Agostinho, ao interpretar o Salmo 106, fala de quatro tentações retratadas pelo salmista, o qual, ao mesmo tempo, dá graças dobradas a Deus pela vitória de seu povo, tanto da antiga como da nova Aliança. Exprime essa ação de graças com aleluias no título e quatro repetições do refrão ao longo do texto, refrão presente na liturgia deste domingo: ‘Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom, porque eterna é a sua misericórdia!’: “O fato de que este título não contém apenas um ‘Aleluia’, mas dois, não é peculiar a este salmo, mas outro mais acima também os contém. E na medida que se pode deduzir do texto, um é cantado acerca do povo de Israel; e outro, a respeito de toda a Igreja de Deus, espalhada pela terra inteira. Talvez não seja sem razão que sejam dois ‘aleluias’; também clamamos: ‘Abba, Pai’. Embora ‘Abba’ seja idêntico a ‘Pai’, não foi em vão que o Apóstolo disse: ‘Pelo qual clamamos: ‘Abba! Pai!’ (Rm 8,15)” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos’: Salmos 101-150. São Paulo: Paulus, 1998, p. 122).
E continua Agostinho: “O salmista quis repetir assiduamente o versículo que acabamos de cantar: ‘Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias e por suas maravilhas em favor dos filhos dos homens’. O salmista, conforme pude notar, e vós igualmente podeis advertir, repete estes versículos quatro vezes. Este número, na medida que pudemos examinar com o auxílio do Senhor, representa-nos quatro tipos de tentações, das quais nos liberta aquele diante do qual confessamos suas misericórdias. Suponhamos um homem que nada busca e vive segundo a sedutora segurança da vida anterior, pensando que nada existe depois de terminada a presente vida; ele é negligente, preguiçoso e tem o coração imerso nos prazeres mundanos, e adormecido por deleites mortíferos. (p. 123)
As quatro repetições do refrão referem-se, pois, à misericórdia divina diante das tentações de seu povo: a primeira tentação era a do erro e da fome de sabedoria; a segunda está na dificuldade de agir bem; a terceira tentação é oposta à primeira: o fastio. E a quarta? A quarta tentação está descrita nos versículos que salmodiamos neste domingo. Trata-se da tentação da autoconfiança: “Mas que espécie de tentação ainda falta? ‘A alma deles rejeitou todo alimento’. Já sofrem de fastio, desfalecem de fastio, estão em perigo por causa do fastio. A menos que penses que a fome podia matá-los, mas não o fastio. Vê como continua o salmo, depois do versículo: ‘A alma deles rejeitou todo alimento’, para não pensares que estavam seguros devido à saciedade; verás antes que estavam para morrer de fastio: ‘E eles chegaram às portas da morte’. Que falta, então? Se a Palavra de Deus te deleita, não o atribuas a ti mesmo, nem por isso te inches de arrogância e ávido do alimento, orgulhosamente ataques os que estão em perigo de vida por fastio. Entende que isto te foi concedido e não provém de ti mesmo” (p. 127).
Eis o que nos diz Agostinho a respeito dessa quarta tentação nos versículos 23-31: “‘Falta a quarta tentação, na qual todos nós periclitamos. Pois, todos nós estamos num navio; os marinheiros trabalham e os outros são levados; simultaneamente, contudo, todos tanto correm perigo nas tempestades, como se salvam no porto. Por isso, prossegue o salmo no fim disso tudo: ‘Os que sulcam o mar em navios para trafegar nas grandes águas’, isto é, entre muitos povos. Com frequência, as águas representam os povos, conforme atesta o Apocalipse, onde João interroga o que significavam aquelas águas, e obteve a resposta: ‘São povos’ (Ap 17,15) (p.127).
A tempestade descrita aqui há de ser associada ao Evangelho de Marcos 4, 37-38: ‘Começou a soprar uma ventania muito forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a se encher. Jesus estava na parte de trás, dormindo sobre um travesseiro. Os discípulos o acordaram e disseram: – Mestre, estamos perecendo e Tu não Te importas?’ A aparente indiferença de Jesus sonda o coração dos discípulos: “Por conseguinte, os que sulcam muitas águas para trafegar ‘contemplaram as obras do Senhor e as suas maravilhas nas profundezas’. Que há de mais profundo do que o coração do homem? Dali, frequentemente irrompem ventos, tempestades de sedições e dissensões, perturbando a nave. E o que acontece nestas circunstâncias? Querendo Deus que clamem por Ele, os marinheiros e os viajantes, ‘Ele falou e manteve-se um vento tempestuoso’. Que quer dizer: ‘manteve-se?’ Permaneceu, perdurou. Agita, longamente sacode a nave, enfurece-se e não passa. Pois, ‘Ele disse e manteve-se um vento tempestuoso’” (p. 127).
O vento tempestuoso é a agonia de nossa autoconfiança e dos planos humanos que excluem a providência divina: “E que provocou este vento tempestuoso? ‘Encresparam-se as ondas. Subiam aos céus’, com ousadia; ‘e desciam aos abismos’, com temor. ‘Subiam aos céus, desciam aos abismos’: fora combates, dentro temores. ‘A alma deles se consumia nos perigos. Perturbaram-se e cambalearam como um ébrio’. Os timoneiros que amam fielmente sua nave, compreendem o que digo: ‘Perturbaram-se e cambalearam como um ébrio’. Certamente quando falam, quando lêem, quando expõem, parecem sábios. Ai, durante a tempestade! ‘E toda a sua sabedoria se esvaiu’. Por vezes, falham todos os planos humanos. Para todos os lados que se volte alguém, há bramido das ondas, a tempestade é furiosa, os braços desfalecem. O comandante não vê absolutamente para onde lançar a proa, que lado oferecer às ondas, aonde deixar que a nave seja impelida, que rochedos evitar para não naufragar” (p. 127).
Porém, a salvação de Deus já foi concedida ao homem. É preciso confiar: “E que resta, senão o seguinte? ‘Angustiados, clamaram ao Senhor e Ele os livrou de suas aflições. Ordenou à procela, que se transformou em leve brisa’. Não durou a tempestade, mas transformou-se em ‘leve brisa. E os vagalhões emudeceram’. Ouvi sobre este assunto a voz de um piloto que correu perigo, foi abatido, e depois libertado: ‘Não queremos, irmãos, que o ignoreis: a tribulação que padecemos na Ásia, acabrunhou-nos ao extremo, além das nossas forças, a ponto de’ (vejo toda a sua sabedoria se esvair) ‘termos tédio até de viver’. E então? O Senhor a tal ponto abandonaria os desanimados? Ou não seria que eles desfaleceram para que Deus encontrasse neles sua glória?” (p. 128).
Salvos da morte pela ação de Deus e não pelos cálculos humanos: “Finalmente, como prossegue? ‘Sim, recebêramos em nós mesmos a nossa sentença de morte, para que a nossa confiança já não se pudesse fundar em nós mesmos, mas em Deus, que ressuscita os mortos’ (2Cor 1,8.9). ‘E ordenou à procela que se transformou em leve brisa’. Eles já haviam recebido em si a sentença de morte, pois toda a sua sabedoria se esvaíra. ‘E os vagalhões emudeceram. E alegraram-se por vê-los amainados” (p. 128).
Qual é o final de nossa confiança, qual é a garantia de nossa esperança? Agostinho conclui: “Conduziu-os ao porto desejado. Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias’. Em toda parte absolutamente, em toda parte ‘glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias’, não por nossos méritos, não por nossas forças, não por nossa sabedoria. Seja amado em qualquer libertação nossa aquele que invocamos em toda tribulação. ‘Glorifiquem ao Senhor por suas misericórdias, por suas maravilhas em favor dos filhos dos homens’” (p. 128).
Há uma ilusão poética de que Deus dorme… Os discípulos pensaram ainda que por um momento que Jesus dormia e estava indiferente à tempestade. Jesus Cristo, na aludida passagem do Evangelho de Marcos, parece revelar o engano dos discípulos: ‘Jesus estava na parte de trás, dormindo sobre um travesseiro’. Esta imagem revela, ao mesmo tempo, a autoconfiança dos discípulos e a vigilância de Deus. Enquanto nada acontece, os discípulos confiam que, mesmo dormindo, Jesus está com eles. Contudo, quando vem a tempestade, esta presença não lhes dá suficiente segurança, pois a medida de suas seguranças era ainda a autoconfiança.
O Salmo 106 ensina-nos que é preciso ter o olhar voltado para a história da salvação para podermos dar graças pela misericórdia divina em favor dos homens. Este salmo ensina-nos isto. A quarta tentação a que se refere Santo Agostinho em sua leitura deste salmo é a mais difícil de ser vencida: a autoconfiança, que mina toda a esperança na misericórdia de Deus. Dar graças a Deus é reconhecer sua presença em nosso meio e sua providência em nosso favor.
Carlos Frederico Calvet da Silveira, professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio