O pântano e a lua

Dia desses, conversando com uma amiga, falávamos exatamente sobre a luz da lua e seu reflexo no pântano. É incrível como, mesmo iluminando toda a extensão do pântano, a lua não se mistura com ele. Ela oferece o que tem de melhor, mas mantém sua essência intacta.

Fiquei pensando… E na nossa vida, será que é assim? Vivemos tempos difíceis, em que, em muitos ambientes, nos perguntamos: O que estou fazendo aqui? São lugares que exigem de nós uma aceitação irrestrita de novos conceitos, como se fôssemos todos encaixados dentro do mesmo pacote.

Por exemplo: será que sou obrigada a defender o aborto? Em meio a uma campanha contra o direito de viver, posso eu pensar diferente e dizer sim à vida? Será que uma adolescente que começa a namorar precisa, necessariamente, morar com o namorado e viver com ele uma união estável? Será que não posso simplesmente seguir a vontade de Deus? No auge das intolerâncias, não posso torcer para o meu tão querido Flamengo?

Penso nisso porque tudo tem um preço. E, no fundo, não queremos pagar nada, apenas receber. Mas quando somos fiéis a Deus e aos nossos valores, pagamos um preço que sempre será o melhor. Fazemos renúncias, mas vivemos com alegria – não a alegria passageira do mundo, mas a alegria que vem de Deus.

O Papa Francisco, em uma de suas homilias, lembrou que seguir a vontade de Deus não é fácil. Nem para Jesus foi: Ele enfrentou tentações no deserto, suou sangue no Horto das Oliveiras. Muitos discípulos também recuaram ao perceberem o peso de seguir a vontade do Pai. Mas é justamente a obediência a Deus que nos conduz à santidade e nos faz viver de acordo com Seu plano. Por isso, devemos rezar todos os dias, pedindo a graça de compreender e realizar essa vontade, como Maria fez ao dizer ao anjo: “Que se faça em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

Na mensagem enviada ao Festival dos Jovens, em Medjugorje, em 2022, Francisco reforçou essa ideia ao afirmar que “a vontade de Deus é um tesouro inestimável”. Muitas vezes, temos medo de que aceitar a vontade do Pai signifique renunciar a nossa liberdade, como se Ele nos impusesse algo por puro desejo e não por amor. Mas, na verdade, não há caminho melhor para nós do que aquele que Deus traçou. Seu plano de amor para cada um de nós nos conduz à verdadeira felicidade e ao Reino dos Céus. Por isso, o Papa nos encoraja: “Não tenham medo da vontade de Deus, mas coloquem toda a sua confiança em Sua graça”.

Essa confiança é essencial. O Papa Bento XVI nos recordou em uma Audiência Geral, em 23 de maio de 2012, que “o cristianismo não é uma religião do medo, mas da confiança e do amor ao Pai que nos ama”. Ao chamar Deus de Abbá – como Jesus fez na cruz (Mc 14,36) –, somos convidados a enxergá-Lo como um Pai Amoroso, que nos conhece pelo nome e deseja o nosso bem. Não somos anônimos para Deus; somos filhos, e Ele nos ama profundamente. O Espírito Santo nos guia nessa relação filial, ensinando-nos a rezar e a viver como parte de Sua grande família.

O Salmo 130 nos apresenta uma das imagens mais belas dessa confiança: a criança desmamada que descansa tranquila no colo da mãe. Essa não é a dependência de um bebê recém-nascido, mas a confiança consciente de um filho que já conhece o amor materno e nele encontra segurança. Assim também deve ser nossa relação com Deus – não cega, mas madura e espontânea, como uma entrega serena e confiante.

Essa metáfora remete à infância espiritual, tema recorrente na literatura cristã. Santa Teresa de Lisieux falava do pequeno caminho, a via da simplicidade e da confiança absoluta em Deus. O profeta Oseias (Os 11,1.4) já evocava esse amor paternal e materno divino: “Quando Israel ainda era menino, Eu amei-o… Segurava-os com laços humanos, com laços de amor, fui para eles como os que levantam uma criancinha contra o seu rosto; inclinei-me sobre ele para lhe dar de comer”.

A soberba do coração, o orgulho do olhar e a exaltação do próprio ego nos afastam dessa atitude infantil de entrega. O verdadeiro caminho da fé não é o da arrogância, mas o da humildade, como bem expressam os versos do salmista (Sl 130,1-2):

Senhor, meu coração não é orgulhoso,

nem meu olhar altivo;

não ando à procura de grandezas,

nem de coisas maravilhosas demais para mim.

Pelo contrário, fiz calar e sossegar a minha alma;

como criança desmamada no colo de sua mãe,

assim é a minha alma dentro de mim.

Essa humildade nos ensina a não temer as consequências de nossas escolhas. Expressar um pensamento divergente pode trazer ofensas, perseguições, exclusões e até agressões. Definitivamente, a democracia parece não ser algo inato ao ser humano. Deveria ser. O mundo é formado por forças divergentes que se contrapõem. Mas é exatamente por isso que elas se chocam. Cada uma, individualmente considerada, pretende ser dominante. Como a outra a impossibilita, surge a revolta, a tentativa de dominação e o ódio.

O escritor cristão João Cassiano advertia que a soberba “destrói todas as virtudes no seu conjunto e não atinge apenas os medíocres e os fracos, mas principalmente aqueles que se colocaram no ápice com o uso das suas próprias forças”. Ele lembra que até mesmo Davi teve de orar para se livrar do orgulho: “Não permitas que me pisem os pés dos orgulhosos” (Sl 35,12).

Analogamente, um ancião dos Padres do Deserto dizia: “Jamais ultrapassei a minha categoria para caminhar de forma mais altiva, e nunca fiquei perturbado em caso de humilhação, porque cada um dos meus pensamentos consistia nisto: em rezar ao Senhor para que me despojasse do homem velho”.

Aprender a conviver com as minhas escolhas sem me deixar contaminar pelas águas sujas do pântano.

Que possamos, como a lua, iluminar os tantos pântanos por onde passamos, sem nos deixarmos contaminar por eles. Que o nosso exemplo, nossa persistência e nossa disposição em amar a Deus sejam, hoje e sempre, a nossa primeira e definitiva escolha.

Cláudia Maurício Silva, advogada, doutoranda em Direito Canônico

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