Entre as muitas imagens simbólicas que permeiam a tradição patrística, poucas são tão expressivas quanto a do favo de mel evocada por Cirilo de Alexandria. A Palavra divina, para o Patriarca, é fonte de doçura e cura: ela suaviza o coração endurecido, ilumina a mente e purifica a oração. Na homilia sobre a parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14), Cirilo contrapõe dois modos de dirigir-se a Deus: o da soberba e o da humildade. O fariseu, inebriado por sua própria justiça, transforma a oração em autoglorificação, tornando-se amargo como o fel; o publicano, ao contrário, reconhece sua miséria e, na contrição, encontra a doçura que vem do alto. A sabedoria divina, comparada ao mel, age então como bálsamo espiritual, ensinando que a verdadeira oração não se eleva pela altivez da voz, mas pela humildade do coração.
A Palavra de Deus é comparada ao favo de mel, isto é, à doçura que é ótima para o corpo e para a alma humana. Esta doçura que recebemos do alto há de se traduzir também em nossas palavras, sobretudo naquelas que dirigimos ao próprio Deus: “Vós que amais a instrução e estais ansiosos para ouvir, recebei mais uma vez as palavras sagradas: deleitai-vos no mel da sabedoria! Assim está escrito: ‘Boas palavras são favos de mel, e sua doçura é a cura da alma’, Pr 16,24. Pois o trabalho das abelhas é muito doce e beneficia de muitas maneiras a alma do homem, mas o mel divino e salvador torna aqueles em quem habita hábeis em toda boa obra e ensina-lhes os caminhos do aprimoramento espiritual. Vamos, portanto, como disse, receber de novo na mente e no coração as palavras do Salvador. Ele nos ensina de que maneira Lhe devemos fazer nossos pedidos, a fim de que o ato não fique sem recompensa para aqueles que o praticam; e que ninguém pode irritar a Deus, cujos presentes vêm do alto, por meio daquelas mesmas coisas pelas quais alguém imagina que obterá algum benefício. Pois está escrito: ‘Há um homem justo, que perece na sua justiça’, Ecl 7,15.” (Cirilo de Alexandria. *A Commentary upon the Gospel According to S. Luke*. Vol. II. By R. Payne Smith. Oxford: The University Press, 1859, p. 556, tradução do autor).
Talvez pudéssemos ilustrar o oposto à doçura do favo de mel com a imagem do fel. O amargor do fel mostra-se também nas palavras orgulhosas e ressentidas: “Aquele que orou é condenado porque não fez sua oração com sabedoria. ‘Dois homens subiram ao Templo para rezar: um era fariseu, o outro cobrador de impostos’. E aqui devemos admirar o sábio arranjo de Cristo, nosso Salvador comum, em todas as coisas que Ele faz e diz, pois, pela parábola que nos foi lida anteriormente, Ele nos chamou à diligência e ao dever de orar constantemente, conforme disse o evangelista: ‘E também lhes contou uma parábola, para mostrar que importa orar sempre e não cessar de o fazer’, Lc 18,1. Instou assim seus discípulos à diligência da oração constante e, para que fizessem isso com diligência, mas não sem discrição, e assim não enfurecessem Aquele a quem suplicamos, Ele nos mostra excelentemente o modo pelo qual devemos ser diligentes na oração: ‘Dois homens subiram ao Templo para rezar’. Observai aqui, peço-vos, a imparcialidade e a justiça da natureza infalível, pois Ele chama aqueles que oravam de ‘homens’, pois Ele não olha a riqueza ou o poder de cada um, mas visa à sua igualdade natural e, assim, considera como homens todos os que habitam a terra, em nenhum aspecto diferentes uns dos outros” (p. 556-557).
As grandes faltas que se cometem numa oração que não tem o próprio Deus como fonte: “E qual era então o modo da sua oração? ‘O fariseu, diz, orou para si mesmo. Ó Deus, eu te agradeço porque não sou como os outros homens, ladrões, desonestos, adúlteros, nem como este cobrador de impostos’. Muitas são as faltas simultâneas do fariseu, pois, antes de tudo, ele é jactancioso e insensato porque se elogia a si mesmo, embora a Sagrada Escritura clame em alta voz: ‘Seja o outro quem te louve, e não a tua própria boca; um estranho e não os teus próprios lábios’, Pr 27,2. Mas, ó excelente senhor, pode-se muito bem dizer-lhe: eis que aqueles que praticam boas e santas ações, como qualquer um pode ver, não estão muito dispostos a ouvir as palavras dos bajuladores. Sim, e mesmo que os homens os exaltem, muitas vezes ficam cobertos de vergonha, baixam os olhos ao chão e imploram silêncio aos que os elogiam. Porém, este fariseu desavergonhado elogia e exalta a si mesmo porque é melhor do que os ladrões, os desonestos, os adúlteros…” (p. 557).
