A lei do Senhor é perfeita, imaculada. Não há nada mais antipático do que falar em leis quando se busca o consolo de Deus. Contudo, a lei de que se fala o Salmo 18 revela-nos, segundo Santo Agostinho, um consolo que não é meramente legal. Tudo é obra do Espírito.
O Espírito Santo converte, dá sabedoria, ilumina, opera em nós, porque o Senhor Jesus age por meio do Espírito: “‘A lei do Senhor é imaculada, converte as almas’, quer dizer, o Espírito Santo. ‘O testemunho do Senhor é fiel, dá sabedoria aos pequeninos’, não aos soberbos. Isto faz o Espírito Santo. ‘As justiças do Senhor são retas’. Não atemorizam, mas ‘alegram os corações’. Temos aí o Espírito Santo. ‘O preceito do Senhor é luminoso, aclara os olhos’, não os embacia. Olhos do coração, não da carne. Olhos do homem interior, não do homem exterior. Assim opera o Espírito Santo. O temor do Senhor, não é servil, mas casto. Ama gratuitamente e não receia ser punido, porque é temível, mas não quer ser separado de quem ama. Tal é o temor casto, que a caridade perfeita não expulsa (1Jo 4, 18), mas ‘permanece pelos séculos dos séculos’. Aqui se manifesta o Espírito Santo, dando, conferindo tal temor. ‘Os juízos do Senhor são verdadeiros, justificam-se por si mesmos’. Não provocam rixas levando a divisões, mas congregam na unidade. ‘Por si mesmos’ tem este sentido. Aí temos o Espírito Santo. Aqueles sobre os quais desceu em primeiro lugar falaram as línguas de todos os povos; o fato era anúncio de que ele haveria de congregar na unidade as línguas de todas as nações. Então, um só homem que recebera o Espírito Santo falava a língua de todos; agora a própria unidade realiza o mesmo, falando a língua de todos os povos. Também agora um só homem fala a língua de todas as nações; um só homem cabeça e corpo, um só homem, Cristo e a Igreja, homem perfeito. Ele, esposo e ela, esposa; mas foi dito: ‘Serão os dois uma só carne (Gn 2, 24). Os juízos do Senhor são verdadeiros. Justificam-se por si mesmos’, por causa da unidade” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos. Salmos 1-50’. Vol 1. São Paulo: Paulus, 2014, p. 114).
O valor da vida que vem do Espírito a nada se compara: “‘Muito mais desejáveis do que o ouro e a pedra preciosa’. Muito ouro, ou muito preciosa, ou muito desejável. Embora muito, para o herege é pouco. Não ama o mesmo que nós, embora confesse conosco o Cristo. Ama comigo o Cristo que confessa comigo. Quem não quer a mesma coisa, recusa, recalcitra, repele. Para ele não é isto muito mais desejável do que o ouro e a pedra preciosa. Escuta ainda: ‘Mais doce do que o mel e o favo’. Mas não gosta de ouvi-lo quem se acha no erro. O mel é amargo ao febricitante, apesar de doce e agradável ao curado, porque é gostoso para quem tem saúde. ‘Muito mais desejável do que o ouro e a pedra preciosa. Mais doce do que o mel e o favo’. ‘Por isso o teu servo os guarda’. Teu servo comprova, não falando, mas observando, quão doces são eles. Guarda-os o teu servo, porque agora são doces e em seguida são saudáveis. ‘Grande é a recompensa desta observância’. O herege, porém, apegado a sua animosidade, não vê este esplendor, não sente esta doçura” (p. 115).
Até os nossos delitos são transformados pelo Espírito Santo: “‘Quem entende os delitos?’ Pai, perdoa-lhes; não sabem o que fazem (Lc 23,24). É este o servo que guarda a doçura, a suavidade da caridade, o amor da unidade. Eu mesmo, diz, que guardo os juízos, rogo-te, posto que não há quem entenda os delitos, não me surpreendam alguns sorrateiramente, nem me apanhem como a um homem. ‘Purifica-me, Senhor, de meus delitos ocultos’. Assim cantamos. Em palavras chegamos a este ponto. Digamos, cantemos também com a inteligência; cantando oremos, e orando impetremos. Rezemos: ‘Purifica-me, Senhor, de meus delitos ocultos’. Quem entende os delitos? Se é possível ver as trevas, os delitos também se entendem. Enfim, quando nos arrependemos dos delitos, estamos na luz. Enquanto se está envolvido no delito, os olhos ficam obcecados e fechados; não veem o delito. Se tapas os olhos do corpo, não vês os objetos, nem aquilo que o obstrui. Digamos, então, a Deus, que conhece o que purifica e sabe o que cura” (p. 115).
