Agostinho: o braço da salvação

Lemos, no Evangelho de Lucas, que Maria confessa que Deus agiu com a força de seu braço (1, 51). E João (12, 38) identifica o braço de Deus – imagem que aparece inúmeras vezes também no Antigo Testamento – com Jesus Cristo. É neste viés do poder salvífico de Deus que Agostinho interpreta o Salmo 97, que proclamamos no dia do Natal.

Para Agostinho, esse poder salvífico é novidade cristã, mas em continuidade com a novidade profetizada e vivida na liturgia judaica do salmo de das leituras do Antigo Testamento. Neste sentido, a salvação de Deus é para todos. O Cristo é para todos, pois que, com Ele, nasce o homem novo, que canta o novo cântico, e a oposição aqui é com o o homem velho, Adão, isto é, àqueles que não se deixam acolher pelo braço da salvação: “‘Cantai ao Senhor um cântico novo’. O homem novo sabe cantar, o homem velho não. Velho homem é a vida antiga, e homem novo é a vida nova. A vida antiga vem de Adão, e a nova se forma em Cristo. Este salmo convida a terra inteira a cantar o cântico novo. Mais claramente o diz outra passagem: ‘Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, terra inteira’ (Sl 95,1), a fim de que entendam os que se separam da comunhão com a terra inteira que não podem cantar o cântico novo, porque o cântico novo se canta em toda a terra e não só numa parte dela. Prestai atenção ao que se diz aqui e vede que também o afirma. Ao se convidar toda a terra a cantar o cântico novo, compreende-se que a paz canta o cântico novo. ‘Cantai ao Senhor um cântico novo, porque ele fez maravilhas’” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos’. Vol 2. São Paulo: Paulus, 2014, p. 644).

Em seguida, Agostinho procura lembrar-nos as maravilhas de Deus: “Quais?” – pergunta-se Agostinho – e, embora se possam lembrar todas as ações de Deus em favor de seu povo, o Doutor da Igreja arremata seu argumento com a explicação do sentido da imagem do braço de Deus: este braço é Jesus Cristo.“Acabamos de ler o Evangelho, e ouvimos narrar os milagres do Senhor. Era transportado num esquife um morto filho único de sua mãe, que era viúva. Compadecido, o Senhor os fez parar; puseram o esquife no chão. Disse-lhe, então, o Senhor: ‘Jovem, eu te ordeno, levanta-te!’ E o morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou a sua mãe (cf Lc 7,12-15). Eis maravilhas que o Senhor fez; mas muito maiores maravilhas são ressurgirem muitos da morte eterna em toda a terra do que ressuscitar o filho único de mãe viúva. Por conseguinte, ‘cantai ao Senhor um cântico novo, porque Ele fez maravilhas’. Quais? Escuta: ‘Restaurou-O para si a sua direita e o seu braço santo’. Qual é o braço santo do Senhor? Nosso Senhor Jesus Cristo. Escuta Isaías: ‘Quem creu naquilo que ouvimos e a quem se revelou o braço do Senhor’? (Is 53,1). Braço santo, portanto, e sua direita são ele mesmo. Com efeito, nosso Senhor Jesus Cristo é o braço de Deus e a direita de Deus; por isso, diz o salmo: ‘Restaurou para si’. Não disse apenas: Restaurou o orbe da terra a Sua direita, mas: ‘Restaurou para si’” (p. 644).

Fomos curados para o amor de Deus e é preciso conservar este amor: “Muitos, de fato, se curam para si, não para ele. Quantos desejam a saúde corporal e recebem-na dele; são curados por ele, e não curados para ele? Como são curados por ele e não para ele? Recuperada a saúde, entregam-se à lascívia; enquanto estavam doentes eram castos, mas curados tornam-se adúlteros. Enquanto doentes não causavam prejuízo a ninguém, recuperadas as forças tornam-se invasores e opressores dos inocentes. Foram curados, mas não para ele. Quem é curado para Ele? Aquele que é curado interiormente. Quem é que é curado interiormente? Quem acredita em Cristo de tal sorte que depois de interiormente curado, e reformado para se tornar um homem novo, adoece por algum tempo sua carne mortal, a fim de receber no fim dos tempos a saúde integral. Sejamos, portanto, curados para ele. E para sermos curados para Ele, acreditemos em sua direita, porque ‘restaurou-O para si a Sua direita e o Seu braço santo’” (p. 644).

Agostinho insiste em dizer que a salvação de Deus é universal, para todos os homens, sem exceção: “‘Manifestou o Senhor a sua salvação’. Identifiquem-se direita, braço e salvação de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual foi dito: ‘E toda carne verá a salvação de Deus’ (Lc 3,6). Sobre ele disse também aquele Simeão que tomou o menino nos braços: ‘Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, porque meus olhos viram a Tua salvação’ (Lc 2,28-30). ‘Manifestou o Senhor a sua salvação’. A quem manifestou? A uma parte da terra, ou ao universo? Não foi só a uma parte qualquer. Ninguém engane, ninguém induza em erro, ninguém diga: ‘Olha o Messias aqui! ou: ali!’ (Mt 24,23). Quem fala: ‘Olha aqui, olha ali’, mostra uma parte da terra. A quem ‘manifestou o Senhor a Sua salvação?’ Ouve a continuação: ‘Aos olhos das nações revelou a Sua justiça’. Direita de Deus, braço de Deus, salvação de Deus e justiça de Deus: nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo” (p. 644-645).

O braço de Deus é grande e misericordioso. Aqui a imagem do braço de Deus é a imagem da Sua grandeza. Somente Deus pode ter um braço que abraça a todos, no espaço e no tempo, por conseguinte é também braço eterno: “‘Recordou-Se de sua misericórdia para com Jacó e de sua verdade para com a casa de Israel’. Que quer dizer: ‘Recordou-se de sua misericórdia e de sua verdade?’ Compadeceu-se para prometer. Como prometeu e mostrou misericórdia, veio em seguida a verdade. A misericórdia precedeu a promessa, a promessa trouxe a realidade. ‘Recordou-Se de sua misericórdia para com Jacó e de sua verdade para com a casa de Israel’. Como? Só para com Jacó e apenas para com a casa de Israel? A casa dos judeus e a descendência de Abraão segundo a carne habitualmente são denominadas casa de Israel, e Israel é Jacó. Pois, Jacó é filho de Isaac, Isaac, porém, filho de Abraão. Portanto, Jacó é neto de Abraão; e de Jacó nasceram doze filhos, e dos doze filhos descende toda a raça judaica. Porventura, somente a ela foi prometido o Cristo? Se examinas o que é Israel, foi a Israel que Cristo foi prometido. Israel significa aquele que vê a Deus” (p. 645).

Em Jesus Cristo, ‘nossa fé tem olhos’. Mas como, se a fé é ausência de visão? Agostinho, com esse paradoxo criado por seu talento retórico, quer nos mostrar que assim como Deus não tem braço e a fé não tem olhos, contudo, em Jesus Cristo, tudo se tornou visível, pois ‘Ele se fez carne’, isto é, para Agostinho não é possível não ver o poder de Deus em Jesus Cristo: “Vemos em imagem, se agora vemos pela fé. Nossa fé tenha olhos, e a verdade da fé se revelará. Creiamos naqu’Ele que não vemos e alegres veremos. Desejemos aqu’Ele que não vemos e fruiremos de sua visão. Portanto, também agora Israel vê pela fé; no fim, porém, haverá Israel na realidade, face a face. Não em espelho, e de maneira confusa (cf 1Cor 13,12), mas conforme disse João: ‘Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é’ (1Jo 3,2). Preparai vossos corações para esta visão, vossas almas para essa alegria. Seria como se Deus quisesse mostrar-nos o sol, e nos admoestasse a prepararmos os olhos carnais; mas como se digna mostrar-vos a realidade de sua sabedoria, preparai os olhos do coração. ‘Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus’ (Mt 5,8). ‘Recordou-Se de sua misericórdia para com Jacó e de sua verdade para com a casa de Israel’” (p. 645).

Novamente, todos podem nascer com o Cristo, porque todos O podem ver: “Quem é este Israel? Visando a que não penses apenas no povo dos judeus, escuta o que segue: ‘Viram todos os confins da terra a salvação de nosso Deus’. Não disse: toda a terra, mas: ‘todos os confins da terra’, assim como se diz: de um termo a outro. Ninguém divida, ninguém dissipe; é forte a unidade de Cristo. Deu tamanho preço para comprar o todo: ‘Viram todos os confins da terra a salvação do nosso Deus’” (p. 645).

E, continua o nosso Doutor: “Uma vez que viram, ‘jubilai diante de Deus, terra inteira’. Já sabeis o que é jubilar. Alegrai-vos e falai. Se não podeis explicar vossa alegria, jubilai; o júbilo exprima vosso gaúdio, se não o pode a linguagem. Não seja um gáudio mudo. O coração não cale a respeito de seu Deus, não cale seus dons” (p. 645).

Sim, neste Natal, todos podem dizer que viram, que viram o braço estendido de Deus em suas vidas, que viram este braço como um abraço, porque Deus se fez homem, tornou-Se visível e tangível, porque Ele nos viu e nos tocou primeiro.

 

 

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