Agostinho: quem inclinou para ti seu ouvido?

O paradoxo do evangelho de Marcos 8, 27-35 parece manifesto na repreensão de Jesus a Pedro que confessa: ‘Tu és o Messias’. O salmo 114, salmodiado no domingo em que essa perícope do evangelho de Marcos é proclamada, pode ser uma das chaves para a nossa aproximação do sentido desse paradoxo.

Agostinho interpreta assim o primeiro versículo desse salmo: “‘Amo o Senhor porque ele ouvirá a minha voz suplicante’. Assim cante a alma, peregrina longe do Senhor, cante a ovelha desgarrada, cante aquele filho que estava morto e tornou a viver, estava perdido e foi reencontrado (cf Lc 15, 24), cante nossa alma, irmãos e filhos caríssimos. Aprendamos e permaneçamos, e cantemos estas palavras com os santos: ‘Amo ao Senhor porque ele ouviu a minha voz suplicante’. Por acaso, o motivo de amarmos será por que o Senhor ‘ouvirá a minha voz suplicante?’ Não o amaríamos antes porque ouviu, ou amaríamos para que ouça? Por que então: ‘amo, porque ele ouvirá?’ Ou será por que a esperança costuma inflamar o amor, que ele disse amar por esperar que Deus há de ouvir sua voz suplicante?” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos’: Salmos 101-150. São Paulo: Paulus, 1998, p. 185).

Podemos admitir que os discípulos e os apóstolos de Jesus, sobretudo Pedro, e como todos nós, são a voz suplicante de que fala o salmo 114. É a súplica da esperança: “‘Qual a base desta esperança? ‘Porque inclinou para mim o seu ouvido nos meus dias em que o invoquei’ (v. 2). Por conseguinte, amo, porque ele ouvirá; e ouvirá ‘porque inclinou para mim o seu ouvido’. Mas como hás de saber, ó alma humana, que Deus inclinou para ti seu ouvido, se não disseres: Creio? ‘Agora, portanto, permanecem fé, esperança, caridade, estas três coisas’ (1Cor 13, 13). Creste e por isso esperaste; esperaste e por isto amaste. Se perguntares por que a alma acreditou que Deus inclinou para ela seu ouvido, não responderá: Porque ele nos amou primeiro, ‘não poupou o seu próprio Filho e o entregou por todos nós? (Rm 8, 32). Pois, como poderiam invocar aquele em que não creram?’ diz o Doutor das gentes. ‘E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? E como podem pregar se não forem enviados?’ (Rm 10.14.15). Se vejo tudo isso feito em meu favor, como não acreditar que o Senhor inclinou para mim o seu ouvido? De tal modo ele nos manifestou seu amor que Cristo morreu pelos ímpios (cf Rm 5,8). Ao me anunciarem estas coisas os pés graciosos dos mensageiros que anunciaram a paz, que proclamaram boas novas, porque ‘todo aquele que invocar o nome do Senhor, será salvo’ (cf Is 52,7; Jl 3,5), acreditei que ele inclinou para mim seu ouvido, ‘nos meus dias em que o invoquei’” (p. 186).

A quem se pode suplicar se não ao Messias? Invocar e suplicar é reconhecer o Messias, como o fez Pedro no Evangelho citado. Nós também reconhecemos o Messias. E por que não estamos nós em estado de repreensão por dizermos a Cristo hoje, nas nossas liturgias: ‘Tu és o Messias’? O mistério é a Páscoa de Jesus, que vivemos hoje, enquanto Pedro, naquele momento, ainda tinha de a conhecer e esperar: Quais são os teus dias, porque disseste: ‘nos meus dias em que o invoquei?’ Porventura naqueles em que veio a plenitude dos tempos, quando Deus enviou o seu Filho (cf Gl 4, 4), que já havia dito: ‘No tempo favorável, eu te ouvi’, ‘e no dia da salvação vim em teu auxílio’? Ouviste da boca do pregador de pés graciosos que veio a ti: ‘Eis agora o tempo favorável. Eis agora o dia da salvação’ (Is 49, 8; 2Cor 6, 2). Acreditaste e invocaste nos teus dias: ‘Senhor, livra a minha alma’. Na verdade, são estes dias; mas devo antes denominar meus dias os dias de minha miséria, os dias de minha mortalidade, os dias segundo Adão, cheios de labor e de suor, os dias segundo a antiga podridão. Pois, acho-me prostrado, ‘num lamaçal profundo’ (Sl 68, 3) e exclamei em outro salmo: ‘Eis que reduziste os meus dias à velhice’ (Sl 38, 6), e nestes ‘meus dias eu o invoquei’. Distam, de fato, os meus dias dos dias de meu Senhor. Dou-lhes a denominação de meus dias, porque os fiz meus com a particular audácia que me levou a abandoná-lo. Uma vez que ele reina em toda parte, é onipotente e tudo domina, mereci o cárcere, isto é, as trevas da ignorância e os grilhões da mortalidade. ‘Nesses meus dias em que eu o invoquei’, porque eu também clamo em outro salmo: ‘Tira da prisão a minha alma’ (Sl 141, 8). E como no dia da salvação que me proporcionou ele me auxiliou, aceitou em sua presença os gemidos dos cativos. Nesses meus dias, ‘dores de morte me cercaram e perigos do inferno me envolveram’. Se não estivesse desgarrado longe de ti não me alcançariam. Agora, porém, eles me encontraram, enquanto eu não os encontrava, porque me alegrava com a prosperidade mundana, na qual mais iludem os perigos do inferno” (p. 186-187).

