Orígenes, 185-253, o grande mestre da exegese bíblica da Antiguidade cristã, comenta o Magnificat, o ‘salmo’ de Maria, em três homilias ao Evangelho de Lucas, homilias 7, 8 e 9, que ora passamos a apresentar em suas passagens mais importantes. Trata-se de uma leitura tipológica do texto de Lucas, onde Maria prefigura a Igreja: ‘A minha alma engrandece o Senhor’ são palavras de Maria e, sobretudo, da Igreja.
Para Orígenes, a Encarnação de Jesus permite-nos conhecer a Deus de modo mais perfeito do que O conhecíamos antes: “Quem de nós já não foi tolo? Agora, por causa da misericórdia de Deus, temos entendimento e conhecemos a Deus. Quem de nós acreditava na justiça? Agora, por causa da misericórdia de Cristo, possuímos a justiça e a seguimos. Quem de nós não estava vagando sem rumo e vacilando? Agora, por causa da vinda do Salvador, não somos sacudidos ou agitados pelas ondas. Estamos a caminho, isto é, estamos naquele que diz: ‘Eu sou o Caminho’, Jo 14” (Orígenes. *Homilies on Luke*. By Joseph T. Lienhard. Washington: The Catholic University Press, 2009, p. 31, tradução do autor).
O mistério de Cristo encarna-se também em seu corpo místico, a Igreja: “Seu nascimento, seu crescimento, seu poder, sua Paixão e Ressurreição foram eficazes não só no seu tempo, mas também agora, em nós. Catecúmenos, quem vos reuniu na Igreja? Que estímulo vos levou a deixar vossas casas e a vos reunir nesta assembleia? Não fomos até vós de casa em casa. O Pai Todo-Poderoso pôs esse zelo em vossos corações por seu poder invisível. Ele sabe que sois dignos. Ele quer que venhais à fé, relutantes e duvidosos que sois, especialmente no início da fé religiosa. Tímidos e assustados, recebestes a fé na salvação com temor. Catecúmenos, peço-vos: não recueis. Nenhum de vós deve ter medo ou terror. Segui a Jesus, que vai diante de vós. Ele vos atrai para a salvação. Ele vos reúne na Igreja, que, nestes tempos, está na Terra. Mas, se derdes frutos dignos, ele vos atrairá para a ‘Igreja dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus’. ‘Bem-aventurada aquela que creu’, bem-aventurado aquele que crê, porque ‘o que o Senhor lhes disse será cumprido’, Lc 1,45” (p. 31).
O salmo de Maria é um louvor às experiências do divino no homem. Nesse sentido, é também uma sagração da vida a Deus: “Isabel profetiza antes de João. E, antes do nascimento do Senhor e Salvador, Maria profetiza. (…) Consideremos a profecia da Virgem. Ela diz: ‘Minha alma engrandece ao Senhor, e meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador’. Dois temas, ‘alma’ e ‘espírito’, realizam um duplo louvor. A alma louva ao Senhor, o espírito louva a Deus. Isto não é porque o louvor do Senhor difere do louvor de Deus, mas porque aquele que é Deus também é Senhor, e aquele que é Senhor também é Deus. Perguntamos como uma alma pode engrandecer o Senhor. O Senhor não pode sofrer aumento nem perda. Ele é o que é. Assim, por que Maria agora diz: ‘Minha alma engrandece o Senhor’? É necessário considerar que o Senhor e Salvador é ‘a imagem do Deus invisível’ e perceber que minha alma é feita ‘à imagem do Criador’, para que seja uma imagem da imagem. Minha alma não é diretamente uma imagem de Deus; ela foi criada como a imagem da imagem que já existia” (p. 33).
Nós somos, então, uma imagem da imagem, que é Cristo. Orígenes recorre a uma analogia: “Aqueles que pintam quadros tomam, por exemplo, o rosto de um rei e depois usam toda a sua diligência e toda a sua habilidade para copiar a imagem original. Assim também, cada um de nós molda sua alma à imagem de Cristo e faz dele uma imagem maior ou menor. A imagem ou está desbotada e suja, ou está nítida e limpa, e então corresponde à forma do original. Portanto, quando faço uma imagem da imagem – isto é, minha alma – grande, e a magnifico pelo trabalho, pensamento e fala, então o próprio Senhor é magnificado em minha alma, porque ela é imagem dele” (p. 34).
A humildade que Maria canta em seus versos é a humildade do próprio Cristo encarnado, Ele mesmo, ‘manso e humilde de coração’: “Assim, primeiro a alma de Maria engrandece o Senhor, e depois seu espírito se alegra em Deus. ‘Porque contemplou a humildade de sua serva’, diz ela. Que humildade de Maria o Senhor contemplou? A mãe do Salvador estava carregando o Filho de Deus em seu ventre. Que havia de humilde e desprezível nela? O que ela diz, ‘Ele olhou para a humildade de sua serva’, é equivalente a dizer: ‘Ele olhou para a justiça de sua serva’, ‘olhou para sua temperança’, ‘olhou para sua fortaleza e sabedoria’, pois é justo que Deus considere as virtudes. Alguém pode objetar e dizer: ‘Eu entendo que Deus pode olhar para a justiça e a sabedoria de sua serva, mas não está muito claro como Ele poderia olhar para a humildade dela’. Aquele que faz tais perguntas deve considerar que, nas Escrituras, a humildade é declarada uma das virtudes. Pois o Salvador diz: ‘Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vossas almas’, Mt 11,29” (p. 35).
Contudo, num sentido mais espiritual, Maria é tipo, figura da Igreja. A Igreja é a realização plena do que Maria prefigura. Dessa forma, o Magnificat é o hino de todo cristão, de toda a Igreja, pois diz respeito a cada um e a todos nós: “Maria está dizendo: ‘Deus olhou para mim porque sou humilde e busco as virtudes da mansidão e da submissão’, ‘pois eis que, de agora em diante, todas as gerações me chamarão bem-aventurada’. Se tomo ‘todas as gerações’ literalmente, aplico essa expressão aos crentes. Mas, se busco um sentido ainda mais profundo, percebo como é valioso unir-se a essas gerações, ‘porque aquele que é poderoso fez grandes coisas em mim’. Pois ‘todo aquele que se humilha será exaltado’, ‘mas Deus olhou para a humildade de sua serva’, e por causa dela ‘o poderoso fez grandes coisas por \[ela], e santo é o seu nome’. ‘E a sua misericórdia estende-se de geração em geração’. A misericórdia de Deus não se volta para uma geração, nem para duas, nem para três. Não é para cinco, mas se estende ‘de geração em geração: para aqueles que o temem, ele mostrou força em seu braço’. Tu podes te aproximar do Senhor como um homem fraco. Se o temeres, poderás ouvir a promessa que o Senhor te faz por causa de teu temor a Ele. Qual é essa promessa? Ele diz: ‘Ele fez potentes aqueles que o temem’. Assim, se temes o Senhor, Ele te dá coragem e autoridade, Ele te dá o Reino, para que te assentes junto ao ‘rei dos reis’, Ap 19,16” (p. 35-36).
A aproximação ao mistério é progressiva, como nos mostram os momentos vividos por Maria, Isabel e a criança em seu ventre: “Nossa explicação, tanto do que é dito nas Escrituras quanto das obras registradas ali, deve ser digna do Espírito Santo e da fé em Cristo, daquela fé à qual nós, crentes, somos chamados. Portanto, devemos agora perguntar por que Maria foi a Isabel depois que ela concebeu e ‘permaneceu com ela por três meses’ (…). Certamente deve haver alguma explicação. Se o Senhor abrir nossos corações, o discurso que se segue proverá isso. O simples fato de que Maria veio a Isabel e a saudou fez o bebê de Isabel ‘saltar de alegria’ e fez Isabel ficar cheia do Espírito Santo, profetizando as coisas que foram escritas no Evangelho. Em apenas uma hora, Isabel fez tanto progresso. Resta-nos conjecturar o progresso que João fez nos três meses em que Maria morou com Isabel. Num momento ou instante, a criança saltou e, por assim dizer, brincou de alegria, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo” (p. 37).
Como dissemos, esse hino de Maria é o hino da Igreja. É todo um programa eclesial. A Igreja engrandece o Senhor, porque Ele lhe concedeu as maravilhas de seus mistérios, isto é, de seus sacramentos. O Senhor olha para a humildade de sua Igreja, que proclama: santo, santo, santo é seu nome! A Igreja leva, por gerações, o evangelho de Cristo, gera novos cristos, plenifica a figura de Maria. Deus derruba os soberbos em sua Igreja e eleva os humildes. Os famintos ainda estão na Igreja e os ricos também, contudo, transformados pelo poder de Deus. O Senhor continua a falar por sua Igreja, encarnada na história e nos séculos. *Magnificat Ecclesia mea Dominum*!
Orígenes revela aqui a profundidade teológica da exegese patrística, mostrando-nos a consciência viva de que Maria é figura da vocação e da missão da Igreja. Ao magnificar o Senhor, Maria manifesta o destino de cada crente: ser imagem viva da imagem perfeita que é Cristo. Assim como Isabel e João experimentaram uma transformação imediata graças à presença de Maria, portadora de Cristo, a Igreja, como corpo místico, comunica ao mundo a alegria e a plenitude do Espírito. O Magnificat não é apenas o canto de uma jovem de Nazaré, mas o hino eterno da comunidade crente, proclamando, século após século, que o Todo-Poderoso continua a agir, a salvar e a renovar todas as coisas.