Orígenes: no Dia do Senhor!

O Dia do Senhor, o domingo, é o dia da Páscoa cristã. Dela participamos pela comunhão eucarística, comungamos do corpo e sangue do Cristo pascal, ressuscitado. Esta é a segunda Páscoa, se considerarmos a Páscoa judaica como figura da cristã. É isto que Orígenes nos ensina ao comentar, em sua homilia VII, que versa sobre o Capítulo 16 do livro do Êxodo: “O maná não desceu no dia em que ocorreu a primeira Páscoa, mas no momento da segunda Páscoa” (Orígenes. ‘Homilies on Genesis and Exodus’. Por Ronald E. Heine. Washington: The Catholic University of America Press, 1982, p. 305, tradução do autor).

O pão vivo, que é Cristo, é a nossa Páscoa: “Vejamos agora, portanto, que ordem de mistério essas palavras contêm. A primeira Páscoa pertence ao primeiro povo; a segunda Páscoa é a nossa. Pois éramos ‘impuros de alma’, Nm 9, 10, como os que ‘costumavam adorar madeira e pedra’, Ez 20, 32, e ‘não conhecendo Deus, costumávamos servir àquelas coisas que, por natureza, não eram deuses’, Gl 4, 8. Éramos aqueles que ‘estavam numa longa viagem’, Nm 9, 10, de quem o apóstolo diz que éramos ‘estranhos e forasteiros para os testamentos de Deus, não tendo esperança e sem Deus neste mundo’, Ef 2, 12. No entanto, o maná do céu não foi dado naquele dia em que a primeira Páscoa foi celebrada, mas naquele dia em que foi celebrada a segunda. Pois ‘o pão que desceu do céu’, Jo 6, 51, não veio para aqueles que celebraram a primeira celebração, mas para nós que recebemos a segunda. ‘Porque Cristo, nossa Páscoa, foi imolado’, 1Cor 5, 7, ‘desceu’ a nós como o verdadeiro ‘pão do céu’, Jo 6, 51” (p. 305-306).

Como o povo antigo, libertado da escravidão na primeira Páscoa, o povo cristão cai frequentemente nos mesmos erros ao não reconhecer a força renovadora da Páscoa do Senhor: “No entanto, vejamos o que se diz ter ocorrido neste dia. ‘No décimo quinto dia do segundo mês’, diz o texto, ‘o povo murmurou e disse que teria sido melhor para nós morrermos no Egito quando nos sentássemos sobre caldeirões de carne’, Ex 16, 1-3. Ó, povo ingrato! Aqueles que viram os egípcios destruídos desejam o Egito! Aqueles que viram a carne dos egípcios dada aos peixes do mar e às aves do céu buscam novamente a carne do Egito! Eles murmuram, portanto, contra Moisés, ou melhor, contra Deus. Contudo, isso é perdoado pela primeira vez, e uma segunda vez, e talvez uma terceira. Mas se persistirem e não desistirem, ouvi o que sucederia ao povo que murmura” (p. 306).

Evitemos, pois, os lamentos, pois são sempre sinais de ingratidão: “O apóstolo revelou em seus escritos o que também é relatado no livro de Números: ‘Nem deveis murmurar como alguns daqueles que murmuraram e morreram das cobras’, 1Cor 10, 9-10. A picada venenosa de cobras destruiu o povo murmurador no deserto. Que nós que ouvimos essas palavras tenhamos cuidado, quero dizer, nós para quem estas coisas foram escritas: ‘Porque elas aconteceram para correção daqueles; e foram escritas, no entanto, para nós, sobre quem o fim dos tempos chegou’, 1Cor 10, 11. Se não desistirmos de murmurar, se não cessarmos de nossas queixas que frequentemente temos contra Deus, tomemos cuidado para não incorrermos em tipo semelhante de ofensa. Pois levantamos uma murmuração contra Deus quando reclamamos sobre a inclemência do céu, sobre a infrutífera produção, sobre a escassez de chuvas, sobre a prosperidade de alguns e a falta de prosperidade de outros. Estas coisas são perdoadas em seus começos, mas são seriamente punidas naqueles que não desistem” (p. 306).

O maná veio do céu por seis dias, dias da semana, dias da criação divina. “Mas o que foi lido depois dessas palavras. ‘O Senhor disse a Moisés: ‘Eis que vos farei chover pão do céu, e o povo sairá e o coletará diariamente, para que eu possa colocá-los à prova, se eles andarão na minha Lei ou não. No sexto dia, eles prepararão tudo o que colherem, e será o dobro do que colherem diariamente’, Ex 16, 4-5. Eu, pelo menos, desejo primeiro ter uma palavra sobre esta Escritura com os judeus a quem ‘as palavras de Deus’ foram ‘confiadas’, Rm 3, 2. Que entendem eles quando se diz: ‘Por seis dias consecutivos vos deveis reunir e, no sexto dia, no entanto, deveis reunir o dobro’? Parece que aquele dia que é colocado antes do sábado é chamado o sexto dia, que chamamos de Dia da Preparação. O Sábado, no entanto, é o sétimo dia” (p. 307).

