Papa Francisco e a formação litúrgica dos fiéis

A Santa Sé publicou no último dia 29 de junho a Carta Apostólica do Papa Francisco “Desiderio Desideravi” (DD) sobre a formação litúrgica do povo de Deus. Apresentamos breve comentário a alguns pontos desse documento, que aborda temas importantes para nossa caminhada de fé.

O primeiro subtítulo, “A Liturgia: o ‘hoje’ da história da salvação”, apresenta o culto cristão como chave de acesso à redenção operada por Jesus de Nazaré, atualizada e acessível a todos nos sinais sacramentais (cf. Puebla n.920). Fecundados pela Palavra de Deus, somos convocados para os divinos mistérios, para os quais devemos conduzir outros irmãos e irmãs (DD n.5), especialmente aqueles que se afastaram, por exemplo, devido à pandemia.

A motivação para esse insistente convite se deve à convicção dos cristãos dos primeiros séculos, como São Leão Magno e Santo Ambrósio, entre outros (cf. Catecismo da Igreja Católica n.1116), de que as celebrações não são meros eventos sociais, mas encontros com Cristo vivo e ressuscitado: “Na Eucaristia e em todos os sacramentos é-nos garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de ser alcançados pela potência da sua Páscoa” (DD n.11).

O Sumo Pontífice aborda em seguida o tema do “Sentido teológico da Liturgia”, evidenciado pelo Concílio Vaticano II (SC nn.5-7), em continuidade com o magistério dos Papas, entre eles São Pio X (cf. SC n.14). Francisco explica: “Com esta carta gostaria simplesmente de convidar toda a Igreja a redescobrir, guardar e viver a verdade e a força da celebração cristã” (DD n.16). Para concretizar esse objetivo, o Papa nos convida a redescobrir em cada dia a beleza da verdade da celebração cristã (DD n.21), reconhecendo a necessidade de uma séria e vital formação litúrgica (DD n.27).

A liturgia pode ser também, de acordo com o Papa Francisco, um poderoso antídoto contra o perigo do mundanismo espiritual, caracterizado em nossos dias pelo gnosticismo e o neopelagianismo (DD n.17; cf. EG 93-97).

O autor mais citado na carta é o ítalo-germânico Romano Guardini (+1968), ativo no movimento litúrgico anterior ao Vaticano II e muito querido também por Bento XVI. Esse teólogo já constatava a perda da capacidade do homem moderno de se “confrontar com o agir simbólico, que é uma característica essencial do ato litúrgico” (DD n.27).

Outro tema caro a Guardini e também ao Papa é o estupor (assombro, maravilhamento) diante do mistério pascal celebrado na liturgia. Para recuperar essa capacidade, é proposta uma abordagem litúrgico-sapiencial das disciplinas teológicas, integrando-as com a prática litúrgica, o que garantiria o caráter unitário da formação dos ministros, com efeitos positivos na ação pastoral (DD n.37; cf. SC n.16).

Uma das prioridades do magistério papal recente tem sido a promoção dos valores da família. Na presente Carta Apostólica, o papel insubstituível dos pais e avós é evidenciado, particularmente no que tange à educação para a linguagem simbólica, com sua força e capacidade performativa (DD n. 47).

O último tópico abordado pelo Papa Francisco no documento diz respeito à arte da celebração (ars celebrandi), onde ele dá indicações muito precisas (DD n.60):

O presbítero é formado para a presidência pelas palavras e pelos gestos que a liturgia põe nos seus lábios e nas suas mãos.

Não se senta num trono (IGMR 310) porque o Senhor reina com a humildade de quem serve.

Não rouba a centralidade do altar, sinal de Cristo de cujo lado aberto correu sangue e água, nos quais encontram fundamento os sacramentos da Igreja, e centro do nosso louvor e da nossa ação de graças (Prece de Dedicação do Altar).

Aproximando-se do altar para a oferta, o presbítero é educado na humildade e no arrependimento pelas palavras: «De coração contrito e humilde sejamos, Senhor, acolhidos por Vós; e seja o nosso sacrifício de tal modo oferecido que vos agrade, Senhor nosso Deus» (Missal Romano).

Não pode presumir de si mesmo para o ministério que lhe está confiado porque a Liturgia o convida a pedir para ser purificado, no sinal da água: «Lavai-me, Senhor, de minhas faltas e purificai-me de meus pecados» (Missal Romano).

As palavras que a Liturgia põe nos seus lábios têm conteúdos diversos que requerem tonalidades específicas: pela importância destas palavras é exigida ao presbítero uma verdadeira “ars dicendi” [arte de dizer]. Elas dão forma aos seus sentimentos interiores, ora na súplica ao Pai em nome da assembleia, ora na exortação dirigida à assembleia, ora na aclamação a uma só voz com toda a assembleia.

Com a oração eucarística – na qual também todos os batizados participam escutando com reverência e silêncio e intervindo com as aclamações (IGMR 78-79) – quem preside tem a força, em nome de todo o povo santo, de recordar ao Pai a oferta do seu Filho na última Ceia, para que esse dom imenso se torne novamente presente no altar. Nessa oferta participa com a oferta de si mesmo. O presbítero não pode narrar ao Pai a última Ceia sem participar nela. Não pode dizer: «Tomai todos e comei: isto é o meu Corpo entregue por vós» e não viver o mesmo desejo de oferecer o seu próprio corpo, a sua própria vida pelo povo a si confiado. É isto o que acontece no exercício do seu ministério.

Por fim o Papa deseja que se redescubra o sentido do ano litúrgico e do dia do Senhor (DD n.62), segundo a indicação do Concílio Vaticano II (cf. SC nn.102-111).

 

Dom Célio da Silveira Calixto Filho

Bispo auxiliar do Rio de Janeiro e referencial da Comissão Arquidiocesana de Pastoral da Liturgia

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