O Papa Francisco assinou, no dia 21 de novembro de 2024, uma Carta Sobre a Renovação do Estudo da História da Igreja. Não se trata de mudar o currículo que, via de regra, tem início com uma visão geral, passa às Idades Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. Quer o Santo Padre, com sua Carta, incentivar, isto sim, uma mudança de enfoque no referido estudo. Passemos, pois, ao documento em questão. Está dirigido, de modo especial, a sacerdotes e agentes de pastorais.
Diz, logo no início, o Papa: “Estou bem consciente de que, na formação dos candidatos ao sacerdócio, se dedica uma considerável atenção ao estudo da História da Igreja, assim como é devido. O que eu gostaria de sublinhar agora seria mais um convite para que se promova, nos jovens estudantes de teologia, uma verdadeira sensibilidade histórica. Com esta última expressão, quero indicar não só um conhecimento profundo e atualizado dos momentos mais importantes dos vinte séculos de cristianismo que nos precederam, mas também – e sobretudo – o despertar de uma clara familiaridade com a dimensão histórica própria do ser humano. Ninguém pode saber verdadeiramente quem é, e nem o que pretende ser amanhã, se não alimentar o laço que o liga às gerações que o precederam. E isto não se aplica somente ao nível da história do indivíduo, mas também ao nível mais amplo da história da comunidade”.
Quer o Santo Padre que haja uma “retificação àquela terrível abordagem que nos faz compreender a realidade somente a partir da defesa triunfalista da própria função ou papel. […] Educar os candidatos ao sacerdócio numa sensibilidade histórica parece uma necessidade óbvia. E ainda mais no tempo em que vivemos, que ‘favorece também uma perda do sentido da história que desagrega ainda mais. Nota-se a penetração cultural de uma espécie de ‘desconstrucionismo’, em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo’” (Cf. Carta enc. Fratelli tutti (4 de outubro de 2020), 101: AAS 112 (2020), p. 1004 e 973).
O Papa denuncia um tipo de “fazer história” que tem caráter enviesado e pode levar ao triunfo de ideologias ou de viver uma espécie de “presente sem passado” que faz ver o hoje sem se lembrar do ontem. “Por isso, a necessidade de uma maior consciência histórica torna-se mais urgente no momento em que se alastra a tendência de tentar dispensar a memória ou de construir uma memória à medida das necessidades das ideologias dominantes. Frente ao apagamento do passado e da história ou diante das narrativas históricas ‘tendenciosas’, o trabalho dos historiadores, bem como o seu conhecimento e ampla divulgação, podem funcionar como um freio às mistificações, aos revisionismos interesseiros e a esse uso público particularmente empenhado em justificar guerras, perseguições, produção, venda e consumo de armas e tantos outros males. Temos hoje uma enxurrada de memórias, muitas vezes falsas, artificiais e até inverídicas, e ao mesmo tempo uma ausência de história e de consciência histórica na sociedade civil e também nas nossas comunidades cristãs. Tudo se agrava ainda mais se pensarmos em histórias cuidadosa e secretamente pré-fabricadas, que servem para forjar memórias ad hoc, memórias identitárias e de exclusão. O papel dos historiadores e o conhecimento das suas descobertas são hoje decisivos e podem ser um dos antídotos contra este regime mortífero de ódio que se assenta na ignorância e no preconceito”.
Há o verdadeiro historiador de enfrentar os fatos como eles são (ou foram) e interpretá-los nos seus respectivos contextos. Recorda o Papa que, na genealogia de Jesus, existem pessoas e fatos pouco dignos, mas Mateus não os alterou; ao contrário, demonstrou que, não obstante a tantas adversidades, floresceu Maria de quem nasceu Cristo (cf. Mt 1,16). Se assim foi na História da Salvação, na História da Igreja também há luzes e sombras. São palavras de Francisco: “Insisto que ‘a Shoah não deve ser esquecida […] não se devem esquecer os bombardeamentos atômicos de Hiroshima e Nagasaki […] também não devemos esquecer as perseguições, o comércio dos escravos e os massacres étnicos que se verificaram e verificam em vários países, e tantos outros eventos históricos que nos fazem envergonhar de sermos humanos. Devem ser recordados sempre, repetidamente, sem nos cansarmos nem anestesiarmos […] hoje é fácil cair na tentação de virar a página, dizendo que já passou muito tempo e é preciso olhar para diante. Isso não, por amor de Deus! Sem memória, nunca se avança; não se evolui sem uma memória íntegra e luminosa […] não me refiro só à memória dos horrores, mas também à recordação daqueles que, no meio de um contexto envenenado e corrupto, foram capazes de recuperar a dignidade e, com pequenos ou grandes gestos, optaram pela solidariedade, o perdão, a fraternidade. É muito salutar fazer memória do bem. O perdão não implica esquecimento […] Mesmo quando houver algo que por nenhum motivo devemos permitir-nos esquecer, todavia podemos perdoar” (Carta enc. Fratelli tutti (4 de outubro de 2020), 247.248.249.250: AAS 112 (2020), p. 1057-1059.
Vem, por fim, um aspecto que julgo ser decisivo e prático no documento que ora estamos analisando. É o último trecho da Carta do Santo Padre. Ei-lo: “Gostaria agora de acrescentar algumas pequenas observações sobre o estudo da História da Igreja. A primeira observação diz respeito ao risco de que este tipo de estudo possa manter certa abordagem meramente cronológica ou mesmo um desvio apologético, que transformaria a História da Igreja em um mero suporte da História da Teologia ou da espiritualidade dos séculos passados. Esta seria uma forma de estudar e, consequentemente, de ensinar a História da Igreja que não promove aquela sensibilidade à dimensão histórica de que falei no início”.
