O surgimento, o estudo, a pesquisa e a aplicação do Direito Canônico na vida da Igreja. A relação entre o Direito Romano e o Direito Canônico.

Aula inaugural do Instituto Superior de Direito Canônico do Rio de Janeiro, no dia 12 de março de 2025, proferida pelo arcebispo metropolitano, Cardeal Orani João Tempesta, realizada na Casa do Bispo, situada no complexo do Seminário Arquidiocesano de São José, no Rio Comprido.

 

Caríssimos irmãos e irmãs, caro Diretor do Instituto, Côn. Dr. José Gomes Moraes, caro Secretário Pe. Doutorando Thiago Humelino, queridos professores, especialmente as novas professoras nomeadas, sacerdotes, diáconos, doutores e mestres, alunos e amigos,

É uma grande alegria para mim, na qualidade de Chanceler Delegado do Instituto Superior de Direito Canônico do Rio de Janeiro, afiliado à Universidade Gregoriana de Roma, retornar a esta Casa para a abertura do Ano Acadêmico de 2025, que coincide com o Ano Santo da Esperança.

Com grande satisfação nos reunimos hoje para dar início a mais um ano letivo do Instituto Superior de Direito Canônico do Rio de Janeiro. São mais de 40 anos que o Instituto tem sido um verdadeiro farol para o estudo, a pesquisa e a aplicação do Direito Canônico em nossa Arquidiocese e além. Sim, aqui se iniciou esse trabalho a serviço do Brasil, que hoje já está difundido em outros institutos. Este é um momento de gratidão, reflexão e compromisso renovado com essa ciência tão essencial para a vida da Igreja, e não podemos deixar de fazer memória a D. Eugenio Araujo Sales e a D. Karl Joseph Romer, que deram início a essa missão.

Pediram-me para discorrer sobre a relação entre o Direito Romano e o Direito Canônico nesta aula magna, inaugurando o ano acadêmico do Instituto Superior de Direito Canônico.

O tema tem sua pertinência e já foi tratado em outras ocasiões, como, por exemplo, no ano de 2024, em que aqui, no Rio de Janeiro, a Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro promoveu um Seminário sobre este assunto, com o tema: um diálogo histórico entre Direito Romano e Canônico, que tive a honra de abrir com uma colocação sobre o assunto.

O Direito surge como uma necessidade da sociedade, tendo como propósito fundamental a proteção do bem comum. A vida em comunidade exige um ordenamento que assegure o bem-estar tanto do indivíduo quanto da coletividade e dos diversos grupos que a compõem. Com essa finalidade, os romanos desenvolveram suas leis e instituíram órgãos responsáveis tanto pela aplicação das normas quanto pelo julgamento de seu descumprimento. Foi nesse contexto que surgiram o Senado Romano e o Fórum Romano.

Dois mil anos atrás, quando o cristianismo surgiu, ele se encontrou com uma cultura já então bem sedimentada, aquela do Império Romano, por sua vez já tributária da cultura e filosofia gregas. Roma vivia então a era conhecida como “Pax Romana”, tida como um período áureo da expansão romana sobre o Velho Mundo.

E foi assim que, quando o próprio Jesus de Nazaré veio ao mundo, o território em que ele nasceu, cresceu e desempenhou todo o seu ministério estava sob dominação romana.

A constatação de tal fato histórico se faz presente no próprio Evangelho de São Lucas, o qual registra que, por ordem de César Augusto, então Imperador Romano, foi determinado um recenseamento geral, em que cada um deveria alistar-se na cidade de origem de sua família. Por isso, subiu José, pai putativo de Jesus, da região da Galileia, da cidade de Nazaré, até a Judeia, à cidade de Davi, chamada Belém (porque era da casa e família do rei Davi).

Assim, já no início da história do cristianismo, vemos o lugar de nascimento de Jesus intimamente relacionado com um ato normativo romano, isto é, o decreto de recenseamento de César Augusto.

Posteriormente, após a morte, ressurreição e ascensão aos céus de Jesus, vemos o cristianismo se expandir e rapidamente chegar ao coração do Império, a Cidade Eterna: Roma.

Lá, segundo a tradição cristã, São Pedro e São Paulo foram martirizados, tendo Pedro, o primeiro Papa, sido crucificado de cabeça para baixo na colina do Vaticano, onde hoje se encontra a Basílica de São Pedro, erguida sobre o seu túmulo. Paulo, por sua vez, por ser cidadão romano, dez dias após sua condenação à morte, como previa a lei romana, foi decapitado fora da cidade e sem a presença de público. Podemos elencar, ainda, três momentos em que o Apóstolo dos gentios fez uso de seus direitos de cidadão romano: em At 16,37, informa aos magistrados filipenses que infringiram seus direitos ao ordenarem açoitá-lo; em At 22, 25-30, revela sua cidadania romana, o que evita de ser açoitado em Jerusalém; em At 25, 10-12, usa de seu direito de cidadão romano de apelar a César, para ser ouvido e julgado diretamente pelo imperador.

Passados os três primeiros séculos e as grandes perseguições oficiais do Império Romano aos cristãos, em 313 depois de Cristo, com o Edito de Milão, o Imperador Constantino Magno concedeu liberdade de culto aos cristãos em toda a extensão do Império.

Com isso, abrem-se as portas para que os cristãos passem a tomar ainda mais parte nas instituições oficiais romanas. Essa interpenetração do cristianismo e da cultura romana foi tão profunda que, quando caiu o Império Romano do Ocidente sob Odoacro, no ano de 476 depois de Cristo, foi a Igreja Católica que preservou o legado cultural de Roma, já agora sob os influxos do cristianismo.

O desenvolvimento do Direito romano ao longo da história abarca mais de mil anos. Desde o século V a. C. até alcançar seu ápice, com o Corpus Iuris Civilis, promulgado pelo Imperador Justiniano I, no século VI d. C., os historiadores sinalizam como marco inicial do Direito Romano a publicação da Lei das doze tábuas, por volta do ano 450 a. C, nas quais se encontram antigas leis ainda não escritas na época e as principais regras de conduta.

A partir daí, é possível observar a evolução das instituições jurídicas romanas, as quais gradativamente deram origem as três principais áreas do Direito Romano, o ius civile, o ius gentium, e o ius honorarium. Grande será a influência dessa sistematização do Direito Romano nas sociedades posteriores, incluindo a sociedade eclesiástica.

Na Comunidade Cristã, percebia-se, já em seus primórdios, o surgimento de um Direito para assegurar o bem comum dos fiéis. A sociedade eclesial, cujo bem comum a ser custodiado é a salvação de cada pessoa, alcançada através da vida nova que Cristo Jesus inaugurou, se organiza através de suas leis e instituições para que sua finalidade seja plenamente alcançada. Assim, assistimos o surgimento dos Concílios e dos Tribunais eclesiásticos.

Sendo o grego a língua utilizada no momento do nascimento do cristianismo, as decisões conciliares, tanto doutrinais como disciplinares, utilizarão o grego em seus textos. Daí o termo cânon, palavra grega para designar regra, norma ou lei. Os cânones foram os primeiros textos eclesiásticos que mostram um estilo legislativo. A partir do século V, ganharam relevância legislativa as denominadas cartas decretais, pelas quais o Romano Pontífice, por inciativa própria ou em resposta a uma consulta, dava uma determinação para toda a Igreja.

A Igreja soube reconhecer o brilhantismo romano no campo do Direito, não desprezando as soluções geniais dos jurisconsultos romanos, mas antes aceitando-as e incorporando-as em seu próprio cotidiano. É admirável esta capacidade da Igreja Católica de conseguir vislumbrar a riqueza dos valores humanos autênticos presentes nas mais diversas culturas. Reconhecendo o alto valor para a regulação da vida social admiravelmente estruturado pelo Direito Romano prévio ao advento do cristianismo, a Igreja não o rejeita, mas o integra na civilização cristã. Esta é uma constatação importante para a nossa caminhada também hoje.

Um exemplo claro disso se encontra no Corpus Iuris Civilis, já citado acima, essa relevantíssima compilação do Direito Romano ordenada pelo Imperador Justiniano, do Império Romano do Oriente, no século VI da era cristã. Ela se inicia não em nome do Imperador Romano, mas primeiramente In Nomine Domini Nostri lesu Christi, isto é, ‘Em Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo’.

Com o objetivo de conhecer e aplicar as decisões conciliares e as determinações papais, os cânones e as decretais passaram a ser reunidos, dando origem às coleções canônicas, dentre as quais destacam-se a Coleção Dionisiana e a Coleção Hispana. É a partir dessas coleções que o Direito Canônico vai ganhando forma.

Com a ascensão do Império Romano, tanto suas instituições como sua língua própria, o latim, a então língua internacional da época, passaram a ser a referência para as demais sociedades. Gradativamente, as instituições eclesiásticas foram se aparelhando em seu aspecto jurídico e tomaram como referência as instituições já estabelecidas pelo Direito Romano. Assim vemos, dentre outros, as Dioceses e as Cúrias.

O grande desenvolvimento alcançado pelo Direito Romano com o Corpus Iuris Civilis foi de fundamental inspiração para a sistematização do Direito Canônico. O uso de uma técnica jurídica graças à recepção do Direito Romano clássico foi crucial para o florescimento das ciências jurídicas na Igreja, uma característica marcante na reforma gregoriana, no século XI.

Como manifestação desse aperfeiçoamento da atividade jurídica na Igreja, encontram-se duas grandes publicações, o Decreto de Graciano e o Corpus Iuris Canonici, de clara inspiração no Direito Romano. É possível perceber, a partir dessas importantes obras, que por um lado, grande foi a influência do Direito Romano na sistematização do ordenamento Canônico. No entanto, por outro lado, a cultura eclesiástica levou para dentro das Universidades recém fundadas (o Papa Francisco esteve em Louvain na Bélgica comemorando os 600 anos dessa Universidade) o estudo do Direito Romano, colaborando, desse modo, diretamente, para a participação do Direito Romano na elaboração do sistema jurídico europeu.

O Direito Canônico clássico e o desenvolvimento experimentado pelo Direito Civil, nesse mesmo período, foram configurando um sistema de Direito culto denominado Direito Comum, por ser aplicado a todo o Ocidente cristão. O Direito Comum, Civil e Canônico, era o que se estudava nas Universidades europeias. O Direito Civil, a partir da recompilação de Justiniano I, e o Direito Canônico, sobre a base do Corpus Iuris Canonici. Ambos se apoiavam mutuamente, pois o Direito Romano servia para dotar de técnica jurídica o Direito Canônico, e este, por sua vez, ajudava a adaptar, com espírito cristão, as soluções do Corpus Iuris Civilis às novas necessidades.

Como podemos observar, estabeleceu-se nesse período uma profunda relação já inseparável entre o Direito Romano e o Direito Canônico. Esta relação, sem dúvida, foi fundamental para que o valioso patrimônio científico do Direito Romano chegasse até os nossos tempos.

Sobretudo no Ocidente, esta rica tradição jurídica ficou um tanto quanto esquecida na Alta Idade Média, por força das invasões bárbaras (embora de alguma forma sempre preservada, principalmente nos mosteiros). Contudo, foi retomada com força com a criação das primeiras Universidades europeias na Baixa Idade Média, em que os juristas se formavam in utroque iure, isto é, ‘em ambos os direitos’, a saber, o Direito Civil e o Direito Canônico. O estudo de ambos os direitos permitia uma interpenetração em que o método jurídico civilista iluminava o Canônico e vice-versa.

Assim, o que chamamos de Direito Ocidental Contemporâneo nasceu desta fecunda cooperação entre a Igreja e as comunidades políticas europeias na preservação, resgate e difusão da cultura jurídica romana.

Direito Canônico é o conjunto de leis que rege a estrutura institucional da Igreja Católica Apostólica Romana. Ele regulamenta todos os segmentos da vida eclesiástica; sua organização, governo, ensino, culto, disciplina e práticas processuais. O Direito Canônico não é um conjunto de normas frias ou meramente burocráticas, mas uma expressão da própria missão da Igreja. Ele nasce da necessidade de ordenar a vida eclesial segundo a justiça e a caridade, garantindo que a comunidade dos fiéis possa caminhar com unidade, disciplina e fidelidade ao Evangelho. Podemos dizer também que o Direito Eclesial compreende a totalidade da missão da Igreja no mundo, em seus três aspectos fundamentais: a missão de governar, a missão de ensinar e a missão de santificar. Atualmente, esse conjunto de leis está condensado no Código de Direito Canônico, que foi promulgado em 25 de janeiro de 1983 pelo Papa S. João Paulo II e, posteriormente, reformado em vários livros e cânones pelo Papa Francisco.

Até hoje, o Direito Canônico aplicado no dia a dia da Igreja, em todo o planeta, a partir de seus pressupostos e premissas teológicos, faz uso do instrumental do Direito Romano para plasmar as suas normas. Conceitos como ato jurídico, mandato, delegação, domicílio, capacidade civil, impedimentos matrimoniais, dentre tantos outros, estão presentes não apenas nas mais antigas coleções canônicas, mas até hoje no atual Código de Direito Canônico de 1983, cuja edição original é, a propósito, composta em língua latina, à qual se deve recorrer sempre que há dúvidas na interpretação do texto legal.

O estudo do Direito Canônico, portanto, não é um luxo ou um mero exercício acadêmico, mas uma necessidade para aqueles que servem à Igreja com consciência e responsabilidade. Em um tempo de tantos desafios, o conhecimento jurídico e canônico é fundamental para garantir a comunhão e a fidelidade à missão confiada por Cristo. A correta interpretação e aplicação das normas da Igreja não apenas asseguram a justiça dentro da comunidade cristã, mas também promovem o bem dos fiéis e a eficácia pastoral.

Já é de conhecimento de todos que o Direito, como tal, surge da necessidade de ordenar e organizar a vida social para garantir e tutelar o bem-estar das pessoas, da sociedade e dos agrupamentos de indivíduos que compõem a sociedade humana. Nesse sentido, os povos primitivos, como dissemos, foram organizando a vida social e elaborando normas e leis que regeriam a vida social. Temos assim o surgimento do Direito na Grécia, na Germânia e o Direito Romano propriamente dito.

Rapidamente e apenas para relembrar, podemos dizer que a história do Direito Romano pode ser dividida em três períodos: o arcaico, o clássico e o pós-clássico, como é convencionalmente estabelecido pelos historiadores.

O Período Arcaico é historicamente situado entre os séculos VIII a. C. e II a. C. Neste período, o Direito era mais consuetudinário, tratava dos costumes e tradições e, por isso mesmo, privado e arraigado à religiosidade da época. O Estado só intervia em caso de guerras ou para punir crimes mais graves. O cidadão era visto como membro de uma família, sendo protegido pelo grupo que integrava. A Lei das XII Tábuas pode ser classificada como um marco histórico porque, nesse momento, se dá a transliteração do direito consuetudinário vigente na época. Apesar de ser um avanço para o Direito Romano, esta lei é considerada arcaica e cruel, que não satisfez as necessidades práticas da sociedade romana.

No Período Clássico, que vai do século II a.C. a III d.C., em que se verificam a expansão política de Roma e, consequentemente, o contato com outras civilizações e sociedades, o Direito Romano foi sofrendo adequações e atualizações. Este período foi marcado pelo surgimento dos Pretores e dos Jurisconsultos romanos, que eram os responsáveis por adequar o Direito às novas formas de interação social e à solução dos conflitos que surgissem. Os jurisconsultos eram juristas de renome que emitiam pareceres jurídicos sobre casos concretos. Entre as suas atividades, estavam: instruir as partes sobre como agirem em juízo e orientar os leigos nos negócios jurídicos.

O chamado Período Pós-Clássico situa-se historicamente dos séculos III d.C. a VI d.C., também conhecido como período da decadência do Império Romano. Nesse período, os juristas, magistrados e legisladores se atinham ainda ao que foi produzido no período clássico, uma vez que não existia uma inovação na aplicação e na elaboração de leis e normas. Para reverter esse quadro, era necessário codificar as leis romanas e atualizá-las. O Imperador Justiniano, no século III d.C., organizou as leis romanas em obras legislativas que foram sistematizadas em:

  1. OCodex: era a codificação de todas as leis e constituições produzidas pelos imperadores.
  2. ODigesto(Pandectas): era a codificação de todos os pareceres dos jurisconsultos clássicos.
  3. AsInstitutas: manual de direito para estudantes.
  4. Novellae: novas leis publicadas por Justiniano ao longo de sua vida.

Este conjunto de leis sistematizadas deram origem ao Corpus Iuris Civilis, conforme denominou Dionísio Godofredo no século XVI.

Não se pode esquecer que a religião fazia parte da estrutura política de Roma e, especialmente após o edito de Milão em 313 d.C., a religião católica teve foros de cidadania no Império, tornando-se parte da estrutura política de Roma, até sua declaração como religião oficial pelo Decreto Cuntos Populos, de Teodósio I, em 380 d.C.

O Direito Romano clássico dava ao imperador o título de pontifex maximus, pois ele era a autoridade do império que estabelecia de forma mais eficaz “as pontes” com o divino. O poder político imiscuiu-se nas questões religiosas, e pretendeu interferir inclusive nas questões doutrinárias da fé, que, por sua própria natureza, diziam respeito apenas à teologia e a questões dogmáticas que deveriam ser tratadas apenas no âmbito religioso.

Esta fusão e confusão de papéis foi posteriormente denominada de cesaropapismo. Neste sentido, e valendo-se de sua condição de pontifex maximus, Constantino convocou e presidiu o primeiro Concílio Ecumênico da Igreja imperial, nomeadamente o Concílio de Niceia, no ano de 325. É importante notar que os concílios ecumênicos, a partir de então, passam a ser relevantes fontes do Direito Canônico, versando sobre questões eclesiásticas, já que os concílios ecumênicos, para além da fixação da doutrina a respeito de questões da fé, regulavam vários tipos de querelas disciplinares, prescrevendo condutas para a cristandade e para o clero; portanto, emitindo normas disciplinares em sentido jurídico propriamente dito.

Seguidamente, os demais concílios ecumênicos deram-se da mesma forma. Embora a preocupação destes concílios fosse a resolução das controvérsias teológicas e doutrinais, não se pode negar que, desde o século IV, emitiram normas. Por este motivo, os concílios serão a fonte primária do Direito da Igreja, representando a instância colegiada de construção normativa, que determina comportamentos, sanções e prerrogativas, para além de fixar doutrina. Não era incomum, contudo, a aplicação de penas pela instância conciliar, como, por exemplo, a pena de exílio de Ário e os seus três defensores, no Concílio de Niceia.

Desta forma, podemos perceber que, a partir do século IV d.C, o caminho histórico do Direito Canônico estará intimamente ligado às normas do Império. Isto porque os cânones conciliares representaram uma força normativa e disciplinar para a vida do Império Romano cristianizado e desenvolvido. Às controvérsias doutrinárias debatidas nos concílios – que tinham como escopo fixar dogmaticamente questões espirituais e teológicas, como, por exemplo, as duas naturezas de Jesus Cristo e a divindade da Pessoa do Espírito Santo – foi anexada a elaboração de esquemas normativos que regulavam a vida quotidiana e impunham regras de conduta e sanções, o que significou um marco na história do Direito escrito da época, traduzindo-se nas primícias do Direito Canônico.

Por sua vez, na Idade Média, com o surgimento dos chamados Estados Nacionais e o enfraquecimento da influência da Igreja e do Sacro Império, o Direito Romano se estabelece como Direito Comum predominante no continente europeu, como ordem jurídica cientificamente estruturada que fundamenta o poder soberano dos reis. Os reinos se fortaleceram e, na baixa Idade Média, começaram a se organizar na forma de Estados, onde o Direito Comum se consolidará de forma gradativa e estruturante no ordenamento jurídico interno. Com este movimento crescente, começam a se moldar a separação do Direito Romano e Canônico, que continuarão a navegar próximos, mas de maneira distinta.

O Código de Direito Canônico de 1983 renovou profundamente a estrutura jurídica da Igreja, refletindo o espírito do Concílio Vaticano II e reforçando a centralidade da salvação das almas (salus animarum) como a suprema lei. Nosso Instituto, fundado pouco depois dessa promulgação, tem sido um pilar na formação de sacerdotes, religiosos e leigos, preparando gerações para o serviço jurídico e pastoral.

A contribuição oferecida pelo Instituto nestes mais de 40 anos de existência, é reafirmar nossa confiança na importância do estudo sério e dedicado do Direito Canônico. Nossa missão continua: formar mentes e corações que, com retidão e sabedoria, saibam aplicar o Direito eclesial com justiça, prudência e, sobretudo, caridade. Que possamos continuar essa caminhada, sempre atentos aos desafios do presente e às exigências do futuro, mas firmes na fidelidade à tradição e ao Magistério da Igreja. Queremos continuar a servir com qualidade e com novos horizontes essa missão iniciada há quarenta anos.

Apesar do desenvolvimento distinto a partir da Idade Moderna, gostaria de lembrar que o Direito Canônico e o Direito Romano não são antagônicos. Há muitos elementos do Direito Romano que foram incorporados ao Direito Canônico e vice-versa. Há valores técnicos e jurídicos que vigoravam na regulação da vida social romana que foram assumidos no ordenamento jurídico canônico, como por exemplo, a organização da Igreja em dioceses, paróquias etc. O Direito Romano, por sua vez, contribuiu e contribui significativamente no desenvolvimento de legislações codificadas, a começar pela Europa, e pela tradição ocidental, que beberam, por assim dizer, na fonte do Direito Romano, com uma forte influência do Direito Canônico.

É inegável que existe uma relação mútua e enriquecedora entre o Direito Romano e o Direito Canônico, mas é igualmente inegável que há também uma autonomia e especificidade entre um e outro Direito. Fato é que ambos, Direito Romano e Direito Canônico, exerceram e exercem ainda grande influência nos ordenamentos jurídicos modernos, e esta é a principal razão da pertinência e importância da discussão do tema proposto para este momento.

Ademais, como estamos vivendo o Ano Santo Ordinário da Esperança, que tem como tema: “Peregrinos de Esperança”, gostaria de manifestar o desejo da Igreja de que os operadores do Direito, mormente do Direito Canônico, manifestem a “esperança que não decepciona”, que é Cristo Ressuscitado.

Terminando os estudos de Direito Canônico, cabe aos futuros operadores do Direito retornarem para as suas Igrejas particulares e colocarem em prática o que aprenderam nos bancos escolares deste histórico Instituto. O operador do Direito, seja Canônico ou Secular, deve ser um construtor de esperança. Não podemos aplicar a lei de maneira crua e fria. A aplicação da lei deve levar em conta os condicionamentos próprios de caso a caso e não ser pautada pela visão meramente punitivista que está, infelizmente, tomando conta do mundo.

Como operadores do Direito Canônico somos ministros da misericórdia e da esperança cristã que não decepciona. Por isso, devemos inclusive demonstrar essa esperança de modo prático, por exemplo, imprimindo celeridade a nossos processos canônicos, especialmente os processos de nulidades matrimoniais. Sejamos o rosto sereno e radioso de Cristo em favor dos que batem às portas de nossos tribunais.

Recentemente, o Papa Francisco disse que o Direito Canônico deve ser mais pastoral e missionário. Adverte o Papa que: “É possível ser canonista, mas no modo de raciocinar ser sem fé”, e acrescenta: “todas as dimensões e estruturas eclesiais devem realizar uma conversão pastoral e missionária, para levar ao mundo a única coisa de que necessita: o Evangelho da misericórdia de Jesus. O Direito Canônico também está investido deste mandato que o Mestre deu à sua Igreja. Portanto, é necessário que seja mais pastoral e missionário”.

“Tornar-se pastoral” – sublinha ainda o atual Pontífice – “não significa que as regras devam ser deixadas de lado e que se deva orientar como se deseja de forma laxista, mas que, ao aplicá-las, é preciso fazer com que os fiéis cristãos, Christifideles, encontrem nelas a presença de Jesus misericordioso, que exorta a não pecar mais porque dá a graça”.

O Papa Francisco convida a realizar sempre um saudável discernimento espiritual para sermos ajudados a identificar o que é essencial na vida quotidiana da Igreja, na consciência de que “o Povo de Deus vive na história. Portanto, as suas formas de vida e de organização não podem ser imutáveis”, tendo “sempre presente que a suprema lex a que toda lei eclesiástica deve referir-se é sempre a da salvação das almas”.

No centro do Direito Canônico e do Direito Civil está a pessoa; a peculiaridade do Direito Canônico é a pessoa redimida em Cristo, fiel na Igreja. Através das leis, tanto a Igreja quanto a sociedade civil visam alcançar o bem comum. No entanto, na Igreja ele não é apenas uma ordem externa que permite ao indivíduo cumprir as suas obrigações e exercer os seus direitos, mas é uma expressão da presença de Cristo Salvador, realidade interior da graça, que é um bem comum porque pertence a todos os fiéis.

Aproveitemos, portanto, este momento deste início de ano letivo, neste ano muito especial, para rezar pela saúde do nosso amado Papa Francisco. Que ele receba nossas orações e logo volte para as suas cotidianas atividades apostólicas.

Agradecendo à direção do Instituto, aos seus professores, funcionários e alunos, peço que levem aos seus bispos, nas suas respectivas sedes diocesanas, nossa gratidão por confiar na solicitude de nossa Arquidiocese em formar operadores do Direito para levar a salvação de Cristo e da Igreja ao povo de Deus nos mais distantes rincões do Brasil e a esta nossa Arquidiocese. Olhemos também para o futuro e seus desafios, em especial o nosso futuro doutorado e também a possibilidade de EAD. Sejamos peregrinos de esperança que levamos a salvação para todas as almas!

Que Deus abençoe o nosso Instituto, seus professores, alunos e todos aqueles que, com amor e dedicação, se empenham no estudo e na aplicação do Direito Canônico.

A todos o meu muito obrigado pelo convite e pela atenção!

 

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro

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