A Arquidiocese do Rio de Janeiro celebrou o 60º aniversário da Declaração Nostra Aetate (“Em nosso tempo”) com um encontro fraterno que reuniu o arcebispo metropolitano, Cardeal Orani João Tempesta, e lideranças de seis diferentes tradições religiosas: muçulmanos, judeus, representantes do candomblé, membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a Fé Bahai e da espiritualidade wicca. O evento, promovido pela Comissão Arquidiocesana de Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso, foi realizado no Edifício São João Paulo II, na Glória, no dia 24 de novembro.
Promulgada pelo Papa Paulo VI durante o Concílio Vaticano II, em 28 de outubro de 1965, a Nostra Aetate transformou a relação da Igreja Católica com as religiões não cristãs ao reafirmar o respeito, o diálogo permanente e a busca pela fraternidade universal. O documento condena o antissemitismo, valoriza o encontro com os muçulmanos e reconhece o que há de verdadeiro e santo nas diversas tradições religiosas.
O professor Cláudio Jacinto, da PUC-Rio, também ofereceu uma reflexão sobre os principais aspectos da Nostra Aetate, sublinhando sua importância para a promoção da paz e do entendimento entre os povos. Ele lembrou que o documento aponta para o apreço da Igreja pelos muçulmanos, reafirma a condenação ao antissemitismo e reconhece elementos de verdade e santidade presentes em outras tradições religiosas.
O encontro contou ainda com a presença do bispo auxiliar do Rio de Janeiro, Dom Roque Costa Souza, e do representante da Missão Somos Um, Izaias Carneiro, que reforçaram o compromisso conjunto com a promoção da unidade, da amizade e do diálogo entre diferentes expressões de fé.
“A paz começa sempre pelo diálogo”
Na abertura do encontro, Dom Orani dirigiu uma mensagem de acolhida marcada por gratidão e firme apelo ao compromisso comum com a paz e a convivência respeitosa entre as tradições religiosas. Em suas palavras iniciais, afirmou: “É com grande alegria e profundo sentido de responsabilidade que nos reunimos hoje para celebrar os 60 anos da Declaração Nostra Aetate.”
Dom Orani relembrou que o documento conciliar representou uma virada histórica na relação da Igreja Católica com outras religiões. “Quando, em 1965, o Concílio Vaticano II promulgou esta declaração, iniciava-se um tempo de graça, um verdadeiro Pentecostes de diálogo e aproximação”, afirmou. Ele destacou que a Nostra Aetate reconheceu formalmente que “a humanidade inteira nasce de um único Criador” e que cada tradição guarda “sinais de verdade, sementes do Verbo, caminhos pelos quais Deus fala, inspira e conduz.”
Ao refletir sobre os desafios atuais, o arcebispo afirmou que o documento continua profundamente atual. “Hoje, seis décadas depois, olhamos para este texto não como uma memória distante, mas como um chamado sempre atual.” Diante das tensões e polarizações contemporâneas, ressaltou que “o diálogo inter-religioso não é um luxo… é uma necessidade moral, um compromisso espiritual e um serviço à paz.”
Dom Orani destacou que o Rio de Janeiro, pela sua pluralidade cultural e religiosa, torna ainda mais urgente esse compromisso. “No Rio de Janeiro, cidade plural, vibrante e diversa, este compromisso se torna ainda mais urgente.” Ele lembrou que a boa convivência exige esforço contínuo: “A boa convivência não acontece por acaso; ela nasce de encontros reais, de mãos estendidas, de respeito mútuo, de gestos concretos de fraternidade.”
O arcebispo sublinhou o valor do encontro que reunia lideranças religiosas, professores e representantes da sociedade civil. “A paz começa sempre pelo diálogo. Onde há diálogo sincero, não há espaço para intolerância. Onde há amizade social, não vingam o ódio nem a violência. Onde há reconhecimento do outro, floresce a esperança.”
Ao recordar o ensinamento central da Nostra Aetate, Dom Orani reafirmou o repúdio da Igreja à discriminação religiosa. “A Igreja rejeita toda discriminação por motivo de raça, cor, condição de vida ou religião.” Mais do que rejeitar, disse, o documento “convida à cooperação, à colaboração, ao trabalho conjunto em favor da justiça, da caridade e da paz.”
O arcebispo também destacou as iniciativas de diálogo já presentes na cidade. “Me alegra ver que, no Rio de Janeiro, este espírito conciliar tem encontrado eco e expressão concreta.” Ele citou ações de cooperação social, momentos de oração pela paz e relações fraternas mantidas há anos entre lideranças de diferentes tradições. “Somos diferentes, sim, mas não somos adversários. Somos guardiões de um bem comum maior do que cada uma de nossas tradições isoladamente.”
Dom Orani convidou os presentes a manterem viva a construção de relações fraternas. “Queremos continuar sendo construtores de pontes. O mundo precisa de pontes — não de muros. Precisa de diálogo — não de discursos de ódio.” Ele agradeceu às lideranças religiosas presentes: “Obrigado pela amizade, pela colaboração e pelo testemunho.” Também dirigiu agradecimento à PUC-Rio e ao professor Cláudio Jacinto pelas reflexões oferecidas.
O arcebispo finalizou sua mensagem de acolhida com um apelo espiritual: “Que Deus nos conceda a graça de renovar nosso compromisso com a paz. Que cada um de nós seja instrumento de aproximação, de respeito e de fraternidade.” Ele concluiu expressando o desejo de que o encontro fortaleça a convivência no Rio de Janeiro, “terra de convivência respeitosa, de liberdade religiosa e de amizade social.”
“No diálogo inter-religioso, buscamos aquilo que nos une”
O secretário executivo da Comissão Arquidiocesana de Ecumenismo e Diálogo Inter-Religioso, padre Nelson Águia, avaliou a importância histórica e a atualidade da Declaração Nostra Aetate, que completou 60 anos, ressaltando seus frutos e apontando caminhos para novos avanços. Para ele, o documento representa um divisor de águas. “Último documento do Concílio, ele é um marco no diálogo inter-religioso”, afirmou, destacando que, mesmo seis décadas após sua promulgação, continua sendo tema extremamente relevante.
Padre Nelson observou que o diálogo proposto pela Nostra Aetate se expandiu muito além das religiões explicitamente mencionadas no documento e afirmou que houve progressos com muçulmanos, judeus, budistas e hinduístas, especialmente impulsionados pelas iniciativas do Papa Francisco. Segundo ele, “a importância que ele deu no diálogo com o mundo muçulmano certamente são iniciativas que brotaram da Declaração”, tornando-a “muito frutuosa”.
Apesar dos avanços, o sacerdote destacou que ainda há desafios significativos, sobretudo no contexto brasileiro. Ele afirmou que a Arquidiocese do Rio deve intensificar a aproximação com as religiões de matriz africana. “Precisamos avançar no diálogo com as comunidades de matriz africana, como a Umbanda e o Candomblé, que ainda hoje sofrem intolerância e desrespeito religioso”, disse. Também apontou a necessidade de aprofundar o diálogo com a comunidade espírita, especialmente em pautas comuns, como a defesa da vida.
Padre Nelson ressaltou que o esforço pelo diálogo responde ao caráter diverso da sociedade brasileira. “Queiramos ou não, o mundo é plural. A Igreja precisa estar atenta a esses sinais da pluralidade”, afirmou. Ele esclareceu que o verdadeiro diálogo não exige renúncia de convicções, mas abertura para conhecer o outro. “No diálogo inter-religioso, nós não buscamos diferenças; buscamos aquilo que nos une: a paz, a fraternidade, a concórdia”, acrescentou, mencionando ainda temas atuais como meio ambiente e clima, que exigem cooperação entre tradições religiosas.
Ao avaliar o encontro, padre Nelson Águia destacou a profundidade e a fecundidade do diálogo inter-religioso na cidade. “Por impulso e apoio do nosso arcebispo, Dom Orani, esse diálogo é profundo, é fértil, ele acontece”, afirmou. Para ele, a iniciativa fortalece a convivência respeitosa e amplia o compromisso comum com a fraternidade universal. “Foi um encontro de grande aprendizado para todos”, concluiu.
Exercício da liberdade da fé
O superintendente de Promoção da Liberdade Religiosa do Estado do Rio de Janeiro e vice-presidente do Conselho de Defesa e Promoção da Liberdade Religiosa, Justino Carvalho, avaliou como extremamente significativo o encontro realizado com o arcebispo do Rio, Dom Orani, e lideranças de diferentes tradições religiosas.
Justino destacou que a declaração conciliar representa um divisor de águas nas relações entre diferentes expressões de fé. “É um documento importante porque ele trata um marco de convergência, de respeito e de fraternidade, para que a humanidade caminhe dentro de uma linha de compreensão, acolhimento e respeito em busca da verdade.”
O encontro, segundo ele, foi marcado pela diversidade e pela riqueza do diálogo. “Tivemos representantes de diversas religiões, lideranças da religião wicca, de matrizes africanas, do judaísmo, do islamismo, além de lideranças da Igreja Católica”, afirmou, ressaltando que a reunião foi inclusiva e promoveu uma conversa profunda sobre a atualidade da Nostra Aetate e sua importância “nos dias de hoje”.
Justino Carvalho também enfatizou que o encontro fortalece o compromisso comum com a liberdade religiosa, o respeito entre as crenças e a convivência em um Estado laico. “Acredito que vamos ter bons desdobramentos dentro dessa linha da liberdade religiosa, do direito de crença e principalmente do Estado laico, que permite o exercício da liberdade da fé e da expressão das pessoas e dos seus credos.”
Laços históricos e afinidades espirituais
O encontro inter-religioso contou com a participação da Sociedade Beneficente Muçulmana do Rio de Janeiro, representada por Fernando Celino, que ressaltou a alegria e o significado profundo da data para a comunidade islâmica. Ele lembrou que, assim como em 1965, quando o documento conciliar foi promulgado, os muçulmanos se sentiram honrados pelo modo como a Igreja Católica os reconheceu. “Assim como há 60 anos, a comunidade islâmica se sentiu honrada pelo modo gentil e respeitoso com o qual a Igreja se dirigiu aos muçulmanos. Nos sentimos muito felizes por sermos convidados para participar desse evento tão importante.”
Fernando destacou a relação de amizade construída ao longo das últimas décadas entre muçulmanos e católicos no Rio de Janeiro. “Aqui no Rio já temos há cerca de três décadas uma relação de profunda amizade com os representantes da arquidiocese para o diálogo inter-religioso”, recordou, mencionando a parceria constante com o padre Nelson Águia. Segundo ele, essa convivência gerou inúmeras ações conjuntas em prol da promoção de valores comuns, sempre guiadas pela busca do bem comum e da cultura de paz.
Durante o encontro comemorativo da Nostra Aetate, Fernando observou que a dinâmica inter-religiosa se reafirmou de modo fraterno e construtivo. “Pudemos reforçar os belos laços que nos unem, no reconhecimento mútuo que nos permite dialogar de modo franco e respeitoso sobre questões sensíveis do passado.” Após a palestra do professor Cláudio Jacinto e a manifestação das demais lideranças religiosas, ele afirmou ter percebido que “existem de fato muito mais semelhanças do que discordâncias entre nós, o que renovou as nossas esperanças na construção de um mundo onde haja mais pontes do que muros.”
Fernando Celino também destacou pontos da Nostra Aetate que dialogam diretamente com o pensamento islâmico, como a unidade da humanidade, a abertura ao diálogo frutífero e a reciprocidade entre as comunidades de fé. Ele ressaltou que a própria declaração expressa que a Igreja tem “grande estima” pelos muçulmanos, enquanto o Alcorão registra uma mensagem de reconhecimento semelhante: “Constatarás que aqueles que estão mais próximos do afeto dos muçulmanos são os que dizem: ‘Somos cristãos’!”
“Agradecemos mais uma vez à comunidade católica, na pessoa do querido Dom Orani, pelo acolhimento que fez com que nos sentíssemos irmanados e em casa.” Fernando concluiu rogando a Deus para que a amizade entre as comunidades continue a florescer e se fortaleça, “para que todos os povos e religiões trabalhem pela paz e pela justiça na Terra.”
Carlos Moioli