O clero na Academia

Há 125 anos, em 20 de julho de 1897, Machado de Assis presidia a sessão inaugural da Academia Brasileira de Letras, instituição pensada aos moldes da Academia Francesa e que sedimentou no âmbito nacional a produção literária e a conservação de sua memória. Em seu brevíssimo discurso na sessão de abertura da ABL, o Bruxo do Cosme Velho, como Machado será alcunhado, indicava que a missão da Academia é de “conservar, no meio da federação política, a unidade literária”, dando à instituição, portanto, o caráter de guardiã do gênio literário brasileiro nas suas mais diversas linhas, formas e realidades.

A Igreja, que nunca se fez indiferente a tudo aquilo que o espírito humano é capaz de produzir a partir das faculdades outorgadas pelo Criador, também participa da nobilíssima missão da Academia Brasileira de Letras na pessoa dos membros de seu clero que já ocuparam cadeiras na casa de Machado de Assis. Aliás, já entre os nomes daqueles escolhidos como patronos das 40 cadeiras de membros efetivos encontramos a presença da Igreja no patrono da cadeira 34, o poeta e orador sacro padre Sousa Caldas. Nos patronos escolhidos para as 20 cadeiras de sócios correspondentes estrangeiros encontramos figuras como frei Francisco de Monte Alverne, frade menor do Convento de Santo Antônio, pregador da Casa Imperial e professor do Seminário São José, e frei Vicente do Salvador, o “Heródoto brasileiro”, primeiro a escrever uma obra historiográfica sobre o Brasil ainda no séc. XVII.

Mas se os maiores de nossas letras souberam reconhecer o valor literário das figuras eclesiásticas do passado, também não o deixaram de fazer na hora presente, dando o devido reconhecimento a importantes clérigos que brilharam no cenário literário nacional e cooperaram para que no Brasil se cultivasse as belas letras.

O primeiro clérigo a ocupar uma cadeira na casa de Machado de Assis foi o insigne prelado de Mariana, D. Silvério Gomes Pimenta (1840-1922), o primeiro arcebispo negro de nossa história. De família humilde, trabalhou na infância como caixeiro para sustentar sua mãe viúva e seus irmãos. Ingressando aos 14 anos no Seminário de Mariana, matriculado por seu padrinho de Crisma, o Servo de Deus D. Antônio Ferreira Viçoso, foi por ele ordenado sacerdote em 1862. Em 1890 foi sagrado bispo, o primeiro depois da Proclamação da República, sendo nomeado em 1897 para a Sé de Mariana, que foi elevada a arcebispado por São Pio X em 1906, tornando D. Silvério seu primeiro arcebispo. Suas cartas pastorais serão reconhecidas tanto pela firmeza de sua doutrina quando pela beleza da forma, o que lhe tornará famoso, além de ser um exímio latinista, publicando diversos poemas em latim. Enveredando também pela seara da imprensa, fundou e dirigiu em sua diocese diversos periódicos. Sua obra mais aclamada é a biografia que escreveu de D. Viçoso, publicada em 1876. Foi eleito em 1919 para segundo ocupante da cadeira 19 da Academia Brasileira de Letras, proferindo belíssimo discurso de posse, onde dizia com humildade: “Na votação com que acolhestes meu nome, não devo, nem posso enxergar reconhecimentos de méritos literários, que conheço me faltam; e, quando algum pudesse alegar, estaria sempre muito aquém da honra com que me distinguistes. Quisestes antes render preito ao princípio que represento, e, em minha humilde pessoa, honrar o Deus das ciências e da sabedoria. Quisestes que neste congresso, onde se assentam distintos representantes da atividade intelectual, houvesse um que especialmente representasse esta grande coletividade espiritual, que é a Igreja Católica da qual somos filhos, e eu indigno ministro”.

O segundo prelado a cruzar os umbrais do Petit Trianon, réplica do palacete francês e sede da Academia desde 1923, foi outro não menos digno arcebispo, agora de Cuiabá, D. Aquino Correia (1885-1956), o prelado poeta, autor de Odes, coletânea de poesias de sua autoria publicada em 1917. Doutor em teologia pelo Angélico de Roma, foi sagrado bispo, em 1914, aos 29 anos, então o bispo mais novo do mundo. Fundador do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (foi recebido em 1926 como membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) e da Academia Mato-grossense de Letras, foi o quarto ocupante da Cadeira 34 da ABL, recebido em 1927 com discurso de recepção do Acadêmico Ataulfo de Paiva, que proclamou exultante: “Bendita seja, pois, esta hora de mágicos encantos, em que a Academia, rejubilante e segura dos seus destinos, sonhando dias sempre mais gloriosos para a lida que incessantemente fomenta, recolhe no seu amorável regaço um excelso dignitário da Igreja, a desferir, em pleno verdor da vida, cantos maviosos e potentes, da sua lira afinada e cândida”.

Depois dessas duas fulgurantes glórias do episcopado e das letras nacionais, coube a um humilde e silencioso beneditino ser a voz da Igreja na Academia. Em 1980, comemoração dos 1500 anos do nascimento de São Bento, era eleito para quinto ocupante da cadeira 15 D. Marcos Barbosa OSB (1915-1997), o monge poeta. O primeiro ocupante desta cadeira, Olavo Bilac, quando em um de seus sonetos comparou o trabalho do poeta ao de um monge em seu claustro (“Longe do estéril turbilhão da rua,/ Beneditino, escreve! No aconchego/ Do claustro, na paciência e no sossego,/ Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!”), talvez não imaginasse que um de seus sucessores seria de fato um beneditino poeta. Saudando D. Marcos Barbosa como “monge da Ordem de São Bento e poeta da Ordem dos Trovadores do Reino de Deus”, em seu discurso de recepção o Acadêmico Alceu Amoroso Lima, o querido Tristão de Atayde, afirmava: “Esta noite não é uma noite como outra qualquer. Pois é a primeira vez, ao longo desses 15 séculos, que um simples monge, despido de qualquer outra dignidade sacerdotal ou civil, ingressa na mais alta instituição intelectual de seu país. Dá vontade até de cantarmos, como no Exsultet, o vere beata nox”. A poesia cativante de D. Marcos primava pela sublimidade e simplicidade de um espírito evangélico de quem cantava em um de seus mais belos poemas: “Varredor que varres a rua, / tu varres o Reino de Deus”.

Em 1996, a cadeira 12 passou a ser ocupada pelo então arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil, o Cardeal D. Lucas Moreira Neves (1925-2002). Mineiro de São João Del Rei, ingressou na Ordem dos Pregadores, sendo ordenado presbítero em 1950, após fazer estudos na França. Em 1967 é nomeado bispo auxiliar de São Paulo, assumindo depois cargos na cúria romana, chegando a ser prefeito da Sagrada Congregação para os Bispos entre 1998 e 2000. Suas crônicas na imprensa marcaram época, por seu olhar acurado para as diversas realidadse da sociedade. Ao tomar posse na Academia, em seu discurso fez referência aos dois bispos que o precederam na ABL, bem como a seu conterrâneo D. Marcos Barbosa: “E seja-me permitido, no momento final deste discurso, quebrando talvez o protocolo, exaltar duas figuras do episcopado brasileiro que me precederam nesta Casa: D. Silvério Gomes Pimenta, o arcebispo negro, santo e sábio, de Mariana, arquidiocese em que eu nasceria três anos após a sua morte, e D. Francisco de Aquino Correia, arcebispo salesiano de Cuiabá. Curvo-me, reverente, perante esses dois irmãos bispos, agradecidos pelo lustre que deram à Igreja, à Academia e à Pátria. Em gesto de afetuosa fraternidade, saúdo também o monge-poeta meu coestaduano, chamado, há anos, a integrar esta Casa”.

O último clérigo em nossos dias a ocupar uma das poltronas azuis da ABL foi o jesuíta padre Fernando Bastos de Ávila (1918-2010), que em 1997 sucedeu D. Marcos Barbosa na Cadeira 15. Pensador da Doutrina Social da Igreja, padre Ávila foi figura marcante nos estudos sociais acerca dos problemas brasileiros pensados à luz do Evangelho, para isso preparando a Pequena enciclopédia de doutrina social da Igreja, para a qual redigiu a maioria dos verbetes. Sua recepção na Academia Brasileira de Letras coincidiu com comemorações em torno de outros dois grandes jesuítas da história brasileira: os 400 anos da morte de São José de Anchieta e os 300 anos da morte do padre Antônio Vieira. Ao tomar posse de uma cadeira tradicionalmente ocupada por poetas, ele mesmo sucedendo um monge-poeta, o nobre jesuíta declarava: “Não sou poeta, mas simples escritor, que, com a sinceridade de seu compromisso, procurará compensar sua prosa sem brilho”.

Até aqui traçamos um brevíssimo e insuficiente perfil daqueles clérigos que com nobreza, espírito de serviço e amor à Igreja e à Pátria estiveram entre aqueles que se propõe a cultivar as letras no solo brasileiro. Os 125 anos da Academia Brasileira de Letras ficam ainda mais iluminados quando nessa constelação de Imortais se contam essas estrelas fulgurantes da Igreja de Cristo que, à semelhança daquele fermento que faz a massa crescer em seu interior, imagem evocada por Nosso Senhor no Evangelho, procuraram fazer com que crescesse o Reino em meio aos homens de boa vontade, Reino que se espalha com sua mensagem de vida nos mais diversos âmbitos da vida humana. Nas letras, na cultura e nas artes em geral, aí está também a presença da Igreja a cooperar pelo bem integral de cada ser humano.

 

Eduardo Douglas Santana Silva, seminarista da Configuração II

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