Se foram seis dias, o maná começou a jorrar do céu, no domingo, no dia do Senhor para nós, dado que o sétimo dia é o sábado dos judeus: “Pergunto, portanto, em que dia o maná celestial começou a ser dado, porque desejo comparar o Dia de Nosso Senhor com o Sábado dos judeus. Pois, pelas Escrituras divinas, parece que o maná foi dado pela primeira vez na terra no Dia do Senhor. Pois se, como as Escrituras dizem, ele foi coletado por seis dias consecutivos, mas no sétimo dia, no sábado, o maná cessou: sem dúvida ele começou no primeiro dia, que é o Dia do Senhor. Porém, se está claro a partir das Escrituras divinas que no Dia do Senhor Deus fez chover maná e no sábado ele não o fez, que os judeus entendam que já naquela época o Dia do Nosso Senhor era preferido ao sábado judaico. Foi revelado ainda que em seu próprio sábado nenhuma graça de Deus desceu-lhes do céu; nenhum pão do céu, isto é, a palavra de Deus, veio a eles. Pois um profeta também diz em outro lugar: ‘Os filhos de Israel ficarão por muitos dias sem rei, sem príncipe, sem profeta, sem vítima, sem sacrifício, sem sacerdote’, Os 3, 4. No Dia de Nosso Senhor, no entanto, o Senhor sempre faz chover maná do céu” (p. 308).

O maná é o amor sutil e delicado de Deus por nós. Exige que percebamos esta delicadeza, pois ele jorra continuamente para nós: “Mas ainda hoje eu digo que o Senhor faz chover maná do céu. Pois aquelas palavras lidas para nós, e as palavras que desceram de Deus, recitadas por nós, são do céu. O maná do céu, portanto, é sempre dado a nós que recebemos tal maná. Essas pessoas infelizes sofrem e suspiram e dizem que são miseráveis ​​porque não são dignas de receber o maná como seus pais o receberam. Eles nunca comem maná. Eles não podem comê-lo porque é ‘pequeno como a semente do coentro e branco como a geada’, Ex 16, 14. 31. Pois eles não percebem nada na palavra de Deus que seja ‘pequeno’, nada sutil, nada espiritual, mas tudo é gordo, tudo é espesso ‘pois o coração desse povo engrossou’. Porém, a interpretação do nome também indica o mesmo, pois maná significa: ‘que é isto?’ Vede se a força em si do nome não vos provoca a aprender, de modo que quando ouvis a Lei de Deus lida, sempre perguntais e dizeis aos mestres: ‘que é isto?’, e esta pergunta é o sentido de ‘maná’. Portanto, se desejais comer o maná, isto é, se desejais receber a palavra de Deus, sabei que ele ‘é pequeno e muito sutil como a semente do coentro’. É parcialmente vegetal porque pode nutrir e recriar os fracos, pois ‘aquele que é fraco come verduras’, Rm 14, 2. É parcialmente duro e, portanto, ‘como a geada’. Também é muito branco e doce. Pois, que há de mais branco, de mais esplêndido que a instrução divina? Que é mais doce ou que é mais delicioso do que as palavras do Senhor que estão ‘além do mel e do favo de mel?’Sl 18, 11” (p. 308-309).

Conservemos as graças que o maná, agora o pão descido do Céu, Jesus Cristo nos concede para nossa viagem definitiva até Ele: “Mas, que pretende dizer a Escritura quando diz: ‘Que no sexto dia uma quantidade em dobro se reúna’ para armazenar o suficiente também para o sábado? Não devemos, como entendemos, passar por isso de forma ociosa e descuidada. O sexto dia é esta vida em que estamos agora (‘Pois em seis dias Deus fez este mundo’, Ex 20, 11). Neste dia, portanto, devemos recolher e armazenar o máximo também para o dia que virá. Pois se adquirirdes qualquer boa obra aqui, se armazenardes qualquer justiça, misericórdia e piedade, isso será alimento para vós no mundo vindouro. Não lemos assim no Evangelho que, aquele que adquiriu dez talentos aqui, recebeu dez cidades lá; e aquele que adquiriu quatro, recebeu quatro cidades? Isto é também o que o apóstolo diz com outra figura: ‘O que o homem semear, isso colherá’, Gl 6, 7. Que estamos fazendo quando armazenamos o que se destrói e não permanece nem perdura para o amanhã? ‘Os ricos deste mundo’, 1Tm 6, 17, armazenam aquelas coisas que são destruídas neste mundo, ou melhor, com o mundo. Se, porém, alguém armazena boas obras, estas permanecem até amanhã” (p. 309).

Orígenes, em sua interpretação alegórica do livro do Êxodo, apresentou-nos hoje a conexão intrínseca entre o Corpo do Senhor, o Pão do Céu, e o Dia do Senhor. Comungamos plenamente da Páscoa de Cristo por seu Corpo e Sangue no domingo, pois também o Dia do Senhor é mistério pascal.

 

Carlos Frederico 

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