João Crisóstomo: E não é só!

A passagem do Comentário de São João Crisóstomo à Carta de Paulo aos Romanos (5,5-11) é um testemunho exemplar da teologia soteriológica e da espiritualidade pastoral do grande Doutor da Igreja. Crisóstomo interpreta a cadeia argumentativa paulina, explorando com vigor retórico e precisão exegética a dinâmica interna do texto: a esperança que não decepciona, baseada não em expectativas humanas instáveis, mas no amor divino já derramado em nossos corações pelo Espírito Santo; a lógica do “ainda mais” que vincula a reconciliação realizada na morte de Cristo à segurança da salvação futura; e a transformação ontológica do inimigo pecador em filho e herdeiro. Esta passagem patrística, marcada por uma intensa catequese de esperança, destaca a coerência interna da economia da salvação de Paulo e ilumina, com grande relevância espiritual, o elo entre tribulação, paciência, experiência e esperança na jornada cristã.

Crisóstomo começa enfatizando que as tribulações, longe de nos sufocar, despertam e fortalecem a esperança cristã: “‘E a esperança não decepciona’ (Lc 5,5). As tribulações não apenas não tiram a esperança, mas também a criam. Diante do futuro, pois, a tribulação produz grande fruto, a saber, a paciência, e torna comprovado aquele que é tentado. Igualmente confere algo para o futuro: Faz com que a esperança reverdeça em nós. Com efeito, nada tanto prepara para esperar o bem como a boa consciência. Na verdade, nenhum daqueles que vivem honestamente desespera do futuro, enquanto muitos que descuidam de levar vida honesta, com a consciência pesada, não querem que exista juízo nem retribuição. E então, o que sucederá? Os bens para nós só existem em esperança? Certamente em esperança, mas não esperança humana, que cai e muitas vezes decepciona o que espera, porque aquele de quem aguardava auxílio morreu, ou mesmo, continuando em vida, muda de disposição. Entre nós, tal não acontece, mas sempre firme e imutável é a esperança” (João Crisóstomo. ‘Comentário às Cartas de Paulo’/1. São Paulo: Paulus, 2010).

Crisóstomo então baseia a confiabilidade dessa esperança na generosidade de Deus, manifestada através do dom do Espírito Santo: “Quem prometeu vive sempre, e nós que fruímos daqueles bens, embora morramos, vamos ressurgir, e nada absolutamente há que possa nos confundir, porque não abraçamos em vão e inutilmente uma esperança transitória. Com tais palavras libertou-os de qualquer dúvida, mas não se detém no presente, mas novamente os conduz ao futuro, em consideração para com os mais fracos que procuram os bens presentes e com eles não se contentam. Dá-lhes garantia do futuro por meio dos dons pretéritos. Não retruque alguém: E que acontecerá se Deus não quiser nos gratificar? Conhecemos o seguinte: Ele pode, permanece e vive. Qual, porém, a certeza de que também o quer? Pelos atos passados. Quais? Aquele amor que nos demonstrou. O que fez? — perguntas. Enviou o Espírito Santo. Por esta razão, tendo dito: ‘E a esperança não decepciona’, acrescenta a demonstração: ‘porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações’. Não disse: Foi dado, e sim: ‘Foi derramado em nossos corações’, indicando a divina liberalidade. Deu o máximo dom. Não o céu, a terra e o mar, mas o mais precioso que tudo isto: dos anjos e dos homens fez filhos de Deus e irmãos de Cristo. Mas, quem o fez? O Espírito Santo”.

O comentarista enfatiza que Deus concedeu suas bênçãos antes de nossas provações, o que elimina qualquer motivo para desespero: “Se Deus não quisesse nos doar grandes coroas por nossas canseiras, não nos teria concedido tais bens antes da labuta. Agora, efetivamente, não é honrando-nos insensível e progressivamente que assinala o ardor de sua caridade, mas derramando sobre nós simultaneamente uma torrente de bens e isto antes da luta. Por esta razão, apesar de tua indignidade, não percas a esperança, porque tens grande advogado, a saber, a caridade, perante o juiz. Por isso, tendo ele dito: ‘E a esperança não decepciona’ atribui tudo, não às nossas obras, mas ao amor de Deus. Depois de afirmar que o Espírito foi dado, passa novamente à cruz, nesses termos: ‘Foi, com efeito, quando ainda éramos fracos que Cristo, no tempo marcado, morreu pelos ímpios. Dificilmente alguém dá a vida por um justo; por um homem de bem haja talvez alguém que se disponha a morrer. Mas Deus demonstra seu amor para conosco’ (Lc 5,6-8). Isto é, se por um homem virtuoso, talvez ninguém queira morrer, reflete sobre o amor de teu Senhor que evidentemente não foi crucificado em prol de homens virtuosos, mas por pecadores e inimigos. Em seguida, ele o afirma: pelo fato de Cristo ter morrido por nós quando éramos ainda pecadores”.

