Tomás de Aquino: os dois sinais do pastor

“Eu sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor e não é dono das ovelhas, vê o lobo chegar, abandona as ovelhas e foge, e o lobo as ataca e dispersa. Pois ele é apenas um mercenário e não se importa com as ovelhas. Eu sou o bom pastor. Conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou minha vida pelas ovelhas. Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil…” Jo 10, 11-16.

Santo Tomás, ao comentar esta passagem do Evangelho de João, mostra não somente que Jesus se compara a um bom pastor, mas também as características que competem a esse pastor: “Que Cristo seja pastor, é bastante claro, pois assim como um rebanho é conduzido e alimentado pelo pastor, assim os fiéis são nutridos por Cristo com alimento espiritual, e até mesmo com seu próprio corpo e sangue: ‘Porque vós éreis como ovelhas desgarradas, mas agora vos convertestes ao pastor e guarda de vossas almas’, 1Pd 2, 25; ‘Apascentará como um pastor o seu rebanho’, Is 40, 11. Para distinguir o pastor de um mau pastor e ladrão, o evangelista acrescenta ‘bom’. Bom, porque cumpre o ofício de pastor, assim como se chama bom o soldado que cumpre o ofício de soldado. Contudo, como Cristo havia dito antes que o pastor é aquele que entra pela porta, e agora diz que é o pastor, e antes de dizer que era a porta, Jo 10, 9, então ele quer dizer que ele entra por si mesmo. E ele entra por si, porque por si se manifesta e por si conhece o Pai. Nós, porém, entramos por meio dele, porque é por ele que somos conduzidos à felicidade. Note que só ele é a porta, porque ninguém mais é a verdadeira luz, mas apenas participa da luz: ‘Ele’, João Batista, ‘não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz’, Jo 1, 8. Mas lemos sobre Cristo que ‘Ele era a verdadeira luz que ilumina todo homem’, Jo 1, 9). Portanto, ninguém mais se refere a si como porta; Cristo reservou isto para si” (Tomás de Aquino. ‘Commentary on the Gospel of John: Chapters 6-12’. Washington: The Catholic University of America Press, 2010, p. 194, tradução do autor).

O pastor participa do pastoreio único de Cristo: “Mas, sendo pastor, ele compartilhou isso com outros e conferiu o pastoreio a seus membros, pois Pedro era pastor, e os outros apóstolos eram pastores, assim como todos os bons bispos: ‘Eu vos darei pastores segundo o meu coração’, Jr 3, 15. Ora, embora os dirigentes da Igreja, que são seus filhos, sejam todos pastores, como diz Agostinho, ainda assim ele diz expressamente ‘eu sou o bom pastor’ para sublinhar a virtude da caridade. Porque ninguém é bom pastor, a menos que se torne um com Cristo pelo amor e se torne membro do verdadeiro pastor” (p. 195).

A base dessa participação, que é, ao mesmo tempo, sua condição, é a caridade: “O ofício do bom pastor é a caridade; assim diz ele, o bom pastor dá a vida pelas ovelhas. Deve-se notar que há uma diferença entre um bom pastor e um mau pastor: o bom pastor está preocupado com o bem-estar do rebanho, mas o mau pastor está preocupado com o seu próprio. Esta diferença é abordada por Ezequiel 34, 2: ‘Ó pastores de Israel que se apascentam a si próprios! Porventura não é o rebanho que deveria ser apascentado pelos pastores?’ Portanto, quem usa o rebanho apenas para se alimentar não é um bom pastor. Disto se segue que um mau pastor, mesmo em relação aos animais, não está disposto a suportar qualquer perda em favor do rebanho, uma vez que não visa ao bem-estar do rebanho, mas ao seu próprio. Mas um bom pastor, mesmo em relação aos animais, suporta muitas coisas pelo rebanho cujo bem-estar ele tem em mente. Assim Jacó disse em Gênesis 31, 40: ‘De dia o calor me consumia, e o frio de noite’. Contudo, ao lidar com meros animais, não é necessário que um bom pastor se exponha à morte pela segurança do rebanho. Porém, porque a segurança espiritual do rebanho humano supera a vida corporal do pastor, quando o perigo ameaça a segurança de suas ovelhas, o pastor espiritual deve sofrer a perda da sua vida corporal pela segurança do rebanho. Assim diz nosso Senhor, o bom pastor dá a sua vida, ou seja, a sua vida corporal, pelas ovelhas, as ovelhas, as quais lhe pertencem, por autoridade e caridade. Ambas são necessárias, pois elas devem-lhe  pertencer e ele deve amá-las; a primeira sem a segunda não é suficiente. Além disso, Cristo deu-nos exemplo deste ensinamento: ‘Ele deu a sua vida por nós, e nós devemos dar a vida pelos irmãos’, 1Jo 3,16” (p. 195).