Nada é oculto ao Espírito, ao contrário, àquilo que está mais escondido em nosso interior somente o Espírito Santo pode chegar: “‘Se me não dominarem meus delitos ocultos’, nem os alheios, então ‘serei imaculado’. Não ousa afirmá-lo, por suas próprias forças, mas suplica ao Senhor que o faça. Dirige-se ao Senhor em outro salmo: ‘Dirige os meus passos segundo a tua palavra, e nenhuma injustiça me domine’ (Sl 118, 133). Se és cristão, não temas teu senhor, um simples homem. Teme sempre o Senhor teu Deus. Teme o mal que há em ti, isto é, tua concupiscência. Não receies o que Deus fez em ti, mas o que tu mesmo fizeste. O Senhor te fez bom servo; tu, em teu coração, plasmaste para ti mesmo um mau senhor. Com justiça estarás sujeito à iniquidade, com razão estarás sujeito ao senhor que arranjaste, porque não quiseste ser submisso àquele que te curou. ‘Mas, se me não dominarem, então serei imaculado. E serei purificado do maior delito’. De que delito se trata? Que delito maior é este? Pode ser diferente daquele a que vou me referir, contudo não omitirei minha opinião” (p. 115-116).
Só o orgulho nos pode afastar dessa força vitoriosa do Espírito em nós: “Penso que maior delito é a soberba. É possível que seja outro o sentido da frase: ‘E serei purificado do maior delito’. Quereis saber como é maior o delito que derrubou o anjo, do anjo fez um diabo e eternamente o excluiu do reino dos céus? É grande esse delito: ‘O princípio de todo o pecado é o orgulho’. E para não o menosprezares, como se fosse leve, diz-se: ‘O início do orgulho num homem é renegar a Deus’ (Eclo 10, 15.14). Não é leve este vício, meus irmãos. A humildade cristã reprova tal vício, em pessoas que aparentam grandeza. Por causa da soberba desdenham submeter o pescoço ao jugo de Cristo e ficam mais amarradas sob o jugo do pecado. Não conseguem se livrar de servir; de fato, não querem servir, mas servir lhes convém. Recusando servir, nada obtêm senão deixar de servir a um bom senhor. Não se livram absolutamente de servir, porque se não querem servir a caridade, são forçados a servir a iniquidade. Deste vício, cabeça de todos os vícios, porque dele nascem os demais, provém a apostasia em relação a Deus” (p. 116).
O mau uso do livre-arbítrio é consequência do orgulho: “A alma mergulha nas trevas e usando mal o livre-arbítrio, comete também os outros pecados. Quem era companheiro dos anjos, dissipa sua herança numa vida devassa, e constrangido pela indigência se faz guarda de porcos (Lc 15, 13). Devido a este vício, este grande pecado do orgulho, Deus veio à terra humildemente. Esta causa, este grande pecado, grave doença das almas, trouxe do céu o médico onipotente, humilhando-o até a condição de escravo, infligiu-lhe afrontas, suspendeu-o no madeiro, visando a que a aplicação de remédio tão eficaz curasse o tumor da soberba. Envergonhe-se, afinal, o homem de ser soberbo”.
Em contrapartida, a liberdade que vem de Deus é humilde: “Por sua causa Deus se fez humilde. Assim, diz o salmista, serei purificado do maior delito, porque Deus resiste aos soberbos, mas dá sua graça aos humildes (Tg 4, 6; 1Pd 5, 5). ‘E ser-te-ão agradáveis as palavras de minha boca, e a meditação de meu coração estará em tua presença’. Se não me purificar do maior delito, minhas palavras agradarão aos homens, mas não em tua presença. A alma soberba quer agradar aos homens; a humilde procura agradar ocultamente, onde Deus vê. Se acontecer que agrade aos homens por causa de uma boa obra, congratule-se com os que sabem apreciar uma boa obra, não consigo mesmo, pois deve bastar-lhe a realização da boa obra. Diz a Escritura: ‘O nosso motivo de ufania é o testemunho de nossa consciência’ (2Cor 1, 12). Digamos ainda o que segue: ‘Senhor, meu auxílio e meu redentor’. Auxílio no bem, redentor do mal; auxílio para que habite em tua caridade, redentor para me livrares de minha iniquidade” (p. 116).
Ao comentar o salmo 18, Agostinho tece um profundo hino de louvor ao Espírito Santo, presença escolhida por Jesus para estar em nosso meio, para agir em nós, fazer-nos partícipes de seus mistérios.
Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO