Agostinho: o dia da paz profunda

O Salmo 71 (72), do Dia da Epifania, assim como o 127, versa sobre a dinastia real, a qual, por conseguinte, trata do rei e de seu herdeiro. Deus concede ao rei e a seu filho suas bênçãos e, originalmente, o texto se refere a Davi e a Salomão. Para Agostinho, o salmo refere-se a Jesus Cristo, o herdeiro e a nós, coherdeiros do rei: “O título deste salmo traz anotado: ‘Sobre Salomão’, mas o que ele descreve não se adapta àquele Salomão, rei de Israel segundo a carne, conforme o que a Escritura dele narra. Pode, contudo, aplicar-se de modo muito adequado a Cristo Senhor. Daí se conclui que o próprio vocábulo ‘Salomão’ foi empregado para, em sentido figurado, atribuir-se a Cristo. Efetivamente Salomão significa pacífico. Tal vocábulo convém de modo muito real e exato àquele que nos reconcilia com Deus, como mediador, de inimigos que éramos, após a remissão de nossos pecados. ‘Pois, quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho’ (Rm 5,10)”  (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos’. Vol 2. São Paulo: Paulus, 2014, p. 303).

O reinado desse herdeiro é o reinado da paz. Às vezes, o termo ‘rei’ em nossa cultura, cobra uma conotação negativa, oposta à noção de paz e de humildade. Não é assim na tradição bíblica e cristã. O rei e seu herdeiro são pacificadores: “Ele é pacífico, que ‘de ambos os povos fez um só, tendo derrubado o muro de separação, suprimindo em sua carne a inimizade — a Lei dos mandamentos expressa em preceitos — a fim de criar em si mesmo dos dois povos um só homem novo, estabelecendo a paz. Assim ele veio e anunciou a paz a vós que estáveis longe e paz aos que estavam perto’ (Ef 2,14-17). Ele próprio diz no Evangelho: ‘Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou’ (Jo 14,27). Há muitos outros testemunhos a demonstrarem que Cristo Senhor é pacífico; mas não segundo a paz que o mundo conhece e procura e sim a paz a que se refere o profeta: ‘Dar-lhes-ei verdadeiro consolo, paz sobre paz’ (Is 26,12, sg LXX); à paz da reconciliação une-se a paz da imortalidade” (p. 303). 

E a paz de que a Escritura trata é muito mais rica do que a nossa noção de paz. A paz é saúde, é justiça, é alegria, é comunhão, é vida plena, é, enfim, santidade, destruição da morte: “Haverá paz absolutamente perfeita quando ‘a morte, o último inimigo, for destruída’. E quem o fará, a não ser aquele pacífico, nosso reconciliador? ‘Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida’ (1Cor 15,26.22). Uma vez que já encontramos o verdadeiro Salomão, isto é o genuíno pacífico, demos atenção ao que nos ensina em seguida a respeito dele este salmo” (p. 303).

E é o Cristo que preside este reino de paz: “Ó Deus, ao rei concede teu julgamento, a tua justiça ao filho do rei’. No Evangelho declara o próprio Senhor: ‘O Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo julgamento’ (Jo 5,22); a saber, ‘ó Deus, ao rei concede teu julgamento’. Este rei é também filho do rei, porque efetivamente Deus Pai é rei. Está escrito que um rei celebrou as bodas de seu filho (cf Mt 22,2)” (p. 303 ).

Quando o herdeiro reinar, será o dia da paz profunda: “‘Surgirá em seus dias justiça e paz profunda até que cesse de existir a lua’. Cesse de existir por alguns foi traduzido: ‘seja retirada’, por outros: ‘seja elevada’. Uma só palavra grega: antanairethe foi assim vertida, conforme cada opinião. Mas não são muito discordantes os que escreveram: ‘seja retirada’ e os que disseram: ‘seja elevada’. É mais comum dizer-se: ‘cesse de existir’ de uma coisa que é retirada para não existir mais, do que a respeito do que é elevado. ‘Seja retirada’, de fato, não se pode interpretar senão que se perca, isto é, não exista mais. ‘Seja elevada’, porém, só se refere ao que é colocado mais alto. Em mau sentido costuma significar a soberba, conforme a palavra: ‘Não te exaltes em tua sabedoria’ (cf Eclo 32,6). No bom sentido, contudo, é atinente a honra maior, uma certa exaltação, conforme diz o salmo: ‘Durante as noites levantai as mãos para o santuário e bendizei o Senhor’ (Sl 133,2). No presente salmo, portanto, se optarmos por: seja retirada, que sentido tem: ‘até que seja retirada a lua’ senão que deixe de existir? Talvez quis dar a entender que a mortalidade não existirá mais, ao ser destruída ‘a última inimiga, a morte’ (cf 1Cor 15,26). Então a paz profunda chegará ao ponto de que nada se oponha mais à felicidade dos bem-aventurados, devido à fraqueza da mortalidade” (p. 309). 