Tomás explana o tema dos sinais que revelam o bom pastor. O primeiro sinal é que o pastor conhece suas ovelhas: “Ele prova que é pastor pelos dois sinais de pastor já mencionados. A primeira delas é que ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas. A respeito disso ele diz, eu conheço os meus: ‘O Senhor conhece os que são seus’, 2Tm 2, 19. Eu sei, digo, não apenas com mero conhecimento, mas com um conhecimento unido à aprovação e ao amor: ‘Àquele que nos ama e nos libertou dos nossos pecados pelo seu sangue’, Ap 1, 5” (p. 199).

E o segundo: “O segundo sinal é que as ovelhas ouvem a sua voz e o conhecem. E sobre isso ele diz: ‘e os meus me conhecem’. Minhas ovelhas por predestinação, por vocação e por graça. Isto é como dizer: ‘Elas me amam e me obedecem’. Assim, devemos compreender que elas têm um conhecimento amoroso sobre o qual lemos: ‘Todos me conhecerão, desde o menor até o maior’, Jr 31, 34”(p. 199).

Contudo, Tomás indica que Jesus não apenas revela esses dois sinais do pastor bom, mas também oferece a suas ovelhas o fruto desses sinais, que é vida que ele lhes entrega: “Ele mostra que é um bom pastor mencionando que tem o ofício do bom pastor, que é dar a vida por suas ovelhas. Primeiro, ele mostra a razão disso; em segundo lugar, ele dá um sinal disso; e em terceiro lugar, ele mostra o fruto de seu sinal. A razão deste sinal, isto é, da entrega da vida pelas suas ovelhas, é o conhecimento que ele tem do Pai. A respeito disso ele diz: ‘como o Pai me conhece e eu conheço o Pai, e dou a minha vida pelas ovelhas’. Esta afirmação pode ser explicada de duas maneiras. Por um lado, de modo que ‘como’ indica apenas uma semelhança de conhecimento; e assim tomado, tal conhecimento pode ser dado a uma criatura: ‘Hei conhecê-lo como sou conhecido’, 1Cor 13, 12, ou seja, como sou conhecido sem obscuridade, assim conhecerei sem obscuridade. Por outro lado, o ‘como’ implica uma igualdade de conhecimento. E então conhecer o Pai como ele é conhecido por si, é próprio somente do Filho, porque somente o Filho conhece o Pai de forma abrangente, assim como o Pai conhece o Filho de forma abrangente: ‘Ninguém conhece o Filho, exceto o Pai, e ninguém conhece o Pai, exceto o Filho’, Mt 11, 27, isto é, com um conhecimento abrangente. Nosso Senhor diz isso porque ao conhecer o Pai, ele conhece a vontade do Pai de que o Filho morra pela salvação dos homens” (p. 199-200).

Agora, Tomás como teólogo, procura explicar o fato da morte de Cristo, o Verbo de Deus imortal: “Depois, quando diz: ‘e eu dou a minha vida pelas ovelhas’, ele dá o sinal: ‘Nisto conhecemos o amor: em ter dado sua vida por nós’, 1Jo 3, 16. Porém, visto que existem três coisas em Cristo, a saber, o Verbo, a alma e o corpo, alguém poderia perguntar quem está falando quando ele diz, ‘eu dou a minha vida’. Se disseres que é o Verbo a falar aqui, isto não é verdade, porque o Verbo nunca entregou sua alma, pois Ele nunca se separou de sua alma. Se disseres que a alma fala, isto também parece impossível, porque nada está separado de si mesmo. E se disseres que Cristo diz isso referindo-se a seu corpo, