Tomás de Aquino: “Nada pescamos”

No Evangelho de Lucas 5, 5, Simão diz a Jesus: “Mestre, nós trabalhamos a noite inteira e nada pescamos”, contudo, confiando no Mestre, lança novamente as redes. Simão não sabia ainda tudo o que se passaria em sua vida a partir daquele momento. A carta de Paulo aos Coríntios mostra-nos que a impotência humana se torna poder transformador pela Ressurreição de Jesus, mistério que Simão não poderia ter vislumbrado na cena da pesca com Jesus.

São Paulo explica-nos assim o mistério dos apóstolos: “Quero lembrar-vos, irmãos, o evangelho que vos preguei e que recebestes, e no qual estais firmes. Por ele, sois salvos, se o estais guardando tal qual ele vos foi pregado por mim. De outro modo, teríeis abraçado a fé em vão. Com efeito, transmiti-vos em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo tinha recebido, a saber: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que, ao terceiro dia, ressuscitou, segundo as Escrituras; e que apareceu a Cefas e, depois, aos Doze”, 1Cor 15, 1-5.

Santo Tomás Aquino aponta os elementos fundamentais desta passagem: Paulo “destaca a excelência da doutrina evangélica em quatro pontos. O primeiro ponto vem da autoridade daqueles que a ensinam, porque são os próprios apóstolos. Eis o que o faz dizer: “Meus irmãos, continuando o que precede, lembro-vos a memória do Evangelho, que significa boa notícia, que começa com Jesus Cristo. Tudo o que pertence a Jesus Cristo ou vem do próprio Jesus Cristo é chamado Evangelho, que vos preguei, ou seja, o que vos preguei acerca de Jesus Cristo, isso vos faço conhecer, isto é, trago-vos à lembrança (…). Não era novo, pois ele mesmo diz em Filipenses, 3 1: ‘[É conveniente] que eu vos escreva as mesmas coisas, etc.’, que eu mesmo vos preguei, enquanto os outros apóstolos pregaram a outros. Esta circunstância eleva a autoridade desta doutrina, porque ela vem de Jesus Cristo, de Paulo e dos outros apóstolos cf. (Hb 2, 3): ‘doutrina que, primeiramente anunciada pelo próprio Senhor’, Hb 2, 3” (Tomás de Aquino. ‘Commentaire de la première épître de saint Paul aux Corinthiens’. Traduction reprise et corrigée par Charles Duyck, 2009, c. 15, lição 1. Disponível em: http://docteurangelique.free.fr/bibliotheque/ecriture/1co.htm, consultado em 05/02/25, tradução do autor).

O segundo elemento: “Pela fé comum a todos os povos… Contudo, Santo Agostinho diz que isto pertence à eminência da fé, e usa este argumento: para que se cresse nas coisas que são da fé, ou houve milagres, ou não: se houve milagres, tenho uma demonstração de que a fé é muito certa e muito excelente; se não houve, isto seria o maior de todos os milagres, que uma multidão infinita de homens fosse convertida à fé por apenas alguns homens, os ricos por pessoas pobres que pregavam a pobreza, os sábios e filósofos por pessoas ignorantes que pregavam dogmas que excedem os limites da razão: ‘Sua voz ressoou por toda a terra, Sl 18, 5”.

Terceiro elemento: “Pela sua eficácia, porque este Evangelho fortalece os homens e os eleva para os bens celestes. É por isso que São Paulo diz ‘no qual estais firmes’, isto é, elevados às coisas celestiais, pois é dito que permanece firme quem é reto; e somente a lei de Jesus Cristo pode produzir esse efeito; (Rom., V, 1): ‘Justificados, pois, pela fé’, Rm 5, 1. A antiga lei não fazia com que ninguém permanecesse firme, mas se curvava diante das coisas terrenas: ‘Os olhos de Jacó verão sua terra cheia de trigo e vinho, Dt 33, 28”.

O quarto elemento: “Por sua utilidade, porque somente a nova lei conduz à salvação, que é o nosso fim, o que a antiga lei não realizava: ‘A Lei não aperfeiçoou ninguém’, Hb 7, 19. É o que faz São Paulo dizer: ‘pelo [Evangelho] sereis salvos’, já aqui embaixo, pela firmeza da esperança, que é como o princípio da salvação (que se obtém pela fé); e na vida futura, de fato, pela posse da felicidade esperada aqui na terra: ‘Recebei com docilidade a palavra que entrou em vós’, Tg 1, 21; e também: ‘Estes milagres foram contados para que creiais, e para que creiais’, Jo 20, 31”.

