O Salmo 127, cantado no domingo da Sagrada Família, é interpretado por Agostinho em chave tipológica, isto é, permite-lhe que ele nos ensine que a sagrada família de Nazaré é figura da grande família de Deus, que é a Igreja. Na Igreja, nascem os novos cristos, que devem consagrar, como a Esposa, sua vida ao Pai: “Pois, vede como se exprime o salmo: ‘Felizes todos os que temem o Senhor, que andam em seus caminhos. Comerás do trabalho dos teus frutos. Serás feliz, cumulado de bens’. Nessas palavras, apesar de homens carnais, ainda podemos ver a felicidade do século futuro; mas vede como continua o salmo: ‘Tua esposa será qual vide fecunda no interior de tua casa. Teus filhos quais vergônteas de oliveira ao redor de tua mesa. Assim será abençoado o varão que teme o Senhor’” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos’: Salmos 101-150. São Paulo: Paulus, 1998, p. 375-377).
A esposa fecunda e o varão que teme o Senhor. Trata-se, nos dois casos, da relação de amor na Igreja, que é, ao mesmo tempo, fecunda como amorosa com seu Senhor, pois o temor de Deus nada mais é do que o amor incomensurável: “Como? Se sua esposa é qual vinha fecunda no interior de sua casa, e seus filhos quais vergônteas de oliveira ao redor de sua mesa, então perderam sua recompensa os que por causa de Deus não quiseram contrair matrimônio? Mas dirá quem não quis se casar: Deus me abençoará de outro modo… Não é assim. Ou abençoará desta maneira ou não abençoará; a sentença é clara: ‘Assim é abençoado o varão que teme o Senhor’. Que sentido, então, tem isso, irmãos? O profeta nos apresentou uma espécie de pacote, a fim de não desejarmos a felicidade temporal e terrena, perdendo a celeste. Não sei o que está dentro desse invólucro. V. Caridade deve estar lembrada de que ao comentar o salmo precedente, encontramos um versículo obscuro, nesses termos: ‘Quais setas nas mãos de um valente guerreiro são os filhos dos que foram sacudidos’. E quando examinamos o que seriam os ‘filhos dos que foram sacudidos’, pareceu-nos, por uma iluminação do Senhor como cremos, que os apóstolos foram chamados filhos dos que foram sacudidos, filhos dos profetas”.
O Senhor tirará do seio da Igreja os frutos do Espírito Santo: “Com efeito, os profetas falaram em figura, e a realidade do mistério estava encoberta pelos invólucros dos símbolos. Os homens não puderam extrair dali o sentido, sem sacudir aqueles invólucros. Os apóstolos foram denominados, portanto, ‘filhos dos que foram sacudidos’, porque, sacudidos os profetas, eles disso tiraram proveito. Por conseguinte, também nós sacudamos este invólucro para não nos enganarmos, e tocando o que está dentro sem ver, afirmemos talvez que é madeira em vez de ouro, ou argila em vez de prata. Sacudamos, se apraz a V. Caridade. O Senhor nos assistirá, para extrairmos o que está lá dentro; principalmente, meus irmãos, porque estamos celebrando a festa natalícia dos mártires. Quantos males padeceram os mártires, quantos perigos, quantos tormentos, a imundície dos cárceres, as cadeias apertadas, a crueldade das feras, o ardor das chamas, os espinhos dos ultrajes! Teriam sofrido tudo isso, se não vissem algo a que tendessem, e que não pertence à felicidade deste mundo? É inconveniente, porém, celebrarmos as festas dos mártires, destes servos de Deus que desprezaram este mundo em vista da felicidade eterna, e considerarmos felicidade agora o que no salmo está escrito, e dizermos talvez de um homem de Deus, fiel, cidadão da Jerusalém do alto, que mesmo que casado, não tenha filhos: Este homem não teme o Senhor; pois se temesse o Senhor, sua esposa seria como uma vide fértil em sua casa, e não estéril, sem filhos; e se este homem temesse o Senhor, seus filhos cercariam sua mesa, como ramos de oliveira. Se dissermos isto, somos carnais, e não percebemos o que é do Espírito de Deus”.
É importante que deixemos o Espírito nos mover, nos sacudir, nos comover, para que possamos gerar novos cristos: “Comecemos a sacudir-nos, para sermos também nós filhos dos que foram sacudidos. Pois, se formos filhos dos que foram sacudidos, estaremos nas mãos de valente guerreiro quais setas, e ele nos lançará, conforme seu preceito, ao coração dos homens que ainda não amam, a fim de que feridos pelas setas das palavras de Deus, comecem a amar. Com efeito, se começarmos a lhes pregar: Meus filhos, ou meus irmãos, temei o Senhor, a fim de possuirdes filhos e netos, para alegria de vossa casa”.