A realização da reconciliação torna o cumprimento das promessas futuras ainda mais certo: “‘Quanto mais, então, agora, justificados por seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Pois se quando éramos inimigos fomos reconciliados com Deus pela morte do seu Filho, muito mais agora, uma vez reconciliados, seremos salvos por sua vida’ (Lc 5,9-10). À primeira vista trata-se de uma repetição, mas verificar-se-á que não é, após consideração atenta. Reflete. Ele quer garantir-lhes o futuro, e em primeiro lugar os envergonha referindo-se ao justo, ao assegurar: Ele se convenceu porque Deus é poderoso para cumprir o que prometeu; depois, por meio das tribulações, que podem nos conduzir à esperança; e ainda pelo Espírito que recebemos, e por fim comprova-o pela morte e pela nossa precedente maldade. E parece, na realidade, conforme afirmei, que se trata de um só e mesmo acontecimento, mas encontram-se dois, três e muitos mais. Em primeiro lugar, morreu; em segundo, a favor de ímpios; em terceiro, reconciliou, deu a salvação, justificou, transformou em imortais, filhos e herdeiros”.

O autor mostra que os efeitos abundantes da morte de Cristo dissipam todas as dúvidas e convidam até os mais endurecidos à fé: “Não se deve, portanto, confirmar somente tomando por base sua morte, assegura, mas ainda o dom que esta morte nos confere. Se somente tivesse morrido por nós que somos o que somos, seria máxima prova de amor o sucedido; consta, porém, que ele, ao morrer, concedeu dons e tantos dons a tais pessoas e então os eventos são excessivos, e induzem à fé até mesmo os mais rudes. Ninguém mais haverá de nos dar a salvação do que Cristo, que nos amou de tal modo quando éramos pecadores a ponto de entregar-se a si mesmo. Vês que grande comprovação oferece esta passagem para estabelecer a fé nos bens futuros? Anteriormente dois obstáculos dificultavam-nos a salvação: sermos pecadores e termos de conseguir a salvação por meio da morte do Senhor. Era muito difícil acreditar antes do acontecimento, e exigia muita caridade. Agora, porém, depois de ter acontecido, o restante torna-se mais fácil”.

Nada pode impedir a realização da esperança daqueles que já se tornaram amigos de Deus: “Com efeito, tornamo-nos amigos, e por isso a morte não é mais necessária. Aquele que de tal forma poupou os inimigos que não poupou o próprio Filho, agora não patrocinará os amigos quando já não há necessidade de entregar o Filho? Muitas vezes uma pessoa não salva porque não quer, ou porque, apesar de querer, não pode. Não se pode atribuir a Deus nenhum desses dois casos, desde que entregou o próprio Filho. Demonstrou também que o pode, quando justificou os pecadores. O que nos impede, portanto, de conseguirmos os bens futuros? Nada”.

Finalmente, a salvação recebida não traz vergonha pelo passado, mas glória pelo amor que a realizou: “Em seguida, para não sentires vergonha e enrubesceres ao ouvir falar de pecadores, inimigos, fracos, ímpios, escuta o que ele diz: ‘E não é só. Mas nós nos gloriamos em Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem desde agora recebemos a reconciliação’ (Lc 5,11). O que significa: ‘E não é só’? Não apenas conseguimos a salvação, diz ele, mas também nos gloriamos daquilo de que talvez se pensasse que nos envergonhamos. Se com tamanha maldade fomos salvos, é sinal de que somos muito amados por aquele que nos salvou. Conferiu-nos a salvação, não por intermédio de anjos ou arcanjos, mas do Unigênito. Tece-nos inúmeras coroas porque nos deu a salvação, a nós que éramos tais, por intermédio do Unigênito, e não só do Unigênito, mas de seu sangue. De fato, nada contribui para estimular à glória e à confiança do que sermos amados por Deus, e reciprocamente o amarmos. Isto torna esplêndidos os anjos, os principados e as potestades, e é mais importante do que o reino. Paulo preferia tudo isso ao reino. Felicito também as potestades incorpóreas porque o amam e em tudo lhe obedecem”.

A esperança cristã não é otimismo humano nem expectativa incerta, mas uma certeza profundamente enraizada no amor irrevogável de Deus, manifestado em Cristo e comunicado pelo Espírito Santo. Se Deus já fez todo o possível quando éramos fracos, maus e inimigos, quanto mais realizará agora que fomos justificados, reconciliados e nos tornamos seus amigos? A tribulação torna-se, assim, uma oportunidade pedagógica para o crescimento da paciência e o amadurecimento da esperança, que encontra o seu fundamento não nas obras humanas, mas na fidelidade divina.

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