Depois da Páscoa, podemos confessar plenamente Jesus Cristo. Por quê? Porque com a Páscoa recebemos o Espírito Santo que confessa o Cristo em nós, e a nossa confissão não é mais mera palavra humana: “Mas depois também eu ‘encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor’. Desconhecia a tribulação e a dor proveitosa; a tribulação durante a qual presta auxílio aquele ao qual o salmista declara: ‘Dá-nos auxílio na tribulação; nada vale o socorro humano’ (Sl 59, 13). (…) Diga, pois, o santo povo de Deus: ‘Encontrei a tribulação e a dor e invoquei o nome do Senhor’, e ouçam as demais nações que ainda não invocam o nome do Senhor; ouçam e procurem a fim de encontrarem a tribulação e a dor, e invocarem o nome do Senhor e se salvarem. Não lhes falamos assim a fim de procurarem a miséria que não sofrem, mas para descobrirem que a têm sem o saberem. Nem lhes desejamos que lhes falte na terra o necessário, do qual precisam enquanto estão nesta vida mortal, mas para que lastimem terem merecido, após a perda da saciedade celeste, sofrer a falta dos bens necessários a sua subsistência e não gozar de bens estáveis. Reconheçam esta miséria e chorem-na. O Senhor não quis que eles fossem infelizes para sempre e os tornará felizes com este choro. (Sl 116, 7) ‘Volta, minha alma, a teu repouso, porque o Senhor te fez bem’, não por teus (p. 187) méritos, ou por tuas forças, e sim ‘porque o Senhor te fez bem. Preservou-me a alma da morte’. É admirável, caríssimos irmãos, que tendo dito que devia sua alma voltar ao repouso, porque o Senhor lhe fez bem, prossegue: ‘Preservou-me a alma da morte’” (p. 187).

Qualquer palavra humana que não venha dessa fonte pascal é mortal. Mas a palavra pascal é mansa. Pedro precisava receber o dom da mansidão, que lhe viria da Páscoa, para poder confessar ‘Tu és o Messias’. Então esta confissão não seria mais um paradoxo: “Então voltaria ao repouso, porque foi preservada da morte? Não se costuma antes dizer que a morte é repouso? Qual, enfim, é sua ação, se a vida é repouso e a morte desassossego? A ação da alma deve ser tal que tenda a uma segurança tranquila e não que aumente um trabalho inquieto, porque preservou-a da morte aquele que dela se compadeceu e disse: ‘Vinde a mim todos os que estais cansados sob o peso do vosso fardo e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para as vossas almas, pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve’ (Mt 11, 30). Mansa, portanto, e humilde, como seguidora do caminho que é Cristo, deve ser a alma em ação que tende ao repouso, mas não preguiçosa e indolente, para que consuma a sua carreira, conforme está escrito: ‘Conduze teus negócios com doçura’ (Eclo 3, 17). Com efeito, para evitar que a mansidão levasse à preguiça, foi acrescentado: ‘Conduze teus negócios’. Não aconteça como nesta vida que o repouso do sono nos refaz para o trabalho, mas a ação boa leva a um repouso sempre vigilante”.

É na liturgia que confessamos os mistérios de Cristo: “Tudo isso nos concede, nos demonstra Deus, do qual diz o salmo: ‘Porque o Senhor me fez bem. Preservou-me a alma da morte, das lágrimas os olhos, da queda os pés’. Todo aquele que compreende o que significa o vínculo da carne, canta essas palavras para si mesmo, em esperança. Na verdade, foi dito: ‘Fui humilhado e ele me salvou’. Mas também é verdade o que disse o Apóstolo: ‘Pois fomos salvos em esperança’ (Rm 8, 24)” (p. 188).

É na liturgia que confessamos os mistérios de Cristo. E todos sabem que a liturgia não é somente a Eucaristia dos domingos. É toda ação pascal de Cristo da Igreja, no tempo litúrgico, nos sacramentos, na oração dos Salmos etc. Estes são os bens de que dispomos, porque o Messias volta seu olhar e seu ouvido e nos dá sua atenção. Esta é a experiência da oração litúrgica que todo cristão experimenta e sempre pode experimentar.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

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