Cirilo: Ele mesmo será a paz

Cirilo nasceu em Teodósia do Egito, no ano de 370, e morreu em Alexandria, em 444. Participou de inúmeras disputas teológicas e legou-nos grande obra escrita. Seu comentário ao livro do profeta Miqueias não tem tradução entre nós, de modo que as passagens que lemos aqui são oportunidade de conhecer um pouco mais deste padre alexandrino. O tema central desta meditação é a paz como superação das separações, das divisões e infidelidades humanas. Algum filósofo (talvez Erich Fromm) já explicou que o desamor nasce da separação. E o amor, da união. E o resultado de tudo é a paz, que é, ao mesmo tempo, fonte do amor.

E o que diz a Palavra de Deus no dia em que o Evangelho narra que Maria foi visitar sua prima Isabel? Haveria alguma conexão entre a paz pregada por Miqueias e essa visita?  Sim, Maria se ‘reúne’ com sua prima, isto é, supera uma separação física com sua visita, carregando a paz. Sigamos aqui Cirilo na leitura de Miqueias 5, 1-4.

Apesar de toda infidelidade dos fiéis, a paz reinará. Ela começa em Belém, mas só é plena em Jerusalém, cidade que resume a paz: “‘Tu, Belém de Éfrata, pequenina entre os mil povoados de Judá, de ti há de sair aquele que dominará em Israel; sua origem vem de tempos remotos, desde os dias da eternidade’. Aqui, a declaração profética dá-nos as boas novas do retorno de nossa sorte ao seu estado anterior. Com grande clareza, o profeta refere-se à restauração que ocorreu em Cristo. O que se realizou por meio dele, como diz a Escritura, é uma nova criação; o antigo passou e se tornou novo por meio da transformação da condição humana e de sua restauração, 2Cor 5,17. Ele foi rei, vede bem, e tornou o governo sobre todas as coisas mais uma vez desejável. Agora, ele está se referindo ao governo das coisas em geral e em particular; Israel foi governado no princípio por Deus, como disse, e, nesse meio tempo, por homens santos. Pouco tempo depois, sofreu a perda do bom senso, desprezou a vida sob a liderança de Deus, preferiu o governo humano, teve Saul como rei. Eles então pecaram muito, pois quando o Deus de todos foi ofendido, o Senhor disse ao bem-aventurado Samuel: ‘Não é a ti que eles rejeitam, mas a mim, para que eu não reine mais sobre eles’, 1Sm 8, 7. Não há dúvida de que a experiência provou que a consequência não foi benéfica para eles, mas sim problemática, prejudicial, levando-os à ruína; eles caíram, assim, em situações terríveis e inelutáveis. Consequentemente, para trazer Israel de volta a seu estado original, por assim dizer – quero dizer, servir sob Deus como rei – ele profetizou em voz alta que Cristo, que era de Belém, seria seu Salvador e Redentor” (Cirilo de Alexandria, ‘Commentary on the Twelve Prophets’. By Robert C. Hill. Washington: The Catholic University of America Press, 2008. Vol. 2. p. 232, tradução do autor).

A promessa que começa a se realizar: “Ele se dirige a Belém, então, ou casa de Éfrata. Enquanto a região é chamada de Éfrata, Belém é uma pequena cidade ou vila na região, de onde vieram Jessé e Davi, e também a santa virgem, que deu à luz para nós o divino infante, seu próprio filho, Jesus, ‘cujo governo estava sobre seus ombros, e seu nome é Anjo do Grande Conselho.’ Ele reinou pela cruz, e uma vez que e tornou ‘sujeito à morte, morte de cruz,’ como o divinamente inspirado Paulo diz, ‘Deus também o exaltou sobremaneira, e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus Cristo todo joelho se dobre no céu, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor para a glória de Deus Pai. Amém’, Fil 2, 8-11. O profeta, portanto, diz: Ó Belém, casa de Éfrata, mesmo que vós sejais insignificantes demais para cidades esplêndidas e grandes da Judeia, cheias de vastos números de habitantes – ainda assim, mesmo que seus habitantes e residentes sejam bem poucos –, vós vos tornareis uma enfermeira e sereis chamada de cidade daqueles que reinam sobre Israel, tão boa pastora a ponto de dar a própria vida pelas ovelhas e reinar sobre todo o Israel, Jo 10, 11. E não apenas aqueles da linhagem de Israel, mas também aqueles mencionados na promessa de Abraão. Deus disse a ele em algum lugar: ‘É por meio de Isaque que a descendência será nomeada para vós’, pela frase ‘por meio de Isaque’ que significa ‘por meio de promessa’”.

