Ticônio: a Igreja gloriosa e sua totalidade simbólica

Entre os primeiros intérpretes latinos do Apocalipse, Ticônio (séc. IV) ocupa um lugar singular por propor uma leitura espiritual e eclesiológica da visão joanina. Em contraste com os esquemas milenaristas e com a exegese meramente histórica, ele entende o livro como revelação da história interior da Igreja, a luta permanente entre Cristo e o poder do mal no corpo dos fiéis. No capítulo 12 do Apocalipse, que apresenta a mulher vestida de sol e o dragão vermelho, Ticônio enxerga a figura da Igreja gloriosa e total, que, ao mesmo tempo em que gera Cristo em cada crente, é perseguida e provada por forças espirituais contrárias. Sua interpretação, simbólica e moral, alia a unidade mística do corpo eclesial à tensão escatológica entre o nascimento do Cristo espiritual e a resistência do mal que atua “dentro do céu”, isto é, na própria comunidade dos santos.

 

Ticônio introduz, portanto, a visão de Apocalipse 12 como o desvelamento do templo celeste, sinal da presença de Deus na Igreja: “Assim também agora, quando o templo de Deus no céu foi aberto (Ap 11,19) e batalhas se seguiram, ele diz: ‘E um grande sinal foi visto no céu’ (Ap 12,1), que agora também é visto na Igreja, o mistério de o homem tornar-se divino em Cristo. ‘Uma mulher’, diz ele, ‘vestida com o sol, e a lua sob seus pés’ (Ap 12,1). Frequentemente se afirmou que o universal é dividido em muitos particulares que, contudo, são uma e a mesma coisa. Pois o que o céu é, o templo no céu é; o mesmo é a mulher vestida com o sol e a lua sob seus pés, como se tivesse dito: ‘a mulher vestida com o sol e a mulher sob seus pés’, ou ‘a lua vestida com o sol e a lua sob seus pés’. Todas as coisas são bipartidas, e a Igreja possui uma parte de si mesma sob seus pés. Pode-se também interpretar a lua em sentido bom, conforme os Salmos: ‘Jurei uma vez por minha santidade: não mentirei a Davi. Sua descendência permanecerá para sempre, e seu trono diante de mim como o sol, e como a lua perfeita eternamente; fiel é a testemunha no céu’ (Sl 88,36-38). E ainda: ‘Formosa como a lua, resplandecente como o sol’ (Ct 6,10). Em sua cabeça, uma coroa de doze estrelas, isto é, em Cristo, os doze apóstolos (Mt 19,28) ou as doze tribos de Israel (Ap 21,12)” (TICÔNIO. *Exposition of the Apocalypse*. Trad. Francis X. Gumerlock. Washington, D.C.: The Catholic University of America Press, 2017, p. 121-128, tradução do autor).

 

Ticônio interpreta o parto da mulher como a atividade permanente da Igreja que gera Cristo nos fiéis: “‘E tendo um filho em seu ventre, gritou em dores de parto, dando à luz com sofrimento’ (Ap 12,2). Todos os dias e em todos os tempos a Igreja dá à luz Cristo. ‘E outro sinal foi visto no céu: eis um grande dragão vermelho’ (Ap 12,3), isto é, o diabo (Ap 12,9). Este segundo sinal contrasta com o primeiro: acima, ‘um grande sinal’; aqui, ‘outro sinal’. Pois a profissão da Igreja e a do ‘mistério da iniquidade’ (2Ts 2,7) são semelhantes; e sob o mesmo nome ‘cristão’, e sob o mesmo dom pelo qual a Igreja realiza sinais e prodígios (Mt 24,24), o dragão procura devorar aquele que nasce dela. O dragão foi visto ‘no céu’, isto é, dentro da Igreja. Assim também Herodes, inimigo interno, após ver o sinal no oriente (Mt 2,2), finge querer adorar Cristo com os outros (Mt 2,8), mas procura matá-lo (Mt 2,13), sendo o Menino salvo pela condução do Espírito Santo. ‘Tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre suas cabeças sete diademas’ (Ap 12,3): as cabeças são reis e os chifres, reinos (Dn 7,7; Ap 17,9-10); nas sete cabeças figuram todos os reis e, nos dez chifres, todos os reinos.”

 

A cauda do dragão representa os falsos profetas e irmãos que caem da esfera espiritual para o mundo: “‘Sua cauda levou consigo a terça parte das estrelas do céu e as lançou sobre a terra’ (Ap 12,4). A cauda indica profetas perversos (Is 9,15), que derrubam à terra as estrelas do céu unidas a eles; estes estão sob os pés da mulher. Ele especifica ‘a terça parte’ para que não se pense numa parte exterior, mas naquela parte dos céus que corresponde aos falsos irmãos (2Cor 11,26), os quais, tendo rejeitado Cristo, o confessam com a boca (Mt 7,21), mas por suas obras dizem: ‘Não temos rei, senão César’ (Jo 19,15). O dragão permanece diante da mulher para devorar o filho que ela gera (Ap 12,4), pois, sempre que o Espírito anuncia o futuro, recorda também o passado: o que foi feito prefigura o que acontecerá na Igreja. A Igreja, sempre em dores, dá à luz Cristo em seus membros. Assim, a vinda do Filho do Homem em glória (Mt 24,30) trará sofrimentos semelhantes. O dragão, ‘no céu’, procura devorar o que nasce e é arrebatado ao trono de Deus (Ap 12,5); por isso, todo cristão sofre o que Cristo sofreu (Mt 16,24) e ressuscita após o terceiro dia (Mt 17,23).”