A nossa tendência é pensarmos que merecemos tratamento exclusivo, que somos únicos, e, de fato, o somos, mas não por nossos méritos, e sim pelo amor de Deus: “Nossa virtude, portanto, não deve estar contaminada com faltas, mas deve ser sincera e irrepreensível e livre de tudo que possa trazer reprovação. Que proveito há em jejuar duas vezes na semana, se isso serve apenas como pretexto para a ignorância e a vaidade, e nos torna arrogantes, altivos e egoístas? Dais o dízimo de vossas posses e vos gabais disso, mas assim provocais a ira de Deus, condenando os homens e acusando outros por tal motivo. Vós mesmos estais inchados, embora não sejais coroados pelo decreto divino da justiça, mas, pelo contrário, amontoais louvores a vós mesmos: ‘pois eu não sou como os outros homens’… Modera-te, ó fariseu: ‘Põe uma guarda em minha boca, sentinela à porta de meus lábios’, Sl 141,3. Falais com Deus que conhece todas as coisas, aguardai, pois, o decreto do Juiz. Nenhum dos habilidosos na prática de um esporte coroa a si mesmo, nem qualquer homem recebe a coroa de si mesmo, mas aguarda a convocação do árbitro. Abaixai vosso orgulho, pois a arrogância é amaldiçoada e odiada por Deus. (…) Ofereceis o dízimo, mas de outra maneira feris Aquele que honrais, pois condenais os homens em geral. Este é um ato estranho à mente que teme a Deus, pois Cristo mesmo disse: ‘Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados’, Lc 6,37” (p. 558).
A atitude oposta é a do cobrador de impostos. Sua humildade é o rosto do próprio Cristo, especialmente quando temos certeza do Deus encarnado, rebaixado à nossa condição. O Cristo, por sua encarnação, justifica os humilhados: “Mas e o cobrador de impostos? Ele ‘ficou à distância’, nem mesmo se aventurou a erguer os olhos para o alto. Vós o vedes abstendo-se de toda ousadia no falar, como se não tivesse direito a isso, ferido pelas censuras da consciência, porque temia ser visto, até mesmo por Deus, como alguém que tivesse descuidado de Suas leis e levado vida dissoluta. Vedes que, por sua maneira externa, ele acusa sua própria depravação. O insensato fariseu estava ali, ousado e inchado, levantando os olhos sem escrúpulos, dando testemunho de si mesmo e orgulhoso. O outro, porém, envergonha-se de sua conduta, tem medo de seu Juiz, bate em seu peito, confessa suas ofensas, mostra sua doença como ao médico, reza para que Ele tenha misericórdia. E qual é o resultado? Vamos ouvir o que o Juiz diz: ‘Este homem, diz Ele, desceu justificado para sua casa, e não o outro’” (p. 559).
Que é a oração senão o deleite do favo de mel? Eis a razão por que os orantes são doces, pois sobre eles se derrama a própria sabedoria divina: “Vamos, portanto, ‘orar sem cessar’ (1Ts 5,17), segundo a expressão do bem-aventurado Paulo, mas tenhamos o cuidado de fazê-lo corretamente. O amor a si mesmo desagrada a Deus, e Ele rejeita a arrogância vazia e um olhar orgulhoso, muitas vezes inchado por causa do que não é de modo algum excelente. E, ainda que o homem seja bom e sóbrio, ele não se deixe, por isso, cair em vergonhosa soberba; antes, lembre-se de Cristo, que diz aos santos apóstolos: ‘Quando vós tiverdes feito todas essas coisas, a saber, o que vos foi ordenado, digais: Somos servos inúteis, fizemos o que era nosso dever fazer’, Lc 17,10. (…) Examinai as palavras dos santos, porque um diz: ‘O justo é o acusador de si mesmo no início de suas palavras’, Pr 18,17. E outro ainda: ‘Eu disse, confessarei minha transgressão ao Senhor; e vós perdoastes a iniquidade de meu coração’, Sl 32,5” (p. 559-560).
Cirilo mostrou que o espírito humano só é curado quando sua palavra se conforma à Palavra de Deus. O mel da sabedoria é, ao mesmo tempo, doçura e disciplina, graça e purificação: ele cura porque ensina o homem a reconhecer a própria indigência diante do dom divino. Assim, a alma torna-se doce não por mérito próprio, mas porque se deixa adoçar pela graça. A oração, quando nascida dessa humildade, é já comunhão com o Verbo encarnado, aquele que, rebaixando-se à condição humana, justificou os humilhados e ensinou que a verdadeira grandeza é o reconhecimento da própria pequenez. A “doçura que cura a alma” é, portanto, o selo da sabedoria cristã: uma palavra que se faz doce porque se alimenta da caridade e se cala diante do orgulho.
Carlos Frederico Calvet da Silveira Professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio.
 
								 
													 
													