“Dai, pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21). Muitas vezes, essa passagem do Evangelho de São Mateus é utilizada como uma tentativa de negar qualquer forma de utilização de bens temporais por parte das diversas instituições religiosas, sejam cristãs ou não. De fato, o tema dos bens temporais utilizados pelas instituições religiosas, nas últimas décadas, tem sido objeto de muitas análises, reflexões e, também, duras críticas. Chegamos a observar um verdadeiro processo de mercantilização da fé, quando não poucos enxergam a religiosidade e a fé como um verdadeiro nicho de mercado a ser explorado e capitalizado.
No entanto, a Igreja Católica trata do tema dos bens temporais com muito zelo, cuidado e responsabilidade. Compreende os bens temporais como um instrumento e não como uma finalidade. Por isso é importante, de modo especial, para nós católicos, compreender com clareza como a Igreja orienta e ordena a administração e utilização dos bens temporais no exercício de sua missão apostólica.
Direito Canônico é o conjunto de leis que rege a estrutura institucional da Igreja Católica Apostólica Romana. Ele regulamenta todos os segmentos da vida eclesiástica: sua organização, governo, ensino, culto, disciplina e práticas processuais. Podemos dizer também que o direito eclesial compreende a totalidade da missão da Igreja no mundo, em seus três aspectos fundamentais: a missão de governar, a missão de ensinar e a missão de santificar. Atualmente esse conjunto de leis está condensado no Código de Direito Canônico, que foi promulgado em 25 de janeiro de 1983 pelo Papa São João Paulo II.
O Código de Direito Canônico é composto por sete livros e reserva um livro completo, o livro V, para ordenar a questão dos bens temporais da Igreja. O primeiro cânon sobre o tema, o cânon 1.254, no parágrafo primeiro, trata do direito nativo, independente do poder civil, de a Igreja adquirir, possuir, administrar e alienar bens temporais. Ao mesmo tempo, já deixa clara a finalidade que é a consecução de seus fins próprios. O parágrafo segundo vai apresentar quais são os principais fins próprios: organizar o culto divino, conveniente sustento do clero e demais ministros, praticar obras de sagrado apostolado e de caridade, principalmente em favor dos pobres.
Podemos, contudo, nos perguntar: como essa organização se dá na prática cotidiana? Como a Igreja Católica, presente no mundo inteiro organiza a administração dos bens temporais e sua utilização na consecução de seus fins próprios?
Ao olharmos a Igreja Católica como um todo, precisamos compreender a forma como a sua presença, em todo o mundo, se organiza. Para isso, podemos usar como exemplo o Brasil. Hoje a Igreja Católica no Brasil possui 280 circunscrições eclesiásticas, que podem ser: arquidioceses, dioceses, prelazias, eparquias, administração apostólica, exarcado e ordinariatos. Essas circunscrições eclesiásticas, na sua maioria, correspondem a um determinado território geográfico no país e conta com um bispo, que tem a missão de pastorear a porção do povo de Deus que está naquele território confiado ao seu ministério episcopal – a essa realidade podemos chamar de Igreja Particular. A Igreja Particular, por sua vez, é organizada, de modo geral, em paróquias, confiadas ao cuidado pastoral de um pároco, que é, por mandato do bispo diocesano, o pastor próprio daquela porção do povo de Deus que forma a paróquia. A Arquidiocese do Rio de Janeiro, por exemplo, hoje está organizada em 292 paróquias.
Em cada paróquia, temos a realização das finalidades da Igreja, de modo especial: prestar culto a Deus, exercer o apostolado e as obras de caridade. Para executar essas ações a paróquia conta com as ofertas, doações, dízimos, esmolas. Por mais incrível que possa parecer, muitos pensam, ainda em nossos dias, que a Igreja Católica recebe dinheiro do Governo brasileiro, que os padres recebem as côngruas (valor mensal recebido para suas necessidades pessoais) do Governo, que a Igreja Católica não precisa pagar as taxas como luz, água etc. Creio que seja, ainda, consequência do período do padroado régio, que foi extinto com a proclamação da República e o fim da Monarquia no Brasil.
De fato, para a manutenção do culto e o exercício do apostolado católico, a paróquia tem diversas despesas. Por exemplo, os funcionários das paróquias devem receber seus salários em dia, os tributos trabalhistas devem ser gerados mensalmente e pagos em dia, a energia elétrica deve ser paga, aquela transmissão online de alguma atividade só será possível caso a conta da internet esteja em dia. Nossas paróquias, mensalmente, entregam cestas básicas às famílias carentes. Muitas vezes os alimentos arrecadados durante o mês não são suficientes e é necessário completar os mantimentos das cestas básicas. Enfim, são diversas as situações em que podemos verificar como as ofertas, dízimos e doações são responsáveis pelo custeio das despesas na manutenção do culto e das ações do apostolado da Igreja.
Então, podemos perguntar: como se dá a administração dos bens temporais na paróquia? Como posso saber se a oferta que eu faço, de fato, é utilizada na minha paróquia? Existe algum tipo de controle sobre as entradas e saídas desses valores?
O pároco, ao tomar posse do ofício, recebe a provisão (documento de nomeação) do bispo diocesano para cuidar da paróquia e passa a representá-la oficialmente, em nome da Igreja. Com isso, passa também a ter a obrigação de prestar contas, mensalmente, ao setor de administração central da diocese, de todas as receitas e despesas da paróquia. Além da prestação de contas mensal, em cada paróquia deve ser constituído um conselho paroquial de assuntos econômicos, formados por alguns representantes da comunidade paroquial, que são responsáveis por auxiliar o pároco na administração da paróquia. Além de que, embora represente legalmente a paróquia, essa representação está limitada àquela administração que chamamos ordinária. Quando se trata de um ato de administração extraordinário, por exemplo a alienação ou venda de um bem do patrimônio da paróquia, para o ato ter validade, é necessária a licença do bispo diocesano. Este, por sua vez, para conceder a licença, dependendo do valor em questão, precisará do consentimento do conselho econômico da diocese e do colégio dos consultores. Em alguns casos, em que o valor do bem ultrapasse o valor máximo para atos de administração extraordinários, valor definido pela conferência episcopal, será ainda necessário que o bispo diocesano solicite a autorização da Santa Sé para que esse ato de alienação ou venda tenha validade.
Percebemos, assim, como a Igreja trata com seriedade esse tema, tendo criado ao longo do tempo instrumentos de controle e acompanhamento, para proporcionar uma boa gestão e a reta administração dos bens temporais. O cânon 1.284 afirma que todos aqueles, com a função de administrar bens temporais na Igreja, têm a obrigação de agir com a diligência de um bom pai de família. Portanto, a Igreja, consciente de sua missão de anunciar o Evangelho de Cristo, vê os bem temporais como instrumentos e não como fim. Os bens temporais devem ser auxílio nas ações da Igreja e jamais devem ser a finalidade da ação da Igreja.
Desse modo, a Igreja dá a César o que é de César. Contudo, sem jamais deixar de realizar o mais importante, no exercício de sua missão apostólica por meio das obras do apostolado, da caridade e, sobretudo, do culto divino, que é a Igreja dar a Deus o que é de Deus, pois tudo dever ser por Cristo, com Cristo e em Cristo.
Padre Carlos Augusto Azevedo da Silva do clero da Arquidiocese do Rio de Janeiro
Doutorando em Direito Canônico
Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma