Orígenes: que estás procurando?

Recorremos a Orígenes, 185-254, uma vez mais, como recorremos a uma fonte inesgotável de sabedoria, para nos aproximarmos do mistério de Cristo. Como citamos, em mais de uma ocasião, Henri de Lubac observa: ‘Se é verdade que a realidade da história sagrada em todas as passagens esconde mistérios, isto não significa apenas que há, sob cada fato bíblico, um sentido a ser descoberto, como uma virtude secreta reside em cada planta. O ‘oceano de mistérios’ que Orígenes nos ensina a ver nas Escrituras vai mais fundo. Inclui maravilhas mais variadas’ (Henri de Lubac. ‘Histoire et Esprit: L’intelligence de l’Écriture d’après Origène’. Paris: Aubier, 1950, p. 139). Por isso mesmo, Orígenes sempre nos surpreende em sua exegese das Escrituras. Começado o novo ano litúrgico, vamos segui-lo, nas próximas semanas, em suas homilias sobre o Evangelho de João. Nesta homilia, Orígenes fala-nos de seis testemunhos que João Batista dera a respeito de Jesus.

O primeiro testemuno de João Batista no qual ele mostra que Jesus é luz, figura que significa a plenitude e a divindade de Cristo: “João, portanto, também veio dar testemunho a respeito da luz. Ele deu testemunho e clamou: ‘Aquele que vem depois de mim, está à minha frente, porque existia antes de mim. Todos nós, de sua plenitude, recebemos graça por graça, poeque a lei foi dada por Moisés; a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo. Ninguém jamais viu Deus; o Deus unigênito que está em o seio do Pai foi quem O revelou’, Jo 1, 15-18” (Orígenes. Commentary On the Gospel according to John, Books 1-10. By Ronald E. Heine. Washington: The Catholic University of America Press, 1989, p. 152, tradução do autor).

O segundo testemunho refere-se à messianidade de Jesus. João Batista confessa que o verdadeiro Messias é Jesus e não ele: “Todo esse discurso, portanto, veio da boca do Batista, que dava testemunho de Cristo. Este fato escapa à atenção de alguns que pensam que estas palavras, ‘Todos nós recebemos da sua plenitude’ até ‘foi quem O revelou’ veio da boca de João, o apóstolo. Além do testemunho do Batista anteriormente mencionado, que começa com as palavras: ‘Aquele que vem depois de mim, está à minha frente’, e pára em ‘foi quem O revelou’, há um segundo testemunho no qual ele confessa àqueles de Jerusalém, enviados por sacerdotes e levitas, quando não nega a verdade de que ele mesmo não é o Cristo, ou Elias, ou o profeta, Jo 1, 19-23, mas ‘a voz que clama no deserto: – Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías’, Jo 1, 23” (p. 152).

O terceiro testemunho de João Batista é interpretado por Orígenes a partir de sua teologia do lógos, que é o próprio Jesus e de cuja divindade nós participamos por natureza e por graça: por natureza, pois o lógos é razão e nossa vida racional, isto é, espiritual é participação natural na vida divina; e por graça, pois o Lógos, Jesus Cristo fez-se carne e por este e todos os seus mistérios, participamos de sua vida: “Depois disso há outro testemunho do mesmo Batista sobre Cristo, que ensina ainda que sua natureza preeminente se estende a todo mundo e relaciona-se à alma racional, quando diz: ‘no meio de vós está quem vós não conheceis, aquele que vem depois de mim e do qual eu não sou digno de desatar as correias cuja tira da sandália’, Jo 1, 26. E considere se a afirmação, ‘está no meio de vós aquele que vós não conheceis’, não pode ser compreendida em relação ‘logos’ de cada pessoa, porque o coração está no meio de cada corpo, e o princípio governante está no coração” (p. 152).

O quarto testemunho em que Cristo é chamado de ‘cordeiro’, para profetizar aqui o sofrimento de Cristo. A imagem antiga do cordeiro, tão presente na vida do povo de Deus, de Israel, vem significar o mistério da doçura divina, de um Deus que remove o mal do mundo com a mansidão de um cordeiro que aceita a morte sem ferir ninguém, sem sequer se rebelar: “Além dessas palavras há um quarto testemunho de João a respeito de Cristo, que já alude seu sofrimento, quando diz: ‘Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Este é aquele de quem eu disse: –  Aquele que vem depois de mim, está à minha frente, porque existia antes de mim. Eu também não O conhecia, mas vim batizar com água para que Ele fosse manifestado a Israel’, Jo 1, 29-31” (p. 153).

O quinto testemunho é o testemuno do Espírito Santo de Deus, é o testemunho da comunhão trinitária: “Um quinto testemunho também foi registrado com estas palavras, ‘Vi o Espírito descer como pomba do céu e permaneceu sobre Ele. E eu não O conhecia, mas aquele que me enviou para batizar com água me disse: – Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer sobre ele, este é quem batiza no Espírito Santo. E eu vi, e testemunho que este é o Filho de Deus’, Jo 1, 32-34”.

O sexto e último testemunho é novamente o Cordeiro de Deus, agora para significar aquele cordeiro que também é pastor. É a imagem do cordeiro-pastor, que só se aplica a Jesus, por isso os discípulos de João Batistas aceitam seu testemunho e dirigem-se a Jesus, que, desta vez, os questiona: “João testemunha Cristo pela sexta vez a dois discípulos quando diz, depois de ver Jesus andando: ‘Eis o cordeiro de Deus’, Jo 1, 36.  Depois deste testemunho, quando os dois discípulos de João ouviram e seguiram Jesus, Jesus virou-se e, vendo os dois que o seguiam, perguntou-lhes: ‘Que estais procurando?’, Jo 1, 38.

Importantíssima pergunta que Jesus faz a todos nós. “Talvez não seja sem razão que João deixa de testemunhar depois de seis testemunhos, e em sétimo lugar Jesus pergunte: ‘Que estais procurando?’, Jo 1, 38. O discurso que se dirige a Cristo como mestre e confessa o desejo de ver a morada do Filho de Deus é adequado para aqueles que foram beneficiados pelo testemunho de João, pois estes dizem: ‘Rabi, que significa Mestre, onde moras?’, Lc 11, 10. E como ‘todo aquele que procura acha’, Lc 11, 10, ele mostra aos discípulos de João que perguntaram sobre sua morada, dizendo-lhes: ‘Vinde e vede’, Jo 1, 39. Talvez,  com o termo ‘vinde’, Jesus esteja convidando o discípulos para a vida ativa; e, com ‘vede’, Jesus acrescenta que haverá contemplação ao final dessa vida ativa para aqueles que o desejarem: a contemplação que se realiza na morada de Jesus” (p. 153-154).

As nossas ações serão elevadas à vida divina. O simbolismo da décima hora quer dizer plenitude. É a plenitude dos tempos: mora conosco o Messias, e nós podemos morar com Ele: “Estava, então, reservado, para aqueles que perguntavam onde Jesus morava, que seguiram o Mestre e viram sua morada, ficar com Ele e passar esse dia com o Filho de Deus. E como o número dez foi considerado sagrado, não poucos mistérios registrados com o número dez, nós devemos pensar que não é sem razão que, também no evangelho a décima hora é registrada como o momento em que os discípulos de João desceram com Jesus.  André, irmão de Simão Pedro, era um desses. Depois de ter sido beneficiado porque permaneceu com Jesus, ele encontrou seu próprio irmão Simão (talvez ele não o tivesse encontrado antes) e diz que encontrou o Messias, que é traduzido como ‘Cristo’, Jo 1, 45” (p. 154).

Encontramos a Palavra de Deus, o Lógos! Pois, se procurávamos, achamos; se não procuramos ainda, podemos ouvir os testemunhos de João Batista: “Pois como ‘quem procura acha’, Lc 11, 10, e André procurou onde Jesus morava, seguiu-O e viu sua habitação, ele permaneceu com o Senhor na hora décima e encontrou o Filho de Deus que é Palavra e Sabedoria, e foi governado por ele, por esta razão ele diz: ‘Encontramos o Messias’, Jo 1, 41. Agora, esta declaração deveria ser feita por todos que encontraram a Palavra de Deus e foram governados por sua divindade”.

Os seis testemunhos de João Batista, observados pelo talento exegético de Orígenes, abrem-nos para a grande pergunta de Cristo, o sétimo momento, momento subsequente aos testemunhos: ‘Que estais procurando?’. É surpreendente que esta pergunta seja muito atual para nós, pois pensamos já ter encontrado a salvação. Mas ponhamo-nos novamente a pergunta que Jesus fez aos discípulos de João. Ela nos introduz sempre mais no mistério de Cristo.

 

Carlos Frederico Calvet da Silveira, professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio

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