No dia 6 de outubro, o Santuário do Cristo Redentor acolheu uma celebração especial que uniu fé, história e compromisso social. A Santa Missa, presidida pelo arcebispo do Rio de Janeiro, Cardeal Orani João Tempesta, marcou o Dia Mundial do Habitat — instituído pela ONU — e os 48 anos da Pastoral de Moradia e Favelas. A celebração também deu início à mobilização em torno da Campanha da Fraternidade 2026, cujo tema será “Fraternidade e Moradia” e o lema “Ele veio morar no meio de nós” (Jo 1,14).
O evento reuniu agentes pastorais, lideranças comunitárias, representantes de instituições públicas, defensores dos direitos humanos e organizações sociais comprometidas com a pauta da moradia. Em entrevista ao jornal Testemunho de Fé, o coordenador da Pastoral de Moradia e Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro, monsenhor Luiz Antônio Pereira Lopes, pároco da Paróquia Santa Rosa de Lima, no Jardim América, relembrou os marcos históricos do movimento e destacou os desafios atuais da luta por moradia digna no Brasil.
O nascimento da pastoral: um grito contra os despejos
Segundo monsenhor Luiz Antônio, a origem da Pastoral de Favelas remonta às décadas de 60 e 70, em um momento de intensas remoções de comunidades no Rio de Janeiro. “No dia 9 de outubro de 1977 aconteceu a ameaça de despejo do Vidigal. A partir dessa data, embora a pastoral já estivesse começando em várias regiões, foi quando o trabalho se articulou de forma mais coesa.”
O coordenador da Pastoral de Moradia e Favelas recorda que a iniciativa foi sendo construída por padres e leigos espalhados pelos diversos vicariatos da arquidiocese. “No Catumbi, o padre saletiano Mário Pigol reunia os moradores dos morros centrais. Na Zona Sul, o padre José Ítalo Botelho atuava com a comunidade. No Vicariato Suburbano, o padre Franklin, religioso dos Missionários do Sagrado Coração de Maria, organizava os moradores da Praça Seca. O mesmo era feito no Vicariato Leopoldina pelo padre Inácio Rauber, religioso dehoniano, e, no Vicariato Oeste, o padre João Cribbin, religioso dos Oblatos de Maria Imaculada”, explicou.
O estopim, porém, veio com a tentativa de expulsão da comunidade do Vidigal. “Eles procuraram o padre José Ítalo, que já fazia um trabalho de urbanização no Morro dos Cabritos com advogados e engenheiros da paróquia. A partir daí, os padres começaram a se reunir e a traçar os primeiros passos da Pastoral de Favelas.”
Desde então, outubro passou a ser considerado o mês de fundação da pastoral, mesmo sem uma data fixa. “É uma razão afetiva. O importante é que ali começamos um trabalho mais articulado.”
Santa Missa no Cristo Redentor e os parceiros da luta
A escolha do Santuário Cristo Redentor para a celebração foi para marcar a data. “Essa data é mais do que simbólica. O Dia Mundial do Habitat significa que tudo está relacionado ao direito à moradia digna, desde a convivência entre as pessoas até a convivência com a natureza”, disse.
Instituído pela ONU em 1985, o Dia Mundial do Habitat é celebrado na primeira segunda-feira de outubro com o objetivo de promover a reflexão global sobre a condição das cidades e o direito de todos à moradia digna. A edição de 2025 destacou o tema “Resolução de crises urbanas”, convocando governos, instituições e cidadãos a pensar coletivamente em soluções inclusivas e sustentáveis.
A celebração reuniu representantes de diversos órgãos públicos e instituições parceiras da pastoral, como o presidente do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (Iterj), Robson Claudino, e o Núcleo de Terra e Habitação (Nuth) da Defensoria Pública, com a defensora Maria Marília Marias. “A presença deles reforça a importância da parceria entre a Igreja, o Estado e a sociedade civil para garantir os direitos das comunidades”, enfatizou monsenhor Luiz Antônio.
Estiveram presentes também a arquiteta Sandra Kokutai, assessora do programa Minha Casa Minha Vida, e membros de movimentos sociais como o Conselho Popular, representado por Elizabeth Alves Bezerra, e o Movimento Nacional de Luta por Moradia, com a militante Lurdinha Lopes.
“A celebração foi produtiva pela representatividade. Estiveram presentes instituições que lidam diretamente com a questão da moradia, dentro do perfil de atuação da nossa pastoral”, reforçou.
Parcerias e ecumenismo: uma luta que vai além da Igreja
Monsenhor Luiz Antônio destacou que a atuação da pastoral ultrapassa os muros da Igreja. “Temos parcerias com universidades como a PUC, UFRJ e UERJ, que nos assessoram juridicamente e tecnicamente. Também há colaboração com movimentos sociais e parlamentares que, mesmo sem um discurso religioso, são parceiros constantes do trabalho da pastoral e nos ajudam na formulação e defesa de projetos de lei.”
O ecumenismo também é uma marca da pastoral. “Participam das nossas reuniões espíritas, umbandistas, metodistas e batistas. As dores são as mesmas. A fome, o despejo, a humilhação são vividos por todos, independentemente da fé.”
A Pastoral de Moradia e Favela: novo nome, mesma missão
Durante a celebração, foi lembrada a adoção do nome “Pastoral de Moradia e Favela”, reconhecido agora pela CNBB. A proposta nasceu de uma articulação nacional que envolve dioceses do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Bahia e Paraná. “Em São Paulo, por exemplo, o termo ‘moradia’ é mais abrangente por causa dos cortiços. Já ‘favela’ fala diretamente da opção preferencial pelos pobres.”
Monsenhor Luiz Antônio explica que o nome reflete a realidade social dos territórios atendidos. “Já fomos procurados até por moradores de Copacabana que não conseguiam mais pagar o aluguel e queriam ajuda. A advogada respondeu: ‘Nós atuamos coletivamente’. A questão da moradia é ampla, mas a favela sintetiza a luta pela dignidade dos mais pobres.”
Caminho sinodal e compromisso nacional
A Pastoral de Moradia e Favelas, segundo monsenhor Luiz Antônio, segue em sintonia com o caminho sinodal proposto pelo Papa Francisco: escuta, discernimento e ação. “Estamos articulando esse trabalho em nível nacional. Já tivemos encontros no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Brasília. Na última reunião em Brasília, houve representantes de 26 dioceses.”
Ele destaca ainda que a pastoral está se consolidando como espaço de formação e organização. “Queremos formar lideranças, empoderar comunidades, construir um caminho de justiça social.”
O futuro: fortalecer as bases e ampliar a rede
A celebração dos 48 anos não foi apenas um momento comemorativo, mas também um ponto de partida para novas ações. “Assumimos oficialmente a identidade da pastoral nacional. Agora é fortalecer as bases, ampliar nossa rede e continuar a denúncia profética de tudo aquilo que fere a dignidade humana.”
Monsenhor Luiz Antônio conclui com esperança e firmeza: “Queremos continuar gritando com o povo, por justiça. A moradia não é caridade, é direito. E lutar por ela é um ato de fé.”
Tema da Campanha da Fraternidade 2026
Segundo monsenhor Luiz Antônio, a escolha do tema da Campanha da Fraternidade 2026 é resultado de um processo iniciado há três anos, a partir da articulação de um grupo nacional envolvendo representantes do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Bahia e Paraná.
“Surgiram duas propostas principais: primeiro, a necessidade de chamar a atenção de todas as dioceses do Brasil para o problema da moradia; e segundo, que a própria CNBB reconhecesse a urgência de se tratar o tema em uma campanha nacional.”
A escolha do tema é uma providência divina. “Essa campanha é necessária. A moradia é a porta de entrada de todos os direitos. Quem tem casa tem endereço, tem proteção, tem privacidade, tem direção e aconchego. Quem tem endereço tem acesso ao trabalho, à saúde, à educação.”
O coordenador da pastoral lembrou que, em mais de 60 anos de Campanha da Fraternidade, apenas uma edição tratou diretamente da questão da moradia, em 1993. Ele reforçou que o número de famílias vivendo de aluguel aumentou significativamente nas últimas décadas, especialmente após a pandemia, agravando também os índices de inadimplência. “A pandemia escancarou uma realidade dolorosa. Como exigir que uma família desempregada continue pagando aluguel? O Supremo reconheceu isso ao suspender temporariamente os despejos.”
A articulação para levar o tema à campanha se intensificou ao longo dos anos, especialmente após o grupo apresentar à CNBB o desequilíbrio temático dentro das campanhas anteriores. “A ecologia, por exemplo, já foi tema oito vezes. É claro que é importante, e não discutimos isso. Mas moradia é um direito humano básico e ainda muito negligenciado.”
