O legado de São Jorge: peregrinação à Cidade de Lida

Desde que comecei os estudos de Ciências Bíblicas e Arqueologia no Studium Biblicum Franciscanum, em Jerusalém, enquanto realizava as numerosas excursões arqueológicas pelos lugares mencionados nas Sagradas Escrituras, havia uma localidade que desejava visitar especialmente: a cidade israelense de Lida (em hebraico ‘Lod’), situada a 50 Km a noroeste de Jerusalém, na rota em direção a Tel Aviv e a apenas 5 Km ao sul do Aeroporto Internacional Ben Gurion, onde aterrissam os peregrinos que, de todas as partes do mundo, vem visitar a Terra Santa.

Lida possui uma menção na Bíblia, especificamente nos Atos dos Apóstolos, quando Pedro, fazendo visita às comunidades cristãs nascentes nas regiões da Judeia, Galileia e Samaria, encontrou os fiéis residentes na cidade. Lá, ele cura um homem de nome Eneias que há oito anos era paralítico. Essa cura resultou na conversão de muitos habitantes de Lida (At 9, 32-35).

Além da relevância bíblica, Lida detém um lugar especial para a fé católica por abrigar a tumba de um dos santos mais venerados no Ocidente e no Oriente cristão: São Jorge.

Minha devoção por este grande santo, amplamente amado pelo povo carioca, moveu-me a visitar esta cidade em fevereiro de 2023, quando pude conhecer a igreja ortodoxa grega que abriga o túmulo do santo, denominado na literatura cristã como Tropaiofóros (palavra grega que significa ‘vitorioso por excelência, portador de vitória’).

Segundo testemunhos literários antigos, a sepultura de São Jorge em Lida é identificada como lugar de peregrinação pelo menos desde o século V[1]. O diácono Teodósio, que realizou uma peregrinação pela Terra Santa por volta do ano 530, documentou em seu diário de viagem, intitulado De Situ Terrae Sanctae[2], que em Lida encontrava-se sepultado São Jorge Mártir e lá aconteciam muitos milagres[3]. É o testemunho mais antigo a respeito da existência da tumba em questão.

Para quem mora em Jerusalém, é facilmente acessível visitar Lida por meio do transporte público. Foi exatamente isso que eu e um grupo de amigos, estudantes também do Studium Biblicum, fizemos. Ao chegar à cidade, dirigimo-nos imediatamente à igreja dedicada ao santo, onde a cripta com sua tumba está localizada.

Assim que me deparei com a igreja, chamou-me a atenção como ela está atualmente configurada. O edifício encontra-se dividido em dois diferentes lugares de culto: Uma parte é a igreja grega ortodoxa; a outra, uma mesquita, denominada “A Grande Mesquita de Lida” ou “Al-Omari Mosque”.  Ambas as estruturas dividem o espaço daquela que era uma única grande igreja, que foi construída ao redor do ano de 1150 pelos Cruzados que, chegando àquela região, se depararam com as ruínas de uma antiga igreja bizantina dedicada a São Jorge e decidiram – especialmente pelo fato de o terem como santo protetor – construir um novo templo. A parte ortodoxa hoje ocupa somente o que correspondia à nave central e à nave lateral esquerda da antiga igreja. A existência de uma mesquita ocupando todo o restante da antiga igreja Cruzada tem sua razão de ser por dois principais motivos: o longo período de governo muçulmano na região (já a partir de 1266 com a conquista de Lida pelos mamelucos) e pelo fato de que São Jorge é frequentemente associado a um misterioso personagem presente na devoção popular muçulmana, denominado al-Khidr, que aparece vagamente no Corão em diálogo com Moisés[4], ainda que no livro sagrado dos muçulmanos tal personagem não é nunca designado com este nome.

Ao entrarmos na igreja ortodoxa, que, sendo um domingo de manhã, encontrava-se com alguns fiéis locais em celebração, dirigimo-nos às escadas localizadas à esquerda da entrada, que dão acesso à cripta do santo mártir. No pequeno recinto, encontra-se ao centro a tumba venerável. Sobre o sarcófago encontra-se uma efígie do santo e uma inscrição em grego: “São Jorge, o portador de vitória (Tropaiofóros)”.

Outro destaque na cripta é um ícone na parede oposta ao sarcófago, retratando as diversas fases do martírio de São Jorge: decapitado, atado e torturado na chamada “roda de despedaçamento”, jogado em um poço cheio de calcário, forçado a caminhar com calçados de ferro com pontas avermelhadas pelo fogo – são algumas das muitas formas de martírio que o santo sofreu e que a tradição cristã, de forma abrangente, mas ao mesmo tempo confusa, transmitiu. Todas essas representações ressaltam a violência com a qual o santo guerreiro foi submetido em vida por anunciar com coragem e sem temor o Evangelho de Cristo. Ao seu terrível martírio, entretanto, é associado o fato de que o santo foi especialmente adornado da proteção divina: apesar do martírio, conta-se que ele ressuscitou ao menos por três vezes e em vida também realizou numerosos milagres.

Ao sair da cripta e retornar à igreja, se vê um outro objeto de veneração particularmente interessante na parede que se encontra à esquerda do iconóstase (divisória adornada de ícones que separa o espaço destinado aos fiéis do presbitério): as correntes com as quais o santo foi preso para ser martirizado.

A veneração à tumba de São Jorge em Lida também lança luzes sobre elementos que adornam as numerosas histórias do glorioso mártir, como por exemplo, a história de São Jorge e a vitória sobre o dragão. Uma justificativa seria que se tratasse de uma espécie de “cristianização” do mito de Andrômeda[5], ambientado pelos filisteus na cidade litorânea de Jafa, que é próxima de Lida[6]; outros, no entanto, atribuem à difusão da imagem na tradição popular cristã ao livro Legenda Áurea, escrito pelo bispo Tiago de Voragine (1228-1298), no qual é dito que São Jorge, encontrando-se uma vez em uma cidade chamada Silca (em latim Silena), libertou uma princesa que havia sido oferecida em sacrifício das garras de um feroz dragão que atormentava constantemente a cidade[7].

Seja como for, ainda que a biografia de São Jorge seja rodeada de histórias e lendas extensivamente apropriadas, modificadas e ampliadas nos mais diversos contextos históricos – tornando extremamente difícil precisar os dados –, o seu culto foi vastamente difundido desde os primeiros séculos do cristianismo, evidenciando a relevância histórica da existência de São Jorge. Conforme afirmava o hagiógrafo jesuíta Hippolyte Delehaye, que em uma detalhada pesquisa recolhe as fontes orientais antigas que descrevem o martírio de São Jorge, “nada está mais bem estabelecido do que a fama e a antiguidade do culto a São Jorge”[8].

Prova da difusão do culto a este grande santo encontra-se no fato que sua devoção, passando pelo Oriente e Ocidente cristão, atravessa séculos e mares até chegar nos corações e no afeto de seus devotos presentes no Rio de Janeiro e em todo o Brasil, que o veem como exímio modelo de corajoso defensor da fé e de fiel intercessor para as mais diversas necessidades.

Em meio à importância bíblica de Lida e à história de São Jorge, peço ao Senhor que, pela intercessão do glorioso mártir, sejam os cristãos, e de modo muito especial seus devotos, em suas vidas como verdadeiros “portadores de vitória” ( Tropaiofóros) na luta contra o mal e o pecado e que, diante das eventuais dificuldades nas batalhas de cada dia que podem ser motivo de desânimo e desalento, sejam fortalecidos pelas mesmas palavras de salvação com as quais São Pedro se dirigiu em Lida àquele homem de nome Eneias: “Jesus Cristo te cura! Levanta-te!”.

 

Padre Fernando Henrique Cardoso da Silva

Sacerdote da Arquidiocese do Rio de Janeiro, mestrando em Ciências Bíblicas e Arqueologia no Studium Biblicum Franciscanum de Jerusalém, em Israel

 

[1] Cf. FÜRST– GEIGER, Terra Santa, 69.

[2] Cf. KASWALDER, Onomastica Biblica, 308.

[3] Neste diário de viagem, Lida chamada Diospolis – Cidade do deus grego Zeus – nome dado pelo imperador romano Lúcio Septímio Severo em torno ao ano 200 d.c.

[4] Cf. Surata Al-Kahf (18), 60-82.

[5] Segundo a mitologia, a princesa etíope Andrômeda foi encadeada em uma rocha no mar e oferecida como sacrifício a um monstro marinho. A jovem, no entanto, foi salva pelo semideus Perseu, que a tomou como esposa. Esta história foi ambientada pelos filisteus na região de Jafa (hoje ao lado da cidade de Tel Aviv), localizada a poucos quilômetros de Lida. Em época cristã, a figura de Perseu foi associada a São Jorge e a do monstro marinho, ao dragão.

[6] Cf. SCHWARTZ, Lod (Lydda), 126.

[7] Cf. DE VORAGINE, Legenda aurea, cap. LVIII.

[8] DELEHAYE, Les legends grecques des saints militaires, 50.

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