Entre os grandes Padres da Igreja Latina, Santo Ambrósio de Milão, 340-397, ocupa lugar de destaque por sua contribuição decisiva para a formação da doutrina cristã e a vida espiritual do Ocidente. Sua vasta e diversificada obra abrange tratados dogmáticos, comentários bíblicos e textos espirituais, sempre animada por um espírito pastoral e uma aguçada capacidade de interpretar as Escrituras à luz da vida cristã concreta. Em seu comentário ao Evangelho de Lucas, Ambrósio concentra-se em uma das passagens mais vívidas e provocativas do Novo Testamento: a história do homem rico e do pobre Lázaro de Lc 16,19-31.
Mais do que uma parábola moralizante, o Bispo de Milão interpreta a história como um verdadeiro retrato espiritual das contradições humanas entre riqueza e pobreza, luxúria e temperança, descrença e fé. O contraste entre o rico que se deixa dominar pelos cinco sentidos e o pobre que, na sua pobreza, recolhe as migalhas da fé, oferece a Ambrósio a oportunidade de desenvolver uma reflexão profunda sobre o valor da verdadeira riqueza, a centralidade da fé ortodoxa e o perigo de uma vida entregue às vaidades do mundo.
O Evangelho de Lucas 16, 19 inicia o relato do homem rico nestes termos: ‘Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e de linho fino. Ambrósio, por sua vez, inicia seu comentário referindo-se ao homem rico e a seus cinco irmãos, que ele entende não serem senão uma imagem dos cinco sentidos que excitam a concupiscência humana, de modo especial os ricos, pois a riqueza lhes dá continuamente acesso a bens refinados. Por outro lado, o pobre, que representa o homem evangélico, vive na estreiteza da temperança. A recompensa deste supera em muito os bens daquele: “É, ao que parece, mais um relato do que uma parábola, porque até um nome próprio é expresso. Não é sem razão que o Senhor mostrou aqui um homem rico que, tendo esgotado as delícias do mundo, instala-se no inferno do tormento de uma fome perpétua (e não é em vão que o vemos com cinco irmãos, que representam os cinco sentidos do corpo, unidos por uma espécie de fraternidade de natureza, que ardiam com concupiscências sem medida e sem número). Por outro lado, Lázaro é hóspede no seio de Abraão, como num porto tranquilo e num asilo inviolável, por temor que nós, seduzidos pelos prazeres presentes, não permaneçamos nos vícios, ou que, vencidos pelo cansaço, nos esquivemos do sofrimento e da labuta. Quer se trate de Lázaro, pobre no mundo, mas rico diante de Deus, ou daquele que, segundo o Apóstolo, é pobre de palavra, rico de fé, Tg 2, 5 – porque nem toda pobreza é santa nem toda riqueza condenável, pois é a devassidão que desonra a riqueza e, por isso, a santidade recomenda a pobreza –; quer se trate, pois, do homem apostólico, que mantém a verdadeira fé e não busca o diadema das palavras, nem a composição dos raciocínios, nem as roupas suntuosas das frases, este tal recebe sua recompensa combatendo os hereges com usura… e reprimindo, por outro lado, as concupiscências da carne, que, como disse, são atiçadas pelos cinco sentidos. Recebe ele, pois, sua recompensa com usura, tendo em pagamento as riquezas superabundantes e a renda da eternidade” (Ambrósio de Milão. ‘Traité sur l’Évangile de Saint Luc’, vol. II. Gabriel Tissot. Paris: Du Cerf, 1958, p. 105-106, tradução do autor).
As migalhas rejeitadas no banquete do rico são primeiramente a própria fé, que, como na alegoria do grão de mostarda, torna-se, no coração despojado do pobre, um alimento substancioso e eterno, que é o segundo sentido principal da imagem das migalhas: “E não é erro pensar que esta passagem também diz respeito à fé: Lázaro recolhe-a rejeitada da mesa dos ricos; suas úlceras, no sentido literal, certamente horrorizariam os ricos enojados, e entre seus banquetes suntuosos e seus convidados perfumados, ele não suportaria o odor de úlceras lambidas por cães, aquele que se cansa dos cheiros do ar e da própria natureza. No entanto, a arrogância e o intumenscimento dos ricos se traduzem em sinais apropriados, tão alheios à sua condição de homens que, por se estabelecerem acima da natureza, encontram nas misérias dos pobres um tempero para seus prazeres, riem dos necessitados, insultam os miseráveis e roubam aqueles de quem deveriam ser compadecidos. Que se recolham as duas perspectivas – como Lázaro. Encontro aí semelhança com aquele que, várias vezes açoitado pelos judeus, 2Cor 11, 24, para dar paciência aos crentes e chamar os gentios, ofereceu, por assim dizer, as úlceras do seu corpo para os cães lamberem; pois está escrito: ‘Chegarão à tarde e suportarão a fome como cães’, Sl 58, 15. A cananeia reconheceu este mistério, e se lhe disse: ‘Ninguém toma o pão dos filhos para jogá-lo aos cães. Ela reconheceu que este pão não é o pão que se vê, mas aquele que se entende; então ela respondeu: ‘Assim é, Senhor, mas também os cacborrinhos comem das migalhas que caem da mesa dos seus donos’, Mt 15, 27. Estas migalhas vêm deste pão. E como o pão é a palavra e a fé na palavra, as migalhas são, por assim dizer, os dogmas da fé. Então, o Senhor responde, para mostrar que ela havia falado como crente: ‘Ó mulher, grande é a tua fé’, Mt 15, 28” (p. 106-107).
Migalhas realmente abundantes, pois afastam o jejum do amor, o jejum da fé, o jejum da esperança: “Ó benditas úlceras, que impedis o sofrimento eterno! Ó migalhas abundantes, que afastais o jejum sem fim, que encheis de alimento eterno o pobre que vos recolhe! O chefe da sinagoga rejeitou-vos da sua mesa, quando rejeitou os mistérios íntimos dos escritos proféticos e da Lei, porque as migalhas são as palavras das Escrituras, das quais se diz: ‘E rejeitaste as minhas palavras atrás de ti’, Sl 49, 17. O escriba rejeitou-vos, mas Paulo recolheu-vos com o maior cuidado, atraindo o povo por seus sofrimentos. Estes lamberam as suas úlceras que o viram, mordido pela serpente, sem medo de sacudir a serpente, e que creram (At 28, 3ss.). O guardião da prisão lambeu-as: lavou as feridas de Paulo e acreditou, At 16, 33. Cães felizes, em quem pinga o líquido de tais úlceras, para encher seus corações e fortificar suas gargantas, a fim de que treinem para o cuidado da casa, para a defesa do rebanho, e o vigiem contra os lobos!” (p. 107).
Ambrósio aplica a parábola àqueles que rejeitam a fé ortodoxa, de modo especial, aos arianos. O importante aqui é a fé no Jesus do Evangelho e não aquele criado pelas teologias humanas: “Agora representam os arianos, que, voltados às preocupações do mundo, buscam a aliança do poder real para atacar a verdade da Igreja com armas bélicas. Não vos parecem estendidos em leitos de púrpura e linho fino, defendendo a sua constituição como verdade, pródigos de discursos suntuosos, quando alegam que a terra tremeu sob o corpo do Senhor, que o céu se cobriu de trevas, que sua palavra elevou ou acalmou os mares, e ainda negam que ele é o verdadeiro Filho de Deus? Apelai também ao pobre que, sabendo que o Reino de Deus não é uma questão de palavras, mas de virtude, 1Cor 4, 20) exprimiu o seu pensamento em poucas palavras, dizendo: ‘Tu és o Filho do Deus vivo’, Mt 16, 16. Não vedes que essas riquezas são indigentes e esta pobreza opulenta? A heresia, rica, compôs muitos evangelhos; a pobre fé guardou o único evangelho que recebeu. A filosofia, rica, fez muitos deuses; a pobre Igreja conhece um só Deus. Entre os pobres e os ricos há, portanto, um ‘grande abismo’, porque, depois da morte, os méritos não podem ser mudados: assim nos mostram os ricos no inferno, querendo sugar dos pobres um pouco de brisa refrescante; pois a água é o conforto da alma em estado de sofrimento, como diz Isaías: ‘E a água fluirá bem das fontes da salvação’, Is 12, 3. Mas por que ele é torturado antes do julgamento? Porque para um devasso a privação dos prazeres é um castigo, pois o Senhor diz novamente: ‘Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaque e Jacó, e todos os profetas no Reino dos Céus’, Lc 13, 28” (p. 107-108).
A arrogância do homem rico é finalmente explicada à luz dessa falta de fé: “Agora, a longo prazo, esse rico se confunde com um mestre, enquanto para ele é hora de aprender, e não de ensinar. Nesta passagem, o Senhor declara com a última evidência que o Antigo Testamento é o fundamento da fé. Ele rejeita a incredulidade dos judeus e abrevia as artimanhas dos hereges que fazem tropeçar a alma fraca; pois os pequeninos são aqueles que ainda não conhecem o crescimento na virtude. Enfim, deve-se observar que, antes, na parábola do administrador, Lc 16, 1ss, e agora nesta parábola dos ricos, há um apelo à misericórdia. Lá, o Senhor ensina a dar aos santos, a quem chama de amigos e a quem atribui as tendas, Lc 16, 9, e aqui, aos pobres” (p. 108).
A passagem de Lucas 16:19-31 revela uma profundidade teológica e espiritual que continua a desafiar a consciência cristã. O homem rico simboliza não apenas a devassidão dos sentidos e a arrogância da riqueza, mas também a incredulidade daqueles que rejeitam a Palavra de Deus, enquanto Lázaro personifica a pobreza fecunda da fé e a esperança que se alimenta das “migalhas” da Escritura. Ao aplicar o contraste evangélico ao contexto de seu tempo, especialmente na luta contra as heresias arianas, Ambrósio reafirma que a verdadeira opulência reside na confissão do Cristo vivo e na fidelidade ao único Evangelho. O abismo entre ricos e pobres, hereges e crentes, é, em última análise, o abismo entre a incredulidade e a fé. Sua interpretação, portanto, nos convida a reconhecer que os bens passageiros não podem substituir o dom da fé, e que a esperança eterna é assegurada não pela abundância material, mas pela humildade e perseverança no seguimento de Cristo.
Carlos Frederico Calvet da Silveira
Professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio.