendessem a fazer um bom uso delas (Lc 16,14-15). O texto em questão possui muitos pontos que apontam, de fato, para os fariseus, pois estes acreditavam em anjos (v. 22), na vida eterna para justos: o seio de Abraão (v. 22); na vida eterna para injustos: Hades ou mansão dos mortos (v. 23); além de Moisés também acreditavam nos Profetas (vv. 29-30) e na ressurreição (vv. 30-31).

Contudo, o maior alvo de Jesus são os seus discípulos que o acompanham na peregrinação rumo a Jerusalém, onde viverá o seu mistério pascal que culmina com a sua ressurreição, ponto alto do diálogo que se instaurou entre “o que fora rico” e Abraão (vv. 27-31).

Nota-se que os vv. 19-21 apresentam a introdução da narrativa e das ações dos dois personagens: o rico esbanjador e o pobre Lázaro (Eleazar em hebraico: “Deus ajudou”; “Deus socorreu”). Os vv. 22-23 apresentam a complicação da narrativa: a morte dos dois personagens, mas com desfechos antagônicos. Nos vv. 24-30 surge o clímax pelo diálogo entre “o que fora rico” no Hades e Abraão. O v. 31 apresenta o desfecho da narrativa.

Na introdução e ações se encontram a voz de Jesus, que está narrando, e a alusão aos dois personagens centrais, o rico esbanjador e Lázaro, com suas situações em contraste, estabelecendo o cenário e o conflito inicial: riqueza versus miséria. A morte de ambos e a inversão de suas condições antitéticas na realidade pós-morte mostra a virada na narrativa. Enquanto Lázaro foi para o seio de Abraão, conduzido por anjos, “o que fora rico” morre e foi enterrado, passando a viver no Hades ou mansão dos mortos. Atesta-se, então, que a sorte no pós-morte não será igual para todos e depende de como viveram nesta existência.

No diálogo entre “o que fora rico” e Abraão, a quem chama de “pai”, é o ponto alto do drama. Abraão recusa os dois pedidos feitos por quem chama de “filho”, mas que se encontra no Hades. Além disso, há uma lição da parábola: após o destino decretado na morte é impossível haver mudança de estado: “há um abismo”. Em vida, a mudança é possível, pois a leitura de Moisés e os Profetas, na sinagoga, era considerada suficiente para levar ao arrependimento e à mudança de vida. A narrativa é encerrada com uma afirmação impactante e que leva o ouvinte-leitor a ser confrontado com a verdade ensinada por Jesus por meio da parábola.

Em Lc 16,14-15 percebe-se que os fariseus, mestres da Lei mosaica e conhecedores da Lei e dos Profetas, demonstraram resistência aos ensinamentos de Jesus, atestando a sua cegueira espiritual e seu apego às riquezas. Nesse sentido, o desfecho da parábola (v. 31) poderia ser uma profecia velada sobre a própria ressurreição de Jesus. Esta é o tema central do Kerygma, diante do qual houve muitas dúvidas e rejeição: os discípulos sofreram por causa do anúncio da ressurreição (At 4,1-3); forte embate foi declarado e houve calúnia contra os testemunhos da ressurreição (Mt 18,11-15). Além disso, é preciso ligar a parábola com Jo 11, pois Jesus ressuscitou o amigo Lázaro, o que gerou fé em alguns e aversão em quem decidiu pela morte de Jesus.

Essa percepção conecta a parábola, contada por Jesus, com o drama real da sua vida, paixão, morte e ressurreição e o ministério da Igreja. Assim, o centro da questão não é a falta de evidência da ressurreição, mas a dureza do coração em acreditar no testemunho dos apóstolos com base nas Escrituras: Moisés e os Profetas, lidos todos os sábados nas sinagogas (At 3,17-24; 13,14-15.26-33; 15,21; 26,22-23).

 

Que propostas o texto faz?

Ao invés de acumular bens, somos chamados a partilhar não apenas o que se encontra sobre nossas mesas ou em nossos armários, mas também os bens espirituais, o conhecimento, a atenção, os afetos, promovendo a vida justa e digna para todos. A riqueza em si, ou ter riqueza, não é o real problema, mas o uso que dela se faz.

