Agostinho: Quem é a viúva?

‘A mulher foi e fez como Elias lhe tinha dito’, 1Rs 17, 15. Esta foi a atitude da viúva de Sarepta ao comando de Elias que entrara na cidade e, inicialmente, lhe pedira água. A narrativa do livro dos Reis ressoa no Salmo 145 e no evangelho deste domingo, em que Jesus elogia a doação de uma pobre viúva. Agostinho, ao interpretar para nós esse salmo, expõe, entre outras coisas, o simbolismo da viúva na vida cristã.

No versículo 7 do Salmo 145, Agostinho explica que a fidelidade de Deus é a base de nossa esperança: “Por conseguinte, ele é meu Deus, pus minha esperança naquele ‘que fez o céu, e a 581 terra, o mar e tudo o que neles se contém’. Em relação a mim, como age? ‘O que guarda a fidelidade eternamente’. O salmo recomendou o Deus que deve ser amado e temido. ‘O que guarda a fidelidade eternamente’. Que fidelidade e qual dura eternamente? Qual e em que guarda fidelidade? ‘Faz justiça aos oprimidos’. Vinga os injuriados, meus irmãos; faz-lhe justiça. A quem? Aos que recebem injúrias, punindo todos os injuriosos. Se, pois, favorece os injuriados e pune os injuriosos, vê agora de que número queres ser. Vê, atende se queres estar entre os que recebem injúrias ou entre os que as fazem. Logo se te apresenta a voz do Apóstolo, nesses termos: ‘De todo modo, já é para vós uma falta a existência de litígios entre vós. Por que não preferis, antes, padecer uma injustiça’? (1Cor 6,7)” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos’: Salmos 101-150. São Paulo: Paulus, 1998, p. 581-582).

Essa fidelidade divina consiste em suprir as necessidades de todos: “Agora avança e profere teus bons raciocínios, como se fossem apurados e subtis, pois tu nutres. Profere: um famélico pode alimentar? Isto é, um pecador pode dar o que é santo? Um famélico pode alimentar? Um doente pode curar? Um homem amarrado pode desligar? Estas reflexões, que parecem importantes e subtis, enganam os ignorantes. Este salmo fecha-lhes a boca: ‘Dá pão aos que têm fome’. Eis que nada espero de ti; Deus ‘dá pão aos que têm fome’. A que famintos? A todos. Que quer dizer? Todos? A todos os animais, a todos os homens ele dá alimento; e nada reserva para os seus amados?” (p. 582).

Porém, as necessidades humanas não são somente as necessidades materiais. A partir daqui, Agostinho faz uma leitura espiritual do Salmo 145: “Se eles têm outra espécie de fome, terão também outro alimento. Perguntemos primeiro qual a sua fome e encontraremos qual o seu alimento: ‘Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados’ (Mt 5,6). Devemos ser famintos de Deus; mendiguemos diante de sua porta, em sua presença, nas orações; ele ‘dá pão aos que têm fome’. Por que, ó herege, te gabas de desatar, erguer, iluminar? Pelo fato de teres sido libertado, estás de pé e és luz? De forma alguma. Atende ao que foi declarado mais acima: ‘Não confieis nos príncipes. Nos filhos dos homens que não podem salvar’. Eles não dão a salvação. Portanto, afastem-se os hereges. ‘O Senhor solta os grilhões dos cativos. O Senhor levanta os caídos. O Senhor torna sábios os cegos’, isto é, daqueles que são cegos ele faz os sábios” (p. 583).

A morte resume todos os sofrimentos humanos, a ela estamos agrilhoados, como a tantos outros grilhões materiais e espirituais: “Como estamos agrilhoados? Como caímos? Nosso corpo foi nosso adorno; pecamos e por isso recebemos os grilhões. Quais são os nossos grilhões? A própria mortalidade. Escuta o Apóstolo Paulo, porque ele também nesta peregrinação fora cativo com grilhões. Quantas terras percorreu este homem com grilhões! Os grilhões não lhe pesaram; com esses grilhões pregou o evangelho a toda a terra. O espírito de caridade arrebatou os grilhões, e ele percorreu quanto pôde. Entretanto, o que disse? ‘O meu desejo é partir e ir estar com Cristo’. Partir de onde? Dos grilhões da mortalidade. E, no entanto, por misericórdia ainda queria estar em grilhões, por causa dos outros cativos, aos quais servia: ‘Mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa’ (Fl 1,23.24). ‘O Senhor, portanto, solta os grilhões dos cativos’, isto é, dos mortais faz imortais. ‘O Senhor levanta os caídos’. Por que caíram? Porque estavam elevados. Por que são levantados? Porque foram humilhados. Adão caiu e deslizou; Cristo desceu. Por que desceu aquele que não caiu, senão para levantar o que caíra? ‘O Senhor torna sábios os cegos. O Senhor ama os justos’. Por isto faz justiça aos que sofrem injustiça”.

E agora a questão principal: “E quem são os justos? Agora até onde justos? Como está escrito: ‘O Senhor guarda os prosélitos’. Prosélitos são os estrangeiros. Toda a Igreja dos gentios é prosélita. Ela é estrangeira junto dos patriarcas, porque não nasceu de sua carne, mas é sua filha pela imitação. No entanto, é o Senhor quem guarda e não um homem qualquer. ‘Ampara o órfão e a viúva’.

Espiritualmente, a Igreja é viúva: “A Igreja é como viúva, na ausência do esposo, do cônjuge. Virá aquele que agora a protege, e que não é visto, mas desejado. Somos arrastados por um grande desejo e anelamos com amor por àquele que não vemos. Abraçá-lo-emos quando for visto, se pela fé o retemos antes de vê-lo. Então, o que o salmista quis dar a entender por ‘órfão e viúva’, irmãos? Os destituídos de todo socorro e auxílio. A alma destituída no mundo, espere o auxílio de Deus. Seja o que for que possuis, por exemplo, possuis ouro; com isto presumiste? Já não és prosélito, não és órfão, não serás contado entre as viúvas. Tens um amigo. Se presumires a respeito dele e abandonares a Deus, não estás destituído. Tens tudo isso; não presumes por isso, não ficas soberbo? És órfão de Deus e viúva de Deus. Portanto, ele recebe os destituídos; ele o afirmou: acolhe o órfão, e te ampara como a uma viúva”.

Atenção, nem todos respeitam a viúva; até zombam dela: “‘Mas exterminará o caminho dos pecadores’. Qual o caminho dos pecadores? Zombar das coisas que dizemos. Quem é o órfão? Quem é a viúva? Que é o reino dos céus? Quais as penas do inferno? São fábulas dos cristãos. Viverei para aquilo que vejo: ‘Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos’. Vê que esses tais não te persuadam, que pelo ouvido não entrem no coração: encontrem espinhos em teus ouvidos; quem começar a entrar assim, seja afastado pelas picadas. Pois, ‘as más companhias corrompem os bons costumes’ (1Cor 15,32.33). Mas, então, talvez repliques: Por que são felizes? Eles não adoram a Deus, e diariamente cometem todos os pecados; e têm fartura daquilo de que tenho falta, apesar de meu trabalho. Não invejes os pecadores. Vês o que eles recebem; não vês o que lhes está reservado?” (p. 584).

Se a Igreja é viúva, e o é agora, no tempo; na eternidade, sua recompensa será sem fim: “E tendo sido exterminado o caminho dos pecadores, o que ainda falta? ‘Vinde, benditos de meu Pai, recebei por herança o reino preparado para vós desde a criação do mundo’ (Mt 25,34). Assim conclui o salmo: ‘Mas exterminará o caminho dos pecadores’. E então? ‘O Senhor reinará eternamente’. Alegra-te, porque reinará para ti; alegra-te, porque serás o seu reino. Considera a continuação. Certamente és cidadão de Sião, não de Babilônia, isto é, não da cidade deste mundo que vai perecer, mas de Sião, temporariamente em labor e peregrinação, mas que há de reinar eternamente. Ouviste, portanto, qual o termo: de lá és tu. ‘O Senhor reinará eternamente, o teu Deus, ó Sião’. Ó Sião, o teu Deus reinará eternamente; será que teu Deus reinará sem ti? ‘Por geração e geração’. Repete por duas vezes, porque não pôde dizer sempre. Não julgues que terminadas as palavras, termine a eternidade. A eternidade é palavra que consta de quatro sílabas, mas em si mesma é sem fim. Somente pôde o salmista recomendar-te isso: ‘O teu Deus reinará por geração e geração’. Disse pouco. Se falasse o dia todo seria insuficiente; se falasse a vida toda, não teria de calar por vezes? Ama a eternidade. Reinarás sem fim, se teu fim é o Cristo” (p. 584).

A Igreja, enquanto viúva, não está plenamente no Reino do Senhor, mas como as viúvas das leituras de hoje, ela confia na promessa: ‘O Senhor reinará para sempre!’, por isso alegra-te, porque ele reinará para ti e, ainda, alegra-te, porque serás o seu reino.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

Categorias
Categorias