Dídimo: Jesus e Abraão

Dídimo, o Cego, nasceu em Alexandria por volta de 312 e aí faleceu entre 395 e 399. Foi chefe da escola catequética de Alexandria, a ‘Didaskáleion’. Provavelmente, teve como discípulos Rufino e São Jerônimo. Escreveu diversas obras, entre elas algumas de exegese bíblica. Seu ‘Comentário sobre o Gênesis’, até as primeiras décadas do século XX, foi conhecido somente de forma fragmentária. Em 1941, foi reencontrada grande parte do texto, embora ainda não o comentário completo. Deste texto descoberto, selecionamos parte de suas considerações sobre o Capítulo 15 do Gênesis, que narra o sono ou o arrebatamento de Abrão e a promessa de sua grande descendência.

Neste domingo de Quaresma, a leitura de Gn 15, 12-18 é interpretada por Dídimo consoante seu método alegórico, como se verá. Este método alegórico permite-nos ver a relação íntima entre o Evangelho de Lucas, que hoje nos narra a transfiguração de Jesus e a ‘transfiguração’ de Abraão: “‘Ao pôr do sol, um transe caiu sobre Abrão, e eis que uma terrível escuridão caiu sobre ele’ (v. 12): ao contemplar isso como se fossem visões divinas, Abrão estava atemorizado por um medo que advém a quem é perfeito. Por outro lado, observa que esse transe ocorreu ao pôr do sol, o que sugere progresso, pois o dia de sua presente condição passara, de modo que mais progresso lhe sobreviria. Sobre Abrão, viera a bênção que diz: ‘Eu o saciarei de longos dias’, Sl 91, 16, uma promessa que não tem nada a ver com longevidade, sugere antes progresso na iluminação” (Dídimo, o Cego. ‘Commentary on Genesis’. By Robert Hill. Washington: The Catholic University of America Press, 2016, p. 203, tradução do autor).

O transe, ou o sono, de Abrão foi uma espécie de arrebatamento divino, isto é, uma transfiguração momentânea da condição humana numa vivência de Deus. Dídimo enfatiza ainda neste arrebatamento a diferença entre o que é meramente humano e o que é divino: “Um transe abateu-se sobre ele, então, um transe não como um desajuste, mas como maravilhamento e mudança de coisas visíveis para invisíveis. Quando o Apóstolo diz, por exemplo: ‘Se estamos fora de nós por obra de Deus, ou se estamos em sã consciência por vós…’, 2Cor 5, 13, sugere não que somos loucos, mas que, transportados pela contemplação para além das coisas humanas, chegamos isso por obra de Deus. Davi relata o mesmo: ‘Disse em meu transe: ‘Todo homem é mentiroso’, Sl 116, 11. Em outras palavras, estando fora de si e tendo se tornado divino, Davi diz que as outras pessoas que são mentirosas, pois ele mesmo não é mais humano por causa de sua participação no Espírito Santo, e é diferente daqueles de quem se diz: ‘Visto que há inveja e discórdia entre vós, não estais sendo carnais e vos comportando de modo humano?’ 1Cor 3, 3” (p. 203).

O contraste das trevas com a luz faz parte do simbolismo da visão de Deus: “Quando Abrão foi arrebatado, então uma terrível escuridão caiu sobre ele, o resultado não das trevas, mas da obscuridade, não foi prontamente compreendida; era um medo profundo, que não afeta pessoas superficiais. Agora, como prova de que ‘trevas’ é frequentemente usada no sentido de ‘obscuridade’, as Escrituras dizem: ‘Ele fez das trevas o seu esconderijo’, 2Sm 22,12” (p. 203-204).

O prêmio dessa experiência é inicialmente a descendência de Abrão: “‘O Senhor disse a Abrão: Fica sabendo que teus descendentes serão habitantes de uma terra que não é deles, e as pessoas os escravizarão e maltratarão por quatrocentos anos. Mas eu julgarei o povo pelo qual eles serão escravizados, e mais tarde eles partirão de lá com grandes posses’ (vv.13-14). A passagem prediz a permanência do povo no Egito. Não foi a sua própria terra que eles ocuparam quando escravizados pelo Faraó e gravemente maltratados pelo Faraó e pelos egípcios. Não há, pois, discrepância entre esta declaração e o livro do Êxodo, que diz: ‘Depois de quatrocentos e trinta anos, o poder do Senhor saiu do Egito’, enquanto aqui diz depois de quatrocentos. Devemos notar, no entanto, que não disse que eles partiram ao completar os quatrocentos anos, apenas depois de quatrocentos anos, o que dá espaço para os trinta” (p. 204).