“A segunda observação diz respeito a que a História da Igreja ensinada em todo o mundo parece sofrer de um reducionismo generalizado, com uma presença ainda acessória em relação a uma Teologia, que então se mostra muitas vezes incapaz de entrar verdadeiramente em diálogo com a realidade viva e existencial dos homens e mulheres do nosso tempo. Porque a História da Igreja, ensinada como parte da Teologia, não pode ser desligada da história das sociedades. A terceira observação tem em conta a constatação de que há, na formação dos futuros sacerdotes, uma educação ainda inadequada no que diz respeito às fontes. Por exemplo, aos estudantes raramente são dadas as condições para que leiam textos fundamentais do cristianismo antigo, como a Carta a Diogneto, a Didaquê ou as Atas dos Mártires. No entanto, quando as fontes são de alguma forma desconhecidas, faltam os instrumentos para as ler sem filtros ideológicos ou pré-compreensões teóricas que não permitem uma assimilação viva e estimulante”.
“Uma quarta observação diz respeito à necessidade de ‘fazer história’ da Igreja – assim como de ‘fazer teologia’ – não só com rigor e exatidão, mas também com paixão e envolvimento: com aquela paixão e aquele envolvimento, pessoal e comunitário, próprios de quem, comprometido na evangelização, não escolheu um lugar neutro e desconexo, porque ama a Igreja e a acolhe como Mãe tal como ela é. Uma outra observação, ligada à anterior, diz respeito à ligação entre História da Igreja e Eclesiologia. A investigação histórica tem um contributo indispensável a dar para a elaboração de uma Eclesiologia que seja verdadeiramente histórica e mistérica (Cf. Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Dogmática Lumen gentium, 1)”.
“A penúltima observação, que me é muito cara, diz respeito ao desaparecimento dos vestígios daqueles que não souberam fazer ouvir a sua voz ao longo dos séculos, o que dificulta uma fiel reconstrução histórica. E aqui pergunto-me: não será um campo de estudo privilegiado, para o historiador da Igreja, trazer à luz, tanto quanto possível, o rosto popular dos últimos, e reconstruir a história das suas derrotas e das opressões que sofreram, mas também das suas riquezas humanas e espirituais, oferecendo instrumentos para compreender os fenômenos de marginalidade e de exclusão hoje? Nesta última observação, gostaria de recordar que a História da Igreja pode ajudar a recuperar toda a experiência do martírio, tendo consciência de que não há História da Igreja sem martírio e que esta preciosa memória nunca deve ser perdida. Também na história dos seus sofrimentos ‘a Igreja confessa que muitos benefícios lhe advieram e podem advir mesmo da oposição daqueles que se opõem a ela ou a perseguem’ (Conc. Ecum. Vaticano II, Const. Pastoral Gaudium et Spes, 44.). Precisamente onde a Igreja não triunfou aos olhos do mundo, foi quando alcançou a sua maior beleza”.
Proposto, em linhas gerais, os principais traços da nova Carta do Sumo Pontífice, faço votos de que ela seja acolhida no meio universitário e seminarístico, sobretudo, a fim de que surta o efeito almejado. Quem bem conhece o passado, vive melhor o presente e mais bem se prepara para o futuro. Aquele, como diz o Santo Padre, que sofre de uma cegueira sobre certos fatos da História da Igreja, interpreta-a de modo assaz deficiente e leva os que lhe são confiados ao mesmo caminho sinuoso. O estudioso há de sempre perguntar: Que texto é este que estou lendo? Em que contexto – ou com que reais intenções – foi produzido? Quem é seu autor? Qual a sua metodologia de trabalho? Em que fontes se baseou? Há outros autores que também tratam deste mesmo tema? São igualmente confiáveis? Etc. Quem usa destes e de outros sábios questionamentos dificilmente se ilude no estudo da História da Igreja ou mesmo de outras áreas do saber… O historiador há de falar o que os fatos falam e não o que ele (subjetivamente) gostaria que os fatos falassem a fim de dar aval à sua postura ideológica, histórica, eclesiológica, pastoral etc.
Na nossa Arquidiocese de São Sebastião do Rio de Janeiro temos, por exemplo, a grata alegria de contar com um Curso de História da Igreja por correspondência. Seu autor é Dom Estêvão Bettencourt, OSB, falecido em 2008, mas que, com sua inteligência ímpar, elaborou esta sua obra dentro dos moldes que o Papa coloca nos dias de hoje. Não nega os fatos, mas os estuda dentro de seus respectivos contextos sem receio de tratá-los como devem ser tratados. É divulgado pela Escola Mater Ecclesiae. Embora, seja uma iniciação a ser complementada posteriormente em outras fontes, não se pode negar que é material seguro para melhor conhecer esta santa Mãe que nos gerou para a vida divina pelo Batismo. Mãe santa…, mas que traz em seu seio filhos pecadores. Filhos aos quais ela mesma oferece remédio no sacramento da Confissão.
Igualmente louvável é a obra de Daniel Rops, conceituado historiador francês, em dez volumes traduzidos cuidadosamente pela Editora Quadrante. Obra de fôlego a trazer muitos detalhes que, se não lêssemos ali, passariam despercebidos na nossa formação. É um presente ao nosso público contar com uma coleção desta envergadura. Não é ácida com relação à Igreja, mas também não faz uma apologia adocicada como se o errado fosse certo e o certo fosse errado. Contextualiza os fatos e os debate de modo sério como devem ser debatidos. É, sem dúvida, importante manancial aos interessados.
Estudemos, pois, com afinco, a História da Igreja e muito ganharemos em nossa vida de fé…
Orani João, Cardeal Tempesta, O Cist.
Arcebispo de São Sebastião do Rio de Janeiro