 

O autor associa o dragão à figura de Herodes e vê na história uma repetição constante da perseguição ao Cristo que nasce: “Em Herodes se mostra todo o corpo dos inimigos interiores; e na morte de Herodes estão figurados todos os perseguidores, conforme a palavra do anjo: ‘Morreram os que buscavam a vida do menino’ (Mt 2,20). Do mesmo modo, o Senhor disse a Moisés: ‘Todos os que procuravam tua vida morreram’ (Ex 4,19), ainda que outro Faraó se levantasse. Assim também nas palavras de Herodes se revela que Cristo está continuamente nascendo e sendo procurado para ser destruído. Embora soubesse que Cristo já havia nascido, Herodes perguntou: ‘Onde nasce o Cristo?’ (Mt 2,4), forçado a dizer a verdade, assim como Caifás, ‘por ser sumo sacerdote, profetizou’ (Jo 11,51). Além disso, esta seção se divide em dez partes, que não seguem ordem cronológica, mas abrangem o conjunto dos tempos: (1) o templo de Deus aberto no céu; (2) a mulher vestida de sol; (3) o dragão vermelho; (4) o dragão diante da mulher; (5) a guerra no céu com Miguel e seus anjos; (6) o dragão lançado à terra; (7) a serpente lançando o rio; (8) a besta do mar; (9) a besta da terra; (10) o Cordeiro no monte Sião com os cento e quarenta e quatro mil.”

 

O nascimento do “filho varão” é símbolo de Cristo e da Igreja militante, assim como a fuga da mulher para o deserto: “‘A mulher deu à luz um filho homem’ (Ap 12,5), isto é, a Igreja deu à luz Cristo e, depois, o seu corpo. Ele chama ‘varão’ o vencedor contra o diabo: ‘que regerá todas as nações com vara de ferro’ (Ap 12,5; cf. Sl 2,9), como o Senhor prometeu: ‘Ao que vencer e guardar minhas obras até o fim, darei autoridade sobre as nações, e ele as regerá com vara de ferro’ (Ap 2,26-27). ‘E seu filho foi arrebatado para Deus e para o seu trono’ (Ap 12,5). ‘E a mulher fugiu para o deserto, onde tinha um lugar preparado por Deus, para ser sustentada mil duzentos e sessenta dias’ (Ap 12,6). Quem ressuscitou em Cristo se assenta com ele no trono do Pai (Ef 2,6; Ap 3,21).

 

Mas se João viu tudo isso ‘no céu’, para que trono foi arrebatada a criança? O autor responde: ‘ao deserto’, isto é, ao meio dos escorpiões e serpentes, sobre os quais a Igreja recebeu poder de pisar, conforme a promessa: ‘Eis que vos dei poder para pisar serpentes e escorpiões e toda a força do inimigo’ (Lc 10,19). Assim como Israel foi guiado no deserto (Dt 8,15-16; Nm 21,6), também a Igreja caminha entre as serpentes deste mundo, sustentada pelo ensino divino até o fim dos tempos (1Cor 10,11). ‘Digam os redimidos do Senhor, os que ele resgatou da mão dos inimigos… eles vagaram pelo deserto em lugar árido’ (Sl 106,2-4). E Jeremias identifica o deserto com o povo ímpio: ‘Maldito o homem que confia no homem e faz da carne o seu braço… será como o arbusto do deserto… habitará em terra árida e salgada’ (Jr 17,5-6). Nessa terra vive a mulher, isto é, a Igreja, sustentada pela doutrina celestial até que se completem os mil duzentos e sessenta dias, isto é, desde o nascimento de Cristo até o fim do mundo.”

 

Por fim, Ticônio interpreta a guerra celeste como o combate espiritual dentro da própria Igreja, onde Cristo (Miguel) luta em seus santos contra o mal: “‘Houve guerra no céu: Miguel e seus anjos lutaram com o dragão’ (Ap 12,7). Ele chama Cristo de ‘Miguel’ e os santos de ‘seus anjos’, segundo Daniel: ‘Naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe que guarda os filhos de teu povo’ (Dn 12,1). De modo algum devemos crer que o diabo tenha ousado lutar no céu propriamente dito; ele recebeu autoridade apenas para combater a descendência da mulher (Ap 12,17), isto é, os santos, e não o Filho de Deus. Ele luta no céu com Cristo, mas na Igreja com Cristo revestido de homem. ‘E não prevaleceram, nem se achou mais lugar para eles no céu’ (Ap 12,8), isto é, nos santos, que já não acolhem o diabo, expulso de uma vez por todas. ‘E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada diabo e Satanás, que engana o mundo inteiro; foi lançado à terra, e seus anjos com ele’ (Ap 12,9). O diabo e os espíritos imundos foram lançados na terra, isto é, nos homens que pensam as coisas terrenas (Fl 3,19). A ele foi dito: ‘Comerás a terra todos os dias da tua vida’ (Gn 3,14). Mas sobre essa terra é esmagado sob os pés dos santos, conforme o Salmo: ‘Pisarás o áspide e o basilisco, calcarás o leão e o dragão’ (Sl 90,13).”

 

Ao identificar na mulher vestida de sol a Igreja que dá à luz Cristo continuamente, Ticônio transforma o drama cósmico em figura do combate espiritual que atravessa a vida eclesial e individual. A oposição entre a luz e o dragão não é apenas um evento futuro, mas uma realidade presente no coração da fé: a Igreja é simultaneamente gloriosa e combatente, pura e perseguida, celestial e terrena. Assim, Ticônio antecipa uma hermenêutica que marcará a tradição latina, de Agostinho a Beda, na qual o Apocalipse se lê menos como profecia de catástrofes e mais como revelação do mistério de Cristo que, através da Igreja, vence o mal pela perseverança e pela comunhão com o Espírito Santo.

 

Carlos Frederico Calvet da Silveira

Professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio.

Categorias
Categorias