“Moradia é vida, é dignidade, é imagem de Deus”
Monsenhor Luiz Antônio deixa claro o caráter teológico e humano da luta. “Moradia é muito mais que quatro paredes. É direito, é vida, é dignidade. E nós, como imagem e semelhança de Deus, fomos chamados a ser cocriadores com Ele.”
Para ele, o maior pecado das sociedades urbanas é a indiferença. “Essas guerras urbanas, essa violência nas cidades, é porque ninguém mais olha o outro como imagem e semelhança de Deus. Não posso admitir que alguém viva na beira do rio, na rua, como um ser descartável. Até os animais tratam melhor os da sua espécie.”
A reflexão proposta pela Campanha da Fraternidade 2026 também dialoga com a imagem que compõe o cartaz oficial: uma escultura emblemática de um morador em situação de rua, dormindo sob um cobertor, representando Cristo.
“É uma escultura de um artista canadense. Existem réplicas em várias cidades do mundo. No Brasil, só temos na Catedral de São Sebastião, no Rio de Janeiro. Ela nos convida a ver o Cristo que não tinha um lugar para reclinar a cabeça. Por sua vez, os moradores em situação de rua não têm nem mesmo um barraco para morar.”
O coordenador da pastoral alerta para a gravidade da crise atual: “Antes as pessoas tinham pelo menos um barraco, um cômodo. Hoje, estão nas ruas, sem nenhum espaço de privacidade. Isso é uma degradação da humanidade.”
Um chamado à ação
Para monsenhor Luiz Antônio, a responsabilidade pela solução dos problemas de moradia recai sobre o Estado. “A Igreja levanta o tema, promove o debate, mas quem tem que dar respostas concretas é o poder público. O papel da campanha é justamente provocar esse olhar atento da sociedade e dos governantes.”
O sacerdote também ressaltou a necessidade de cada paróquia refletir sobre sua realidade local durante a Quaresma. “Todo pároco conhece a realidade de sua comunidade e sabe que a dor da moradia precária atravessa todas as paróquias, inclusive nas regiões mais abastadas. Todos os bairros do Rio têm periferias, comunidades, favelas. Isso é uma realidade urbana estrutural.”
Além do envolvimento da Igreja, a Pastoral de Moradia e Favelas também atua em parceria com a sociedade civil, especialmente por meio da campanha “Despejo Zero”, criada durante a pandemia. “Esse esforço buscava garantir o mínimo de dignidade a quem não tinha como pagar aluguel. Foi uma ação de resistência e de humanidade.”
Desafios das grandes cidades
Monsenhor Luiz Antônio exemplificou com dados do Instituto Pereira Passos, que apontam a existência de 1.362 comunidades no território da Arquidiocese do Rio de Janeiro, com uma população estimada de 1,7 milhão de pessoas. “Só a Rocinha tem cerca de 150 mil habitantes. É mais do que muitas cidades brasileiras. O Complexo da Maré, do Alemão e da Penha são verdadeiras cidades. Mas são cidades dentro do caos, sem acesso pleno a saneamento, infraestrutura ou segurança.”
Ele reforça que o grande desafio das cidades brasileiras é garantir moradia digna diante do crescimento urbano desordenado e da desigualdade estrutural. “As grandes cidades não têm rede de esgoto que suporte tanta demanda. E a moradia não pode ser reduzida a quatro paredes. Ela é a porta de entrada para todos os outros direitos: trabalho, saúde, educação, dignidade.”
Opção pelos pobres
Por fim, ele destacou o reconhecimento oficial, pela CNBB, da Pastoral de Moradia e Favela como nome nacional da iniciativa. “É uma conquista histórica. O nome ‘moradia’ amplia a abrangência da ação, enquanto ‘favela’ expressa nossa opção preferencial pelos pobres. Cortiços, palafitas, ocupações — tudo isso está dentro do nosso campo de atuação.”
Segundo monsenhor Luiz Antônio, a celebração do Dia Mundial da Habitação reforçou a missão da Igreja Católica como promotora de justiça social e articuladora entre fé e vida. “A moradia digna é um direito, não um privilégio. E enquanto houver um só irmão sem teto, nosso trabalho não estará completo”, concluiu.
Carlos Moioli