Tomás afirma, contudo, que o Apóstolo estabelece aqui duas condições: “Primeiramente, ‘Se não abraçastes a fé em vão’, como se dissesse: sereis salvos pela fé, a menos que a tenhais abraçado em vão, isto é, se à fé acrescentais as boas obras, pois ‘a fé sem obras é fé morta’, Tg 2, 17. Pois dizemos que uma coisa é vã quando se destina a um fim que não alcança; ora, o fim da fé é visão de Deus. Portanto, se não fostes salvos, crestes em vão, não no que diz respeito à fé em si, mas no que diz respeito à falha da fé.

A segunda condição é a fé na ressurreição: “Ele diz, portanto: Eu vos anunciei, em o primeiro lugar, a morte de Jesus Cristo, que Jesus Cristo morreu. Com estas palavras ele destrói uma dupla suspeita que poderia surgir desta morte: a primeira, que ele teria morrido por pecado ou pelos seus pecados atuais; e isto, São Paulo rejeita dizendo que ele morreu pelos nossos pecados, e não pelos seus: ‘É pelos pecados do meu povo eu os feri’, Is 53, 8; e ‘Jesus Cristo sofreu a morte uma vez por nossos pecados’, 1Pd 3, 18. A segunda suspeita é que a morte de Jesus Cristo teria sido acidental, pela violência dos judeus. O Apóstolo responde e recorre às Escrituras, isto é, ao Antigo e ao Novo Testamento, e o diz expressamente: ‘segundo as Escrituras”. Assim: ‘Ele será levado à morte, como uma ovelha que vai para o matadouro’, Is 53, 7; (Jer., XI, 19): ‘Para mim, eu era como um cordeiro cheio de mansidão que se carrega para fazer dela uma vítima, Jr 11, 19; ‘Eis que subimos para Jerusalém’, Mt 20, 18”.

Tomás mostra como a ressurreição de Cristo é a fonte de todas as ações cristãs; “Também vos ensinei a sua ressurreição, porque ressuscitou ao terceiro dia: ‘Ele nos restaurará à vida em dois dias’, Os 6, 3. O Apóstolo também diz: o terceiro dia, não que houve três dias completos, mas duas noites e um dia: isto é uma sinédoque. A causa desta disposição, como observa Santo Agostinho, é que Deus, pela sua simples operação, isto é, pelo mal do castigo, que é marcado por um dia, destruiu em nós duas coisas, a saber, a dor e a culpa, que são representados pelas duas noites”.

Os apóstolos dão testemunho da Ressurreição de Cristo da qual participaram, cada um conforme o desígnio do Salvador: “É preciso lembrar que as aparições de Jesus Cristo não foram feitas a todos os discípulos reunidos, mas a alguns discípulos especialmente escolhidos: ‘Deus… quis que ele se manifestasse’, At 10, 40. A razão para isso era que era necessário preservar na Igreja esta ordem, que a fé na ressurreição fosse transmitida de alguns, especialmente escolhidos, para outros”.

Por outro lado, os autores sagrados, sobretudo os evangelistas, dedicaram-se a relatar somente o que era fundamental para a mensagem do Ressuscitado, suprimindo, segundo Tomás, algumas aparições de Cristo: “Deve-se notar também que o Apóstolo não relata aqui todas as aparições de Jesus Cristo, nem aquelas que foram feitas às mulheres. Outros, ao contrário, são relatados aqui, que não lemos nos Evangelhos. A razão para isso é que São Paulo aqui quer refutar os infiéis por meio do raciocínio. Ele queria, portanto, citar apenas testemunhos autênticos; consequentemente, ele deixou em silêncio as aparições feitas às mulheres e citou outras que não são encontradas nas narrativas sagradas, a fim de mostrar que Jesus Cristo apareceu a muitos outros. Ele faz menção especial a Pedro e Tiago, porque eles eram como as colunas da Igreja, como é dito em Gl 2, 9). Ele diz, portanto ‘Eu vos entreguei que ele apareceu a Cefas’, isto é, a Pedro: ‘O Senhor ressuscitou verdadeiramente’, Lc 24, 34. Acredita-se que, entre todos os outros, ele apareceu primeiro a Pedro, porque este apóstolo estava em grande tristeza. Então, o anjo diz (Marcos, XVI, 7): ‘Ide, dizei aos seus discípulos e a Pedro’, Mc 26, 7; e, depois, isto é, em outra circunstância, aos outros apóstolos. Ele apareceu aos apóstolos uma vez, quando havia dez deles, estando Tomé ausente, e oito dias depois, quando havia onze, estando Tomé com eles. Santo Agostinho afirma que São Paulo deve dizer aos doze, mas que esta passagem foi alterada por culpa dos copistas…”.

Enfim, ‘nada pescar’ significa confiar na ação do Ressuscitado em nossas vidas. O chamado dos Apóstolos, suas palavras e seus testemunhos revelam o nível de intimidade e de força que eles alcançaram com o Salvador ao lhe entregarem suas fraquezas. E é na força destes testemunhos que dizemos que a Igreja é apostólica.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

Categorias
Categorias