Agostinho: o cântico da fé

Agostinho recorda as maravilhas operadas por Cristo, as quais, como aprendemos no evangelho de João, são sinais da Páscoa. O mesmo evangelho de João diz que Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos’ (15, 13). É justo entender que o ato de dar a vida é duplo, pois significa que Jesus morreu por nós, mas também indica a vida nova que dele recebemos por sua Ressurreição, por isso o Salmo 97 conclama o povo fiel a cantar: “‘Cantai ao Senhor um cântico novo’ Sl 97, 4. O homem novo sabe cantar, o homem velho não. Velho homem é a vida antiga, e homem novo é a vida nova. A vida antiga vem de Adão, e a nova se forma em Cristo. Este salmo convida a terra inteira a cantar o cântico novo. Mais claramente o diz outra passagem: ‘Cantai ao Senhor um cântico novo, cantai ao Senhor, terra inteira’, Sl 95, 1, a fim de que entendam os que se separam da comunhão com a terra inteira que não podem cantar o cântico novo, porque o cântico novo se canta em toda a terra e não só numa parte dela. Prestai atenção ao que se diz aqui e vede que também o afirma. Ao se convidar toda a terra a cantar o cântico novo, compreende-se que a paz canta o cântico novo. ‘Cantai ao Senhor um cântico novo, porque ele fez maravilhas’” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos’. Vol. 2. São Paulo: Paulus, 2014, p. 664).

E Agostinho insiste na descrição das maravilhas do Senhor: “Quais? Acabamos de ler o evangelho, e ouvimos narrar os milagres do Senhor. Era transportado num esquife um morto filho único de sua mãe, que era viúva. Compadecido, o Senhor os fez parar; puseram o esquife no chão. Disse-lhe, então, o Senhor: ‘Jovem, eu te ordeno, levanta-te!’ E o morto sentou-se e começou a falar. E Jesus o entregou a sua mãe (Lc 7, 12-15). Eis maravilhas que o Senhor fez; mas muito maiores maravilhas são ressurgirem muitos da morte eterna em toda a terra do que ressuscitar o filho único de mãe viúva. Por conseguinte, ‘cantai ao Senhor um cântico novo, porque ele fez maravilhas’” (p. 664).

O braço do Senhor é um antigo símbolo de sua força, de seu poder salvador. Agostinho mostra que braço e direita estão aqui a dizer o mesmo: o poder divino de restauração e de vida que se concentra na pessoa de Jesus; e segue com outras maravilhas: “Quais? Escuta: ‘Restaurou-o para si a sua direita e o seu braço santo’ Sl 97, 1. Qual é o braço santo do Senhor? Nosso Senhor Jesus Cristo. Escuta Isaías: ‘Quem creu naquilo que ouvimos e a quem se revelou o braço do Senhor’? (Is 53,1). Braço santo, portanto, e sua direita são ele mesmo” (p. 644).

Mas um detalhe não escapa à reflexão de Agostinho. O Senhor recupera os doentes para si, isto é, não para viver sua vida anterior, mas para uma nova vida, que a vida que promana de sua Páscoa, por isso em outro lugar, Agostinho diz que “quem canta com parcialidade, canta canções antigas; qualquer de seus cânticos é velho, é o velho homem que canta. Está dividido, é carnal. Certamente, enquanto é carnal, é velho, e à medida em que é espiritual, é novo” (p. 212): “Com efeito, nosso Senhor Jesus Cristo é o braço de Deus e a direita de Deus; por isso, diz o salmo: ‘Restaurou para si’. Não disse apenas: Restaurou o orbe da terra a sua direita, mas: ‘Restaurou para si’. Muitos, de fato, se curam para si, não para ele. Quantos desejam a saúde corporal e recebem-na dele; são curados por ele, e não curados para ele? Como são curados por ele e não para ele? Recuperada a saúde, entregam-se à lascívia; enquanto estavam doentes eram castos, mas curados tornam-se adúlteros. Enquanto doentes não causavam prejuízo a ninguém, recuperadas as forças tornam-se invasores e opressores dos inocentes. Foram curados, mas não para ele. Quem é curado para ele? Aquele que é curado interiormente. Quem é que é curado interiormente? Quem acredita em Cristo de tal sorte que depois de interiormente curado, e reformado para se tornar um homem novo, adoece por algum tempo sua carne mortal, a fim de receber no fim dos tempos a saúde integral. Sejamos, portanto, curados para ele. E para sermos curados para ele, acreditemos em sua direita, porque ‘restaurou-o para si a sua direita e o seu braço santo’” (p. 664).

Essa cura, essa restauração, são para todos os homens, homens de todos os confins da terra: “‘Manifestou o Senhor a sua salvação’, Sl 97, 2. Identifiquem-se direita, braço e salvação de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual foi dito: ‘E toda carne verá a salvação de Deus’ (Lc 3,6). Sobre ele disse também aquele Simeão que tomou o menino nos braços: ‘Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, porque meus olhos viram a tua salvação’ (Lc 2,28-30). ‘Manifestou o Senhor a sua salvação’. A quem manifestou? A uma parte da terra, ou ao universo? Não foi só a uma parte qualquer. Ninguém engane, ninguém induza em erro, ninguém diga: ‘Olha o Messias aqui! ou: ali!’ (Mt 24,23). Quem fala: ‘Olha aqui, olha ali’, mostra uma parte da terra. A quem ‘manifestou o Senhor a sua salvação?’ Ouve a continuação: ‘Aos olhos das nações revelou a sua justiça’. Direita de Deus, braço de Deus, salvação de Deus e justiça de Deus: nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo” (p. 645).

Que é a misericórdia de Deus? É a recuperação plena daqueles que ama, de todos os homens: “‘Recordou-se de sua misericórdia para com Jacó e de sua verdade para com a casa de Israel’, Sl 97, 3. Que quer dizer: ‘Recordou-se de sua misericórdia e de sua verdade?’ Compadeceu-se para prometer. Como prometeu e mostrou misericórdia, veio em seguida a verdade. A misericórdia precedeu a promessa, a promessa trouxe a realidade. ‘Recordou-se de sua misericórdia para com Jacó e de sua verdade para com a casa de Israel’. Como? Só para com Jacó e apenas para com a casa de Israel? A casa dos judeus e a descendência de Abraão segundo a carne habitualmente são denominadas casa de Israel, e Israel é Jacó. Pois, Jacó é filho de Isaac, Isaac, porém, filho de Abraão. Portanto, Jacó é neto de Abraão; e de Jacó nasceram doze filhos, e dos doze filhos descende toda a raça judaica. Porventura somente a ela foi prometido o Cristo? Se examinas o que é Israel, foi a Israel que Cristo foi prometido” (p. 645).

Toda a fé de Israel pertence às maravilhas de Deus. A fé de Israel pertence à visão dos filhos de Deus, que culminará na visão em que veremos o Senhor ‘tal como Ele é’: “Israel significa aquele que vê a Deus. Vemos em imagem, se agora vemos pela fé. Nossa fé tenha olhos, e a verdade da fé se revelará. Creiamos naquele que não vemos e alegres veremos. Desejemos aquele que não vemos e fruiremos de sua visão. Portanto, também agora Israel vê pela fé; no fim, porém, haverá Israel na realidade, face a face. Não em espelho, e de maneira confusa (cf 1Cor 13,12), mas conforme disse João: ‘Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou. Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é’ (1Jo 3,2). Preparai vossos corações para esta visão, vossas almas para essa alegria. Seria como se Deus quisesse mostrar-nos o sol, e nos admoestasse a prepararmos os olhos carnais; mas como se digna mostrar-vos a realidade de sua sabedoria, preparai os olhos do coração. ‘Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus’ (Mt 5,8). ‘Recordou-se de sua misericórdia para com Jacó e de sua verdade para com a casa de Israel’. Quem é este Israel? Visando a que não penses apenas no povo dos judeus, escuta o que segue: ‘Viram todos os confins da terra a salvação de nosso Deus’. Não disse: toda a terra, mas: ‘todos os confins da terra’, assim como se diz: de um termo a outro. Ninguém divida, ninguém dissipe; é forte a unidade de Cristo. Deu tamanho preço para comprar o todo: ‘Viram todos os confins da terra a salvação do nosso Deus’” (p. 645).

Não se pode calar diante das maravilhas do Senhor, por isso o canto e o júbilo que o canto exprime: “Uma vez que viram, ‘jubilai diante de Deus, terra inteira’, Sl 97, 4. Já sabeis o que é jubilar. Alegrai-vos e falai. Se não podeis explicar vossa alegria, jubilai; o júbilo exprima vosso gaúdio, se não o pode a linguagem. Não seja um gáudio mudo. O coração não cale a respeito de seu Deus, não cale seus dons. Se falas a ti mesmo, és curado para ti; mas se te curou a sua direita, fala àquele para quem foste curado. ‘Viram todos os confins da terra a salvação de nosso Deus. Jubilai diante de Deus, terra inteira. Cantai, exultai, salmodiai’” (p. 645-646).

Atribui-se a Agostinho o ditado ‘quem canta, reza duas vezes’. O sentido desta proposição está em Agostinho como ‘quem canta, ama’. Por isso os cânticos por excelência da liturgia são os salmos. Ao salmodiar, o fiel vive esta reciprocidade do amor, pois canta as maravilhas que Deus fez por todos e canta por meio das próprias palavras do Criador.

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