Nenhum pai quer que seu filho fique na imaturidade. Isto vale, sobretudo, para o aspecto místico destas festas natalinas, pois celebramos o Natal com a celebração da Páscoa de Cristo, isto é, a Eucaristia: “Então, não lançamos setas para que seja amada aquela Jerusalém eterna; eles se deterão no amor dos bens terrenos e verificando que os ímpios os possuem com fartura, embora não ousem responder-nos, dirão em seu coração: Por que aquele que não teme a Deus, tem a casa cheia de filhos? Talvez outro lhe replique: Ainda não sabes o que pode lhe acontecer. E se lhes foram concedidos, porque não temem a Deus, justamente em tal número para que sofram dor maior com a morte deles? Mas se deres esta resposta, ele poderá contestar: Eu conheço um homem ímpio, pagão, sacrílego, adorador dos ídolos (e talvez conheça mesmo e diz a verdade, e não é um só, nem são dois ou três); e foi sepultado depois de velho, decrépito, tendo morrido em seu leito, cercado da multidão dos filhos e netos. Eis que ele não temia o Senhor, e uma grande descendência de sua casa fechou-lhe os olhos. Que diremos diante disso? Nada de mal pode lhe suceder, de forma que em sua vida lhe sejam tirados os filhos; já morreu e foi levado ao sepulcro com honra pelos filhos”.
O Corpo de Cristo é sempre sacudido, assim cada cristão: “Sacudamos, portanto, sacudamos, se queremos ser filhos dos que foram sacudidos; alguma coisa retiraremos daí. Pois, existe certo homem que assim é abençoado. Ninguém teme o Senhor se não estiver entre os membros deste homem. Consta de muitos e é um só. Muitos cristãos, um só Cristo. Os cristãos unidos a sua Cabeça, que subiu ao céu, formam um só Cristo. Não digo que ele é um só e nós somos muitos, mas que nós, sendo muitos, naquele que é um, somos um só. Por conseguinte, Cristo é um só, Cabeça e corpo. Qual é o seu corpo? Sua Igreja, conforme a palavra do Apóstolo: ‘Porque somos membros do seu corpo’ (Ef 5,30). E: ‘Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros’ (1Cor 12,27)”.
Para amadurecermos como filhos, precisamos perceber a voz do Espírito: “Compreendamos, pois, a voz deste homem, em cujo corpo somos um só homem; e então veremos os verdadeiros bens de Jerusalém. No final, o salmo se exprime da seguinte maneira: ‘Vejas a prosperidade de Jerusalém’. Se, porém, olhares com olhos terrenos tal prosperidade, isto é, a abundância de filhos e netos, a fertilidade e fecundidade da esposa, não se trata dos bens da Jerusalém terrestre. Esta prosperidade é peculiar à terra dos que morrem, e aquela Jerusalém é a terra dos vivos. Não consideres coisa importante ter filhos, filhos que hão de morrer, senão antes de ti, com toda certeza depois de ti. Queres ter filhos que jamais haverão de morrer, e viverão sempre contigo? Sê membro daquele corpo, do qual foi dito: ‘Vós sois o corpo de Cristo e sois os seus membros’”.
Jesus não é criança. Ele prega. É grande o trabalho do parto e é grande também o amor pelo qual os pais veem seus filhos crescer trabalhando por si mesmos, como Jesus que comoveu Maria que se angustiava antes de reencontrá-lo no Templo a pregar aos doutores: “Efetivamente, para demonstrá-lo, o mesmo salmo, tão obscuro que nos convida a batermos à porta, tão oculto que necessita ser sacudido, começa a dirigir-se a muitos: ‘Felizes todos os que temem o Senhor, que andam em seus caminhos’. Fala a muitos; mas como esses muitos são um só em Cristo, continua no singular: ‘Comerás do trabalho de teus frutos’. Mais acima dissera: ‘Felizes todos os que temem o Senhor, que andam em seus caminhos’. Por que então agora: ‘Comerás do trabalho de teus frutos’ e não: Comereis? E por que razão: ‘Comerás do trabalho de teus frutos’, e não: do trabalho de vossos frutos? Tão logo se esquece de que falava a vários? Mas se já sacudiste, que te responde? Ao dirigir-me a vários cristãos, em Cristo que é um, subentendo um só”.
Todo o Evangelho deste domingo da Sagrada Família pode ser lido como figura da vida da Igreja: Jesus, aos doze anos, pregando aos doutores; seus pais angustiados, até perceberem que tudo é obra do Espírito. É a maturidade do Filho, que assume, por conta própria, a mensagem do Pai.
Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO