Uma vez mais Santo Ambrósio de Milão, 340-397, lega-nos um eloquente comentário ao Evangelho de Lucas, desta vez sobre as bem-aventuranças no Evangelho de Lucas. Para Santo Ambrósio, não são os bens materiais que faltam aos homens, mas lhes faltam sentimentos. É curioso que um homem de tão alta cultura e profunda fé venha lembrar os cristãos, e o homem em geral, da necessidade de seus afetos.
Geralmente, pensamos esses grandes doutores da Igreja como intelectuais, filósofos. Isto, contudo, não condiz com a sabedoria cristã, que é, antes de tudo, prática. E, diferentemente do que muitos pensam, a vida cristã é eminentemente afetiva. Do ponto de vista da experiência de fé, os afetos tornam-se fervor. Assim é nossa relação com Deus, que é Pai; com seu Filho, Jesus Cristo; com seus sacramentos. O sentimento de que fala Ambrósio é, pois, fervor que vem do Espírito: “Pois, de acordo com Davi, ‘nós penduramos nossas liras nos salgueiros’, Sal. 136, 2; e, segundo o Apóstolo, não confiamos na carne, mas confiamos no corpo, Fl 3,3; não temos confiança nos prazeres, temo-la nos sofrimentos, animados apenas por um sentimento de fervor espiritual e cingidos para realizar todas os mandamentos do céu, com a alma devotada e alerta, o corpo equipado e livre” (Ambrósio de Milão. ‘Traité sur l’Évangile de Saint Luc I’. Par Dom Grabriel Tissot. Paris: Du Cerf, 1956, p. 103, tradução do autor).
As bem-aventuranças do Sermão da Montanha têm, no Evangelho de Lucas, uma característica especial, pois conclamam o homem a elevar-se a seus mais altos afetos. Por isso, Ambrósio comenta que “São Lucas relatou apenas quatro bem-aventuranças do Senhor, S. Mateus oito; mas nas oito estão as quatro, e nas quatro as oito. A lista de quatro liga-se às virtudes cardeais; a outra, de oito, insiste neste número misterioso: tantos salmos são intitulados ‘por oitava’; e te é prescrito repartir as coisas em oito, isso talvez indique as bem-aventuranças, Ecl 11, 2. Assim, a oitava é tanto a realização da nossa esperança como também a soma das virtudes. Vejamos a primeira bem-aventurança, que é a mais desenvolvida. ‘Bem-aventurados os pobres de espírito’, disse ele, ‘porque para eles é o Reino dos Céus’. Esta bem-aventurança foi proferida em primeiro lugar por ambos os evangelistas. Ela é a primeira segundo a ordem, e como que mãe e geradora das virtudes, pois é desprezando os bens do mundo que se merecerão os eternos. Ninguém pode obter a recompensa do Reino dos Céus, se cativo do desejo deste mundo, é incapaz de emergir dele. (…) Vem, Senhor Jesus; ensina-nos a ordem das tuas bem-aventuranças! Pois não é sem ordem que primeiramente disseste: bem-aventurados os pobres de espírito; em segundo lugar, os mansos; em terceiro, os que choram…” (p. 201).
E quem é o pobre? A primeira bem-aventurança dá oportunidade a Ambrósio para nos expor claramente o conceito de pobreza e o lugar do pobre na revelação bíblica: “’Bem-aventurados’, disse ele, ‘os pobres’. Os pobres não são todos abençoados; porque a pobreza é neutra: pode haver bons e maus pobres. A menos que você ouça que pobre bem-aventurado é aquele descrito pelo Profeta quando disse que ‘melhor é um pobre justo do que um rico mentiroso’, Pr 19, 1. Bem-aventurado o pobre que chorou e a quem o Senhor ouviu, Sl 33, 7: pobre no pecado, pobre nos vícios, pobre em quem o príncipe do mundo nada encontrou, Jo 14, 30; pobre à imitação do pobre que, sendo rico, se fez pobre por nós, 2Cor 8, 9. Também Mateus dá a explicação completa: ‘Bem-aventurados, diz ele, os pobres de espírito’, porque os pobres de espírito não se inflam, não se exaltam em seus pensamentos carnais. Tal é, pois, a primeira bem-aventurança. Tendo deixado todo pecado, despido de toda malignidade, contentando-me com minha simplicidade, desprovido de mal, resta-me moderar meu caráter. De que me serve faltar os bens do mundo se não sou manso e tranquilo? Pois seguir o caminho reto é, naturalmente, seguir aqu’Ele que diz: ‘Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração’, Mt 11, 29” (p. 202).
A grande mensagem que nos vem da pobreza é a do despojamento: “Portanto, abandonai toda improbidade, sede desprovidos de vícios, conforme à verdadeira pobreza; abrandai vossos sentimentos, para que não vos irriteis ou pelo menos não pequeis irritando-se, como está escrito: ‘Ficai irados, mas não pequeis’, Sl 4, 5. É glorioso acalmar a emoção pela sabedoria. Não se é considerado menos virtuoso por se conter a irritação e reprimir a indignação do que não ficar com raiva. Embora o primeiro geralmente seja julgado mais calmo e o segundo, mais corajoso. Feito isso, lembrai-vos de que sois pecadores: lamentai vossos pecados, lamentai vossas faltas. E é bom que a terceira bem-aventurança seja para os que choram seus pecados, porque é a Trindade que perdoa os pecados. Portanto, purificai-vos com vossas lágrimas e lavai-vos com vossas lágrimas. Se chorardes por vos mesmos, outro não terá de chorar por vós, pois se Saul tivesse chorado por seus pecados, Samuel não teria chorado por ele, 1Sm 15, 35” (p. 202-203).
Em oposição às bem-aventuranças, Lucas apresenta-nos quatro ‘ais’. De modo que a oposição à bem-aventurança dos pobres, encontramos a imagem dos ricos. “Há, portanto, uma ligação e uma sequência entre as virtudes, de modo que, tendo uma, acabamos por ter várias. Os santos têm sua própria virtude, mas a que é mais extensa tem uma recompensa mais ampla. (…) Assim, a temperança implica pureza de coração e alma; a justiça, misericórdia; a prudência, paz; a fortaleza, mansidão. ‘Ai de vós, ricos, que tendes o vosso consolo!’ Embora a abundância de riquezas contenha muitas tentações para o mal, há também aí mais de um convite à virtude. Sem dúvida, a virtude não precisa de recursos, e a contribuição dos pobres é mais digna de louvor do que a liberalidade dos ricos. Contudo, aqueles a quem se condenam pela autoridade da sentença celestial não são os que têm riquezas, mas os que não sabem como usá-las. Pois, se os pobres são mais dignos de louvor quando dão com boa vontade e não se deixam deter pelos raios da escassez em perspectiva, não julgando que são pobres se têm o suficiente para sua condição, então o rico é mais repreensível, porque deve ao menos dar graças a Deus pelo que recebeu, não guardar escondido e inutilmente um bem dado para a utilidade comum, nem chocar tesouros enterrados na terra” (p. 207-208).
Daí, a sentença de que falta sensibilidade, sentimento, fervor àquele que se entrega às riquezas: “Portanto, não é a fortuna, mas o sentimento que está em falta. (…) O cristão é, portanto, formado nesta boa escola: não contente com o direito da natureza, procura a delicadeza. Se todos, mesmo os pecadores, concordam em retribuir a afeição, aquele cujas convicções são de ordem superior deve também esforçar-se mais generosamente na virtude, a ponto de amar mesmo aqueles de quem não gostam. Porque, se a ausência de motivos para ser amado impede o exercício do amor, não impede, contudo, a virtude”. (p. 210)
A graça de Deus em nos oferecer uma salvação para além de toda e qualquer justiça há de despertar nos fiéis a delicadeza do perdão: “E muitas vezes os maiores motivos de amizade vêm da paciência como resposta à insolência; do bem-fazer como resposta à injúria. Sem dúvida, lembro-me de ter ouvido dizer, e acreditamos que, pelo menos neste ponto isolado a arrogância da filosofia cedeu, ao dividir a justiça em três partes: uma para Deus, que se chama piedade; outra para os pais e o resto da humanidade; a terceira para os mortos, para lhes dar um funeral justo. Mas o Senhor Jesus, superando os oráculos da Lei e os pináculos da filosofia, estendeu o benefício da bondade até àqueles que o feriram. Com efeito, se o inimigo que lutava convosco com as armas da guerra, ao depor as armas, obtém a piedade que o salva; e se, tantas vezes, por respeito à natureza ou em virtude da própria lei bélica, consentimos em dar vida aos vencidos, quanto mais devemos conceder isso do ponto de vista superior da religião! Pois, se o guerreiro não se impressiona com o instinto de autopreservação, o que não deve fazer o soldado da paz!” (p. 211).
Os sentimentos permitem que nos aproximemos da concretude do Corpo de Cristo, sem os entraves da carne, que, às vezes, vêm revestidos de intelectualidade. A Igreja é reunião de todos os pobres que se revestem do Corpo de Cristo.
Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO