Beda: o sinal da fé

São Beda foi um grande conhecedor da retórica clássica e da bíblica. E não há outro livro tão rico em imagens e símbolos do que o Apocalipse. Por conseguinte, a perícope deste domingo, que se restringe ao Capítulo 7, 2-4.9-14 desse último livro das Escrituras, é uma oportunidade para Beda formar nosso espírito na sabedoria que emana dos símbolos.

Ao abrir um novo selo do Livro da Revelação, ouvimos logo uma advertência pelo cuidado com a Terra, com a obra de Deus. Beda mostra-nos que a salvação de Cristo liberta toda a Criação, mas compete ao homem o arrependimento: “‘E vi outro anjo subindo do Oriente, e tinha o selo do Deus vivo; este anjo clamou em alta voz aos outros quatro, a quem fora dado o poder de fazer mal à terra e ao mar’, Ap 7, 2. Este é o Senhor, nascido na carne, que é um anjo de grande conselho, Is 9, 6, o mensageiro da vontade do Pai, o amanhecer do alto nos visitou, Lc 1, 78, carregando a bandeira da cruz, com a qual ele sela as testas daqueles que lhe pertencem. E ele clamou em alta voz aos quatro anjos, a quem foi dado poder para ferir a terra e o mar…  A alta voz do Senhor é uma pregação sublime: – Arrependei-vos, pois o Reino dos Céus está próximo, Mt 3, 2” (Beda. ‘Bede: Commentary on Revelation’. Tradução de Faith Wallis. Liverpool: Liverpool University Press, 2013, p. 149).

O Senhor proíbe a destruição completa do universo até que todos aqueles que ele chamou estejam bem protegidos pelo sinal da salvação, que é a Páscoa de Cristo, simbolizada pela cruz selada na testa dos seus: “‘E dizia: – Não façais mal à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que assinalemos, sobre a sua fronte, os servos do nosso Deus’, Ap 7, 3. Desde que nosso Senhor sofreu, não apenas o governo do inimigo é esmagado, mas também o governo deste mundo, como vemos com nossos olhos, e como lemos sobre a estátua que a pedra da montanha partiu, Dn 3, 34, até que assinalemos os servos do nosso Deus em suas testas. O governo dos gentios é rompido para que o rosto dos santos possa ser livremente inscrito com o sinal da fé a que os gentios resistem. Este sinal da cruz representa o reino de nosso Senhor, estendido em todos os lugares. Como diz o velho dístico: olhai para a terra, dividida em quatro partes distintas, assim vereis que o sinal da fé contém todas as coisas. Nem é fortuito que o Tetragrama, o Nome do Senhor, esteja escrito na testa do sacerdote, Ex 28, 36, porque este é o sinal na testa dos fiéis, do qual o Salmo para os lagares canta: ‘Ó Senhor nosso Senhor, quão admirável é vosso nome em toda a terra’ etc., até o ponto em que ele diz que podeis destruir o inimigo e o defensor, Sl 8, 1-3” (p. 149-150).

Os assinalados para a salvação são todos os homens que são reunidos pela tradição dos apóstolos, os quais, por sua vez, herdam a tradição dos Patriarcas de Israel. Daí a simbologia do número doze, para dizer que nossa fé, a fé da bem-aventurança, está calcada nos Apóstolos: “‘E ouvi o número daqueles que foram assinalados, que eram cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel’, Ap 7, 4. Neste número finito é significada a multidão inumerável de toda a Igreja, surgida dos patriarcas, seja por descendência carnal, ou por imitar sua fé. Pois se sois de Cristo, então sois da semente de Abraão, Gl 3, 29. Este doze, multiplicado por doze, refere-se ao aumento da perfeição, e é levado ao ápice em mil, que é o número dez ao quadrado e ao cubo, significando a vida firme da Igreja. Por esta razão a Igreja é frequentemente simbolizada pelo número doze, porque ela habita em toda a esfera quádrupla do mundo na fé da santíssima Trindade. Pois três vezes quatro é dez mais dois. Doze apóstolos foram eleitos para pregar esta fé ao mundo, simbolizando com este número o mistério de sua obra” (p. 150).

As vestes brancas são também o sinal do esplendor do Espírito Santo: “‘Depois disso, vi uma grande multidão, que nenhum homem poderia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, que estavam em pé diante do trono e diante do Cordeiro, revestidos de vestiduras brancas, com palmas nas suas mãos’, Ap 7, 9. Após a recapitulação, que se inseriu por meio de exemplo, a Escritura retorna à ordem da narrativa, e proclama a glória daqueles que vencerão o mal da perseguição final. E porque isso segue – de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e à vista do Cordeiro – pode ser entendido também desta forma: depois de enumerar as tribos de Israel, a quem o Evangelho foi pregado pela primeira vez, ele deseja mencionar a salvação dos gentios também, vestidos com vestes brancas e palmas nas mãos. Pelas vestes, ele indica o batismo, e pelas palmas, o triunfo da Cruz, e que essas pessoas venceram o mundo em Cristo. No entanto, as vestes também podem significar o esplendor concedido pelo Espírito Santo” (p.  155).

Mais uma vez, Beda refere-se ao Espírito Santo que age na vida dos fiéis, à presença de Cristo em nosso meio. Presença primordial escolhida pelo próprio Cristo, por isso a insistência de Beda, de modo que assim se mostra que é sempre o Espírito que nos faz bem-aventurados: ‘E eles clamavam em alta voz, dizendo: – Salvação ao nosso Deus que está sentado no trono, e ao Cordeiro’, Ap 7, 10. Com uma grande voz – isto é, com poderosa devoção e louvor incessante – eles proclamam que o Pai reina junto com o Filho no trono. No entanto, ele reina junto com o Espírito Santo, pois assim diz: ‘Ao que está sentado no trono, e ao Cordeiro’; e como é dito no Evangelho: ‘Para que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem tu enviaste’. O que se entende é que eles podem conhecer o único e verdadeiro Deus” (p. 156).

Quem é capaz de adorar o Senhor. Parece que a imagem dos anjos adorando o Senhor nos ensina que é preciso chegar à altura da santidade para atingirmos a verdadeira adoração: “‘E todos os anjos estavam ao redor do trono e os anciãos e dos quatro animais e prostraram-se sobre os seus rostos, diante do trono, e adoraram a Deus’, Ap 7, 11. Por todos os anjos, João designa a grande multidão de pessoas adorando o Senhor. Vós que estais ao redor dele, trazei presentes, Sl 75, 12. E eles se prostraram diante do trono sobre seus rostos e adoraram a Deus. Ele não menciona que a multidão, ou os animais, ou os anciãos adoraram, mas apenas os anjos, pois eles são a multidão, os animais e os anciãos. No entanto, nesses espíritos angélicos pode ser entendido o que é dito sobre aqueles que se alegram na salvação das nações: ‘Alegrem-se, gentios, com seu povo, e que todos os anjos de Deus o adorem’, Rm 15, 10” (p. 156).

Sete modos de louvar a Deus, sete títulos pelos quais o louvamos: ‘E diziam: – Amém! Bênção e glória e sabedoria e ação de graças e honra e poder, e força ao nosso Deus pelos séculos dos séculos. Amém’, 7, 12. A Igreja oferece a Deus o louvor sétuplo de poder, que ela confessa ter recebido dele em cada um de seus membros” (p. 156).

E a pergunta didática para formar o povo: “‘E um dos anciãos, tomando a palavra, disse-me: – Quem são estes que estão vestidos de vestes brancas? Donde vieram?’, Ap 7, 13 Ele faz esta pergunta para instruir” (p. 156).

Todos são lavados pelo sangue do Cordeiro e não apenas aqueles que morrem e derramam seu sangue pela fé, mas todos, pois é o sangue de Cristo que redime: “‘Respondi-lhe: – Meu senhor, tu o sabes. E ele me disse: – Estes são os que saíram de grande tribulação, lavaram as suas vestes e as embranqueceram no sangue do Cordeiro’, Ap 7, 14. Devemos entrar no Reino de Deus mediante muitas tribulações, At 14, 21. Mas quem não sabe que a tribulação do Anticristo será maior do que as outras? … E lavaram suas vestes e as tornaram brancas no sangue do Cordeiro. Ele não diz isso apenas dos mártires, pois eles são lavados em seu próprio sangue. Mas o sangue de Jesus, o Filho de Deus, limpa toda a Igreja de toda mancha” (p. 157).

Vimos uma vez mais como Beda interpreta as imagens da Palavra de Deus: ele procede, acima de tudo, pela interpretação do texto pelo texto, isto é, recorrendo às antigas imagens que foram figuras dos novos tempos de Cristo. A dificuldade do livro do Apocalipse é maior no uso dessas imagens, porque este livro nos abre para a bem-aventurança do povo de Deus, a qual ainda é distante em nossa imaginação. Por ora, só temos o sinal da fé.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

Categorias
Categorias