Mas essa paz só existe hoje na comunhão dos herdeiros, isto é, na Igreja. Paradoxo, quando podemos ver também muita cizânia entre os cristãos. Trata-se aqui, contudo, da graça que Deus já derramou sobre todos os homens. Quando não há paz, é porque nos afastamos da herança que o herdeiro nos legou. O herdeiro nos legou o Espírito Santo e nos congregou na sua assembleia, a Igreja: “Assim sucederá naquele século, cuja promessa recebemos de Deus, através de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual foi dito: ‘Surgirá em seus dias justiça e paz profunda’, até que vencida e destruída inteiramente a morte, toda mortalidade seja consumida. Noutro sentido, o vocábulo lua se aplica não à mortalidade da carne pela qual passa atualmente a Igreja e sim, de modo absoluto, à própria Igreja, que permanecerá para sempre, quando livre da mortalidade. O versículo: ‘Surgirá em seus dias justiça e paz profunda até que seja exaltada a lua’, nesta forma teria o sentido seguinte: Em seus dias surgirá a justiça, que vencerá a oposição e rebeldia da carne, e haverá paz em aumento e abundância até que a lua seja elevada, isto é, seja exaltada a Igreja, para reinar com Cristo na glória da ressurreição. Nesta glória precedeu-a o primogênito dentre os mortos, a fim de se sentar à direita do Pai (cf Mc 16,19). Assim, Cristo permanece ‘com o sol e antes da lua’, mas a lua posteriormente também será exaltada” (p. 309).

O domínio do herdeiro e dos coherdeiros não é prepotente, significa o senhorio do Espírito nos corações humanos, de todos os homens, por isso mesmo, todos os sentidos da paz: “‘E dominará de um a outro mar, e desde o rio até os confins da terra’, aquele do qual dissera com verdade o salmista: ‘Surgirá em seus dias justiça e paz profunda até que a lua seja exaltada’. Se é exato que o vocábulo lua aqui é referente à Igreja, consequentemente o salmista alude à larga difusão da Igreja, acrescentando: ‘E dominará de um mar a outro mar’. (…) Visando a que não se interprete de outro modo: ‘De um a outro mar’, logo acrescentou: E desde o rio até os confins da terra. A expressão: ‘até os confins da terra’ equivale à locução anterior: ‘De um a outro mar’. Quanto ao termo: ‘desde o rio’ evidentemente alude ao fato de que Cristo quis recomendar seu poder do lugar onde começou a escolher seus discípulos, a saber, do rio Jordão, onde o Espírito Santo desceu sobre o Senhor que acabara de ser batizado, e uma voz veio do céu declarando: ‘Este é o meu Filho amado’ (Mt 3,17). Aí teve início seu ensinamento e a autoridade de seu magistério celeste. Eles se propagam até os confins da terra, ao ser pregado o evangelho do reino em todo o orbe, para testemunho diante de todos os povos. E então virá o fim” (p. 310).

Todos os reis, os governos, tudo aquilo que é mundano se submete ao Espírito, isto é, tem condições de transformar a discórdia e a divisão em amor e união: “‘Os reis de Társis e as ilhas lhe oferecerão presentes; os reis da Arábia e de Sabá lhe conduzirão seus dons. Adorá-lo-ão todos os reis da terra; todas as nações o servirão’. Esse trecho não pede um expositor, mas quem queira contemplar sua realização. Apresenta-se não só aos fiéis que se alegram, mas também aos infiéis que se lamentam. (…) Mas, os dons que foram trazidos parecem-me significar os homens, que a autoridade dos reis conduz à sociedade da Igreja de Cristo. Mesmo os reis perseguidores trouxeram dons, sem saberem o que faziam ao imolarem os santos mártires” (p. 310-311).

O caminho de união entre os homens e os povos estão reveladas nesta últimas palavras que Agostinho nos explica: “O salmista expõe o motivo por que tantas honrarias lhe são prestadas pelos reis, e qual a razão por que todos os povos o servem: ‘Ele livrou o pobre do prepotente e o miserável que não tinha protetor’. Pobre e miserável é o povo dos que nele acreditam. No meio deste povo acham-se também os reis que o adoram. Eles não desdenham ser pobres e necessitados, isto é, ser daqueles que humildemente confessam seus pecados e necessitam da glória e da graça de Deus, a fim de que aquele rei, filho do Rei, os liberte do prepotente” (p. 311). 

 

Carlos Frederico Calvet da Silveira, professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio

 

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