Não sermos alheios à urgência de superar a indiferença diante do sofrimento do próximo. Como discípulos de Jesus não podemos ter em nós as atitudes do rico esbanjador. Ao contrário, somos chamados a ter os mesmos sentimentos de Jesus que, embora sendo rico, se fez pobre para nos enriquecer, ensinando-nos a ter compaixão por cada pessoa sofrida e nunca nos fechando à sua dor e miséria.

A mudança do nosso comportamento não depende de milagres, mas da mudança de mentalidade. Esta é possível pela leitura, meditação e obediência cotidiana à Palavra de Deus. Não temos somente Moisés e os Profetas, temos Jesus que nos ensina o caminho do bem, da justiça, da verdade e da misericórdia, revelando-nos o caminho da caridade e fraternidade que concretiza a vontade salvífica de Deus em nossas vidas.

Viver o presente com responsabilidade e amor ao próximo prepara a eternidade. Se a distância entre “o que fora rico” e Lázaro, no além desta vida, reflete as escolhas feitas no tempo presente, então o nosso hoje deve ser vivido segundo a lógica do Reino de Deus, pautado nas obras de misericórdia corporal e espiritual.

 

Que o texto faz dizer a Deus em oração?

Senhor nosso Deus, reconhecemos que a indiferença, a avareza e a cobiça são as raízes da pobreza que aflige tantas pessoas e famílias no mundo. Quando o nosso coração se fecha ao próximo, a justiça se reduz a “dar a cada um o que lhe é devido” e se esquece de curar e restaurar as relações humanas rompidas pela discriminação por raça, cor, gênero ou condição social.

Iluminai-nos com o vosso Santo Espírito, para que, à luz da Boa Nova proclamada pelo vosso Filho Jesus, possamos ver a realidade e as necessidades dos irmãos e das irmãs que sofrem. Concedei-nos a graça de viver o júbilo que Jesus inaugurou na sinagoga de Nazaré – libertação dos cativos, cura dos cegos, libertação dos oprimidos e proclamação do ano da graça do Senhor – de modo que a nossa partilha seja um sinal visível de que o vosso Reino de amor, justiça e paz já está entre nós.

Que a nossa vida reflita as obras de misericórdia que o Evangelho nos chama a praticar, e que, como Paulo e seu companheiro Timóteo, busquemos a justiça, a piedade, a fé, o amor, a firmeza e a mansidão em nossa vivência cristã neste mundo. Ajudai-nos a transformar cada bem ou riqueza que possuímos em recurso para dar esperança aos que estão à margem, tornando-nos verdadeiros arautos da caridade e promotores da paz num mundo dilacerado por guerras, divisões e ódio.

Confiamos no vosso justo julgamento, sabedores de que um dia compareceremos diante de Vós, o único juiz que jamais será vencido. Que o nosso testemunho seja sempre voltado para a prática do bem, da verdade e da justiça, a fim de que, guiados pelo vosso Filho Jesus Cristo, na unção do Espírito Santo, possamos participar da sua missão redentora e alcançar a vida eterna. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus, e convosco vive e reina, na unidade do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amém.

 

Que decisões o texto leva a tomar?

A parábola contada por Jesus retrata a indiferença e a ganância de quem se vestia bem, se banqueteava todos os dias, mas era incapaz de ver o pobre chagado que mendigava migalhas debaixo da sua janela. Um cristão, com base nessa parábola, é chamado a rever sua postura diante de suas posses e bens, se tem sido ou não capaz de usá-los não apenas a favor de si mesmo, mas para socorrer os mais necessitados. Como aumentam, entre nós, o número de pessoas desabrigadas, desamparadas, buscando o que comer nas latas de lixo e até nos lixões. A justiça social não é apenas uma questão de ordem pública ou política, é também uma questão de solidariedade.

Preocupar-se em acumular nesta vida e despreocupar-se com a vida após a morte torna-se uma grande contradição em quem acredita em Deus e opta por seguir Jesus. Faz parte do discipulado renunciar a si mesmo, o que implica, de igual modo, a renúncia ao egoísmo pelos próprios bens, para nada antepor a Jesus Cristo e ao seu Evangelho. A hierarquia de valores para um discípulo de Jesus é buscar primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, sabedor de que o mais vem por acréscimo e que este deve ser partilhado com os menos favorecidos.

A decisão de nada antepor a Jesus Cristo em nossa vida implica na séria decisão de ler e meditar a Palavra de Deus diariamente e de cultivar a vivência sacramental. Essas ações são meios ordinários para se alcançar e se viver na graça de Deus, que nos faz experimentar, já nesta vida, a presença de Deus e, assim, nos prepara para o encontro definitivo com Ele no juízo para, então, viver eternamente na sua glória.

 

Relação entre Lc 16,19-31 e Am 6,1a-4; Sl 145 (146); 1Tm 6,11-16

Os profetas e sábios, ao longo da história bíblica, sempre denunciaram a riqueza injusta de poucos coexistindo com a miséria de muitos. Amós, em seu tempo, percebeu que a prosperidade de Israel, sob o reinado de Jeroboão II, era uma ilusão para poucos. A riqueza, fruto da opressão, estava concentrada nas mãos de uma minoria insensível. Para ele, essa abundância material, na qual os ricos depositavam sua segurança, não teria poder salvífico, mas, ao contrário, seria a causa da destruição de Samaria e do exílio do povo.

Essa mesma lógica de juízo foi reforçada por Jesus. Na parábola do rico e de Lázaro, Ele mostrou que a ganância e a falta de compaixão levam a uma condenação eterna. A mensagem é clara: a riqueza acumulada sem compaixão não serve de escudo diante dos homens e tampouco livra das consequências da injustiça.

O alicerce da denúncia de Amós e da parábola de Jesus é a convicção de que Deus é o protetor dos menos favorecidos. Como afirma o Salmo, Deus é justo e não aceita a injustiça, voltando seu olhar para aqueles que sofrem com a maldade e a indiferença dos abastados. Esse princípio foi manifestado de forma sublime em Jesus, que, ao iniciar seu ministério, proclamou seu projeto messiânico. Conforme Lc 4,18, concretizando Is 61,1-2a, Jesus anunciou a “boa nova aos pobres, a libertação dos cativos, a recuperação da vista aos cegos, a liberdade aos oprimidos e a proclamação do ano da graça do Senhor”. Sua missão era, portanto, transformar a realidade de opressão em um sinal visível do Reino de Deus que promove a caridade fraterna.

O verdadeiro discipulado se concretiza no serviço aos necessitados, como exemplificado nas obras de misericórdia corporal (Mt 25,31-46). Viver segundo esse padrão é reconhecer que a salvação se manifesta na prática da justiça, da piedade, da fé, do amor e da mansidão, como exortado por Paulo a Timóteo. A mensagem final é unificada: rejeita o egoísmo e abraça a justiça e a compaixão. A verdadeira riqueza não está no acúmulo material, mas na vida virtuosa, pois no juízo final seremos avaliados pela prática baseada na fé e na caridade.

 

Considerações finais

A parábola do rico esbanjador e de Lázaro, contada por Jesus, não é apenas uma denúncia da indiferença humana diante do sofrimento alheio, mas um chamado urgente à conversão e à vivência concreta das obras de misericórdia. O “grande abismo” da parábola que separa os dois personagens no além é, na verdade, construído pelas escolhas feitas no tempo presente. À luz da Palavra de Deus, somos chamados a romper com a lógica da acumulação egoísta e a abraçar o caminho da compaixão, da justiça e da partilha. Conhecer e viver segundo os ensinamentos de Jesus é antecipar por palavras e ações, já nesta vida, a realidade do Reino de Deus, onde não há abismos, mas pontes de fraternidade e de solidariedade. Que sejamos pontes e não abismos!

 

Padre Leonardo Agostini Fernandes

Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá – RJ

Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio

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