Contudo, essa descendência sofrerá provações, antes de gozar dos bens que lhe serão reservados: “A promessa, ‘julgarei o povo pelo qual eles são escravizados’, alcançou seu cumprimento consoante o relato do Êxodo. Ele lhes infligiu dez pragas e, ao final, ‘afundaram como chumbo nas águas impetuosas’. Eles também saíram de lá com grandes posses, como os fatos provam em Ex 15.10; 12.35–36, e com isso aprendemos que, mesmo que Deus permita o sofrimento de alguém por um período, Ele não está indiferente a isso, ao contrário, Ele leva tudo isso a bom termo” (p. 204).

Outro símbolo fundamental desta passagem é o fogo, que significa tanto luz, calor, como purificação: “Quando o sol se pôs e escureceu, apareceu um braseiro fumegante e uma tocha de fogo, que passaram por entre os animais divididos’ (v. 17). A clara importância da passagem poderia ser apresentada assim: ao pôr do sol apareceram chamas e viram-se um braseiro fumegante e tochas ardentes que passavam entre os animais cortados. Ambos estavam acesos e iluminando o local para que o patriarca pudesse ver o que aconteceu e pudesse ter uma revelação de forma mais divina desses símbolos, que devem ser investigados. Deve-se notar que um fogo apareceu não apenas na realização de uma aliança; também foi com fogo que a Lei foi dada por meio de Moisés e, embora vissem o fogo e ouvissem os mandamentos, não viram Aquele que falava. As implicações disso são as seguintes: como a Lei contém recompensas e castigos, ela foi dada no meio do fogo para indicar que a uns traz a queima, a outros a iluminação, já que o fogo tem um duplo efeito, iluminar e queimar. Assim, a Lei que foi dada queima os que a abandonam e ilumina os que a observam” (p. 206).

Deus ilumina as obras boas que fazemos, pois todas vêm de sua luz: “Da mesma forma, tochas e fumaça também apareceram nesta ocasião, sendo a fumaça o resultado e como que a consequência do acendimento de um fogo, enquanto uma chama é acesa antes. Dizemos, portanto, que diante das dificuldades, aquele que faz distinção entre o que deve ser feito e o que não deve ser feito requer iluminação de Deus e temor (simbolizado pelo braseiro) para realizar tudo pela razão correta” (p. 207).

E o fruto dessa experiência difunde-se a toda a descendência que se prolonga até a Igreja de Cristo, a todos os cristãos: “‘Naquele dia o Senhor fez aliança com Abraão, dizendo: ‘Aos teus descendentes darei esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio, o Eufrates’ (v. 18). A aliança foi forjada com a passagem das tochas entre as porções cortadas e com as palavras de Deus: aos teus descendentes darei esta terra. Também descreve a extensão da terra. Devemos também entender por uma interpretação anagógica explicada antes, porém, qual é a terra dada aos descendentes espirituais do homem santo. O Salvador também a promete aos que praticam a mansidão. Esta promessa se aplica aos verdadeiros filhos e não a todos os seus descendentes: ‘Não são os filhos da carne que são filhos de Deus, mas os filhos da promessa são contados como descendentes’, pois somente aquele que faz suas obras é seu filho, Mt 5, 5; Rm 9, 8; Jo 8, 39” (p. 207).

Ao usar o termo anagogia, Dídimo enfatiza essa subida mistagógica a Deus, ascensão que é sacramental. Não é, pois, difícil ver que, em todo o relato do arrebatamento de Abrão, está resumida a economia mística da salvação. A leitura alegórica e anagógica de Dídimo leva-nos a ver nos fatos vividos por Abrão, não simplesmente a promessa, mas a realização da vida divina em nós pelos sacramentos de Cristo que transfiguram a vida humana. Em outras palavras, o arrebatamento de Abrão é figura da transfiguração de Cristo e a transfiguração de Cristo é figura da transfiguração sacramental do cristão.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO  

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