Tradicionalmente, credita-se a Pero Vaz de Caminha, o escrivão da frota de Cabral, as honras de ter iniciado a literatura brasileira com sua célebre carta. Conhecida como a certidão de nascimento do Brasil, narrando o “achamento desta terra nova”, Caminha narra também o início da presença da Igreja, registrando aquele primeiro acontecimento público que foi a primeira missa, celebrada a 26 de abril de 1500 por Fr. Henrique de Coimbra e imortalizada na arte do séc. XIX pelo quadro de Victor Meireles.
Será em 1549 que por aqui aportarão os primeiros padres da Companhia de Jesus, liderados por Manoel da Nóbrega, que começarão de fato a obra de letramento da extensa colônia portuguesa na América. Não poderíamos, portanto, deixar de iniciar esta série de autores que se permitiram inspirar pela fé em sua literatura senão com um jesuíta. Chamado o Apóstolo do Brasil, o taumaturgo do Novo Mundo, São José de Anchieta representa o que há de mais refinado e interessante em uma literatura que esteve a serviço do processo de evangelização, ao mesmo tempo que promovia a valorização da língua tupi e de muitos aspectos da cultura indígena.
Já houve quem dissesse que Anchieta é uma “personalidade literária completa”. De fato, conforme destaca a crítica literária italiana Luciana Stegagno-Picchio, em sua História da literatura brasileira, o santo jesuíta era “capaz de passar da prosa didática à epistolografia, da lírica religiosa ao texto parenético, do drama catequético ao ensaio historiográfico.”[1] A mesma autora destacará a importância dos estudos do Padre Anchieta acerca das línguas indígenas, sendo, em suas palavras, o primeiro a dar ao tupi-guarani uma “dignidade literária.” Seu empenho linguístico se concretizará com a publicação, em 1595, da Arte da Gramática da Língua Mais Falada na Costa do Brasil, a primeira gramática que versa sobre os fundamentos da língua tupi.
Percebendo o caráter expressivo das culturas das diversas tribos indígenas, São José de Anchieta logo se utilizou da arte dramática para a catequese e a evangelização. A ele se credita a primeira obra teatral no Brasil, o autointitulado Pregação universal, encenado ao ar livre na vila de Piratininga, futura cidade de São Paulo, entre 1567 e 1570. Mas sua obra teatral mais célebre é o Auto de São Lourenço, escrita em português, espanhol e tupi, e encenada a 10 de agosto de 1580 na igreja de São Lourenço dos Índios, onde hoje é a cidade de Niterói. No auto aparece também São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro, recordando-se sua presença na batalha das canoas, travada na baía de Guanabara pela defesa da cidade contra os invasores franceses: “Não eram muitos cristãos./ Contudo, nada ficou/ da força que te inspirou,/ pois veio Sebastião,/ na força fogo ateou.”[2] Profundamente inspirado no teatro medieval e na religiosidade barroca, o teatro de Anchieta é um eco nas américas do estilo que se tornou célebre na península ibérica com os autos do português Gil Vicente e depois teriam grande ápice no espanhol Calderón de la Barca.
Poderíamos ainda destacar a obra epistolar de São José de Anchieta que, para além do caráter literário, tem grande importância pelas informações etnológicas, botânicas e geográficas do Brasil quinhentista. Porém, dada a brevidade do espaço de que dispomos, passamos ao gênero mais numeroso na obra anchietana, a poesia.
“Eloquar? an silean, sanctissima Mater Iesu?/ Num silean? laudes eloquar anne tuas?” Com esses versos latinos, José de Anchieta abre sua mais famosa obra, o Poema da Virgem, no qual louva em cinco cantos e 2.086 dísticos a Santa Mãe de Deus, e que foi traduzido em 1940 pelo Pe. Armando Cardoso S.J., tradução a nosso ver ainda não superada: “Cantar ou calar?/ Mãe santíssima de Jesus, os teus louvores/ hei de os cantar ou hei de os calar?”[3] Esse poético monumento de nossa literatura é também testemunha de nossa história. Estando o jovem jesuíta refém dos Tupinambás em Iperoig, no contexto da chamada Confederação dos Tamoios, grande conflito entre indígenas e portugueses, do qual, junto com Pe. Manoel da Nóbrega, foi o grande mediador da paz, Anchieta, para manter acessa a chama da fé e o empenho da vontade contra as tentações internas e externas, indo muitas vezes à praia, ali deixava, gravados na areia, versos a Virgem Santíssima, que expressavam todo seu amor e devoção à Mãe de Deus: “Oh! se o amor da Mãe divina me não dobrar,/ se à glória da Virgem meus lábios não se abrirem,/ que meu coração vença, em dureza/ apedra, o ferro, o bronze,/ o diamante indomável!/ […] Sê tu, com o teu menino,/ o único prazer, anseio, amor do meu coração!” Ao fim do poema, tocante é a dedicatória que faz o coração do jesuíta que se viu livre dos males pela intercessão de tão boa Mãe, quando pode passar da areia para o papel os versos já impressos na memória: “Eis os versos que outrora, ó Mãe Santíssima,/ te prometi em voto,/ vendo-me cercado de feros inimigos./ Enquanto entre os Tamoios conjurados,/ pobre refém, tratava as suspiradas pazes,/ tua graça me acolheu/ em teu materno manto/ e teu poder me protegeu intactos corpo e alma.”[4]
Além de poesia em língua latina, bem como também em português e castelhano, é a poesia em língua tupi o tesouro do Pe. Anchieta. São um interessante testemunho de como, a partir das limitações e mentalidades do tempo, havia no Apóstolo do Brasil um interesse de valorização da cultura indígena no processo de cristianização, como testemunha esse seu singelo poema, que aqui citamos primeiro no original tupi: “Xe Paratý suí/ ajú, Tupansý repiáka,/ guiñemojeguajeguáka/ xe rorybaõáma ri.” Eis a tradução: “Venho do Rio Parati,/ para ver a mãe de Deus,/ tendo-me pintado todo/ em sinal de alegria.”[5] Destaca-se tanto a valorização do elemento artístico indígena da pintura do corpo, quanto o uso linguístico de “Tupã” para traduzir “Deus”.
Em Anchieta, a literatura brasileira tem seu pontapé inicial em diversos gêneros. Poesia, prosa e teatro ganham contornos muito próprios a partir da experiência do jesuíta com o Novo Mundo. Ainda que não possamos falar de um claro sentimento de brasilidade em seus escritos, a forma como irá adaptar esses gêneros à realidade da colônia portuguesa na América vai moldando aos poucos um novo modo de escrever nestas terras a leste da linha de Tordesilhas. E foi do coração tocado pela fé e pela poesia do Pe. Anchieta que a Terra de Santa Cruz começou a colocar no papel os mais nobres sentimentos da alma humana.
[1] STEGAGNO-PICCHIO, Luciana. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, p. 78
[2] ANCHIETA, José de. Auto representado na Festa de São Lourenço. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro – Ministério da Educação e Cultura, 1973.
[3] ANCHIETA, Joseph de. De Beata Virgine. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1940, p. 1.
[4] Ibid., p. 432.
[5] ANCHIETA, José de. Poesias. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989, p. 591.