A paz do Cristo que vem é para todos. “Consequentemente, a promessa é claramente aplicável não apenas àqueles da linhagem de Israel, ‘mas também àqueles que seguem o exemplo da fé que nosso ancestral Abraão tinha antes de ser circuncidado’, Rm 4, 12. Então seria como dizer: Ele governará sobre todos que crerem nele e se relacionarem comigo por meio dele, pois estamos relacionados ao Pai por meio do Filho, como este mesmo confirma ao dizer: ‘Ninguém vem ao Pai exceto por mim’. Cristo, o bom pastor, portanto, emergiu de Belém, aquele que ‘nos apascenta no jardim e entre os lírios’, fornece o doce odor dos oráculos do Evangelho, oferece o que ele tem para dar como flores perfumadas àqueles dispostos a colhê-las e serem espiritualmente preenchidos com a fragrância que vem delas. Ele disse, lembrai-vos, ‘Eu sou uma flor dos campos, um lírio dos vales’”.

Nascerá em Belém uma fé firme, que superará as divisões: “‘Deus deixará seu povo ao abandono, até ao tempo em que uma mãe der à luz; e o resto de seus irmãos se voltará para os filhos de Israel’ (v.3). O profeta parece ter ponderado dentro de si mesmo e pensado sobre o assunto, dizendo: Deus não falará falsamente, mas definitivamente realizará suas promessas. Se Israel está desfrutando de tais expectativas promissoras, e o líder nascerá para eles, governará e os livrará de todos os problemas, por que cairá nas mãos do inimigo? Então, em consideração ao tempo da promessa, e percebendo que ainda não chegara, ele oferece uma explicação ao dizer: já que o tempo da promessa está consideravelmente atrasado, e eles estão presos em inúmeras falhas, sem de forma alguma cessar de pecar, consequentemente ele vos abandonará, isto é, entregar-vos-á ao inimigo, até o tempo daquele trabalho de parto, ou seja, até que aquele bebê divino seja libertado do ventre virginal. Este será o tempo em que a redenção final ocorrerá, e eles desfrutarão de prosperidade segura, sem nada faltar para sua satisfação. Enquanto o profeta medita sobre isso, e, por assim dizer, sussurra para si mesmo, Deus responde: ‘Ela dará à luz, convocando-vos para uma fé firme’. Semelhante a isso é a palavra dita ao profeta Habacuque, ‘Ainda um pouco, e aquele que está vindo virá e não tardará’, Hab 2, 3. Em outras palavras, ele definitivamente nascerá, e o resto de seus irmãos retornará aos filhos de Israel. Uma massa inumerável de judeus de fato aceitou a fé em Cristo, os discípulos bem-aventurados antes dos outros, enquanto aqueles que se deleitaram em sua descrença perderam a esperança; ainda assim, no fim dos tempos, eles serão levados a se juntar aos outros, e se apressarão rapidamente, por assim dizer, para o que deveriam ter se aproximado desde o começo”.

O nome de Cristo é paz. O nosso bom nome deriva dele: “‘Ele não recuará, apascentará com a força do Senhor e com a majestade do nome do Senhor seu Deus; os homens viverão em paz, pois ele agora estenderá o poder até os confins da terra, e ele mesmo será a paz’. Isto quer dizer que ele deve ‘assumir o comando’: o pastor assumirá o controle independentemente de suas próprias ovelhas, não confiando a orientação a ninguém mais, como fez no passado com o bem-aventurado Moisés. Em vez disso, é verdade que ‘não foi nenhum embaixador, nenhum anjo, mas o próprio Senhor que nos salvou’, Is 63, 9. Ele nos pastoreará com força, tornando-nos à prova de qualquer esforço ou dificuldade; ele assumirá um papel de liderança, por assim dizer, e nos salvará, não permitindo que falsos pastores nos prejudiquem por engano, ou animais selvagens devastem os rebanhos, nem dando margem aos poderes perversos e hostis para serem culpados de abuso desenfreado dos crentes ou para serem opressivos para aqueles que são consagrados. Em vez disso, ele nos capacitará a ‘andar sobre áspides e basiliscos, e pisar sobre leões e dragões’, Sl 91, 13. É dele que vem nosso bom nome, de fato, que somos elevados a uma posição de eminência e esplendor, e alcançamos os confins da terra sob o céu. Ele é quem é nossa força e poder, ele nosso mediador e reconciliador, ele nossa paz. Afinal, ele aboliu ‘o muro de divisão, ele anulou a Lei com seus mandamentos e criou uma nova humanidade no lugar das duas, fazendo assim a paz’, como diz a Escritura, Ef 2, 14-15, e selando-as em unidade com os laços da paz. Paz, portanto, é um termo que lhe convém e é verdadeiro, mesmo que ele também seja chamado de Cristo”.

‘Ele mesmo será a paz’ significa dizer que Jesus vem superar as divisões, as separações. Primeiramente, a separação do homem de Deus; depois, do próprio povo infiel que rompe sua aliança. E o nosso bom nome vem de Cristo.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

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