João Eriúgena: mistério e símbolo

João é chamado ‘Eriúgena’ por referência a seu país de origem, a Irlanda (Eriu). João nasceu por volta do ano 800 e morreu em 870. Monge, gênio da cultura ocidental cristã, João viveu e ensinou na França carolíngia. Bento XVI comentou em sua catequese de 10 de junho de 2009: “Na realidade, todo o pensamento teológico de João Escoto é a demonstração mais evidente da tentativa de expressar o dizível do Deus indizível, fundando-se unicamente no mistério do Verbo feito carne em Jesus de Nazaré. As numerosas metáforas por ele utilizadas para indicar esta realidade inefável demonstram quanto ele está consciente da absoluta inadequação das palavras com as quais falamos destas coisas. E contudo permanece o encanto e aquela atmosfera de autêntica experiência mística que se pode ocasionalmente verificar nos seus textos”.

Ao comentar o Evangelho de João, o nosso monge enfatiza e explica o sentido do mistério a que se refere Bento XVI acima. Na passagem hoje escolhida, Eriúgena comenta a multiplicação dos pães e dos peixes operada por Jesus, conforme Jo 6, 1-15: “‘Jesus, portanto, ergueu os olhos e viu que uma grande multidão vinha em sua direção’, Jo 6, 5. Com razão perguntamo-nos por que o evangelista disse que Jesus levantava os olhos, como se não pudesse ver a multidão que vinha em sua direção sem levantar os olhos, Ele que tudo vira antes que o mundo fosse feito, e nunca precisou dos olhos do corpo para ver. Ele levanta seus olhos, ensinando-nos a levantar os olhos dos nossos corações e que o mundo inteiro venha correndo de todos os lados à fé em Cristo” (João Escoto Eriúgena. ‘Omelia e Commento sul Vangelo di Giovanni’. Por Giovanni Mandolino. Turnhout: Brepols, p. 172, tradução do autor).

O simbolismo do garoto que oferta os pães e os peixes. Trata-se do símbolo do Antigo Testamento, ainda as primícias da fé: “Um de seus discípulos, irmão de André, conta-lhe Simão Pedro: ‘Aqui só tem um menino que tem cinco pães de cevada e dois peixinhos, mas o que seriam estas coisas em comparação diante de tantas pessoas? Jo 6, 8-9. André, irmão de Simão Pedro, respondeu com a mesma simplicidade de Felipe. Mas nessa simplicidade está contida uma contemplação com muitos sentidos. Este garotinho, que baseado na história será entendido como um dos discípulos ou como um menino entre a multidão que os seguia, significa misticamente o legislador, ou seja, Moisés, que não é incongruentemente chamado de menino, porque a Lei dada por meio dele nunca levou ninguém à idade adulta da justiça, Hb 7, 19. O legislador é chamado de menino, porque prefigurou a unidade com as obras e profetizou com palavras a unidade futura da Igreja. André disse ‘aqui’, isto é, no Antigo Testamento: este, quando o Novo já começa a brilhar, perde valor, mas ainda não desapareceu completamente” (p. 174).

Eriúgena continua a explicar o simbolismo dos pães relacionados ao Antigo Testamento: “Os cinco pães de cevada são os cinco livros da Lei Mosaica, chamados de ‘cevada’, não sem razão, porque os homens carnais se alimentaram deles. A cevada é o alimento característico dos animais, não dos homens. (…) Os cinco pães significam os cinco livros de Moisés, tomados literalmente, ou os cinco sentidos do corpo. Com o mesmo critério especulativo, os cinco mil homens aludem à multidão daqueles que viviam sob a letra da lei, ou daqueles que continuam sujeitos aos sentidos carnais. O número mil é de fato perfeito e cúbico: dez vezes dez vezes dez é mil. E mil, multiplicado por cinco, alude à conclusão do número dos que vivem carnalmente e que, em breve, uma vez instruídos pela história sagrada e pelo aspecto visível das coisas, eles passarão às coisas espirituais” (p. 176-177).

Os dois peixes o fazem pensar nos dois Testamentos: “Os dois peixes aludem, naquilo que podem os símbolos sensíveis, aos dois Testamentos. Os peixes na água, na verdade, são os símbolos sensíveis do povo ainda carnal, mas que está começando a viver da maneira perfeita. Esses símbolos, no momento em que você começa a entendê-los um pouco mais detalhadamente, são distribuídos àqueles que os desejam corretamente, desde que os queiram. Na verdade, distribuir significa distinguir símbolos visíveis de seus significados intelectuais invisíveis, consoante a capacidade de cada um” (p. 180-181).

Embora fato histórico, o milagre operado por Jesus supera seu sentido material, pois se trata de um mistério, isto é, de um fato que é sinal de algo que todos os fiéis poderão participar: “‘O povo, portanto, vendo o milagre que Jesus tinha feito, disse: – Ele é verdadeiramente um profeta que vem ao mundo’, Jo 6, 14. De novo, a multidão imperfeita se engana, porque é devido a um milagre visível, e não pela força espiritual do milagre, que dizia que Ele era verdadeiramente um profeta vindo ao mundo” (p. 180).

Os sinais sensíveis são igualmente mistérios no Novo Testamento. Eriúgena explica ainda a diferença entre mistério e símbolo: “Mesmo no Novo Testamento, o mistério do batismo e o do corpo e sangue do Senhor foram ambos realizados em atos, transmitidos e expressos literalmente. E esta forma dos sacramentos é consistentemente chamada pelos Santos Padres de alegoria do fato e do dito. Há outra forma, que recebe adequadamente o nome de símbolo, e é chamada alegoria do dito, mas não do fato, porque consiste apenas nas palavras do ensinamento espiritual, e não em fatos sensíveis. Portanto, os mistérios são aqueles que, em cada um dos dois Testamentos, são ambos, tanto fatos históricos, como relatos literais. Entretanto, os símbolos não são fatos, mas ditos como se fossem fatos, com o único propósito de ensinar” (p. 181).

Os símbolos transmitem-nos ensinamentos espirituais; os mistérios são atos de Cristo dos quais todos podem participar: “Portanto, nos símbolos, isto é, nas exposições do ensinamento espiritual, transmitidas apenas pela alegoria da palavra e não pelo fato, não se recolhe nenhum pedaço, porque não se pode separar a história de significado espiritual. Aí se tem inteligência apenas do significado, enquanto não há fato. Novamente, no Novo Testamento, para dar um exemplo também a partir daí, o corpo e o sangue de nosso Senhor se cumprem em fatos (mistério), é investigado de acordo com seus significados espirituais (cérebro). O que é sentido e percebido externamente pelos homens carnais, submetidos aos cinco sentidos corporais, é pão de cevada, porque não conseguem ascender ao auge da inteligência espiritual, e é como um pedaço com o qual saciam seu pensamento carnal. O pedaço espiritual é para quem é capaz de conhecer a altura dos significados divinos desse mesmo mistério: portanto, é recolhido por eles para que não se perca. Na verdade, o mistério composto de letra e espírito, em parte se perde, em parte permanece eternamente. O que se vê, perde-se, porque é sensível e temporal; o que é invisível, permanece, porque é espiritual e eterno” (p. 183).

O próprio símbolo, porque é ensinamento em profundidade inesgotável, permite muitas interpretações: “Como exemplo de símbolo, digamos: ‘No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus’, Jo 1, 1. Isso vem do mero dizer, nenhum fato histórico se apreende aí; por isso, é recebido inteiramente de maneira simples pelos homens carnais e, ao mesmo tempo, todo inteiro de modo unitário pelos homens espirituais. Neste caso, não pode haver pedaços, porque não há nada que possa ser entendido consoante a história, mas tudo deve ser referido à teologia, que ultrapassa todos os sentidos, Fp 4, 7, e o intelecto. É lido com os olhos de quem o lê, é ouvido com os ouvidos de quem o ouve, e assim, como dois peixes, é recebida uma mesma teologia do evangelista, adaptada a dois sentidos” (p. 184-185).

João Eriúgena aprofunda sua leitura do Evangelho de João com o auxílio da teologia dos padres. Nelas encontramos duas doutrinas fundamentais para a vida cristã: a doutrina do símbolo e a do mistério. O símbolo deve ser interpretado; o mistério, vivido. Os mistérios cristãos são os atos de Cristo dos quais podemos participar. Por exemplo, quando rezamos os salmos participamos do modo pelo qual Jesus rezava os salmos em sua vida. Por isso, os salmos são a oração fundamental dos cristãos. O mesmo se diga da participação na ceia eucarística, a qual, primeiramente, foi ato de Cristo, e por isso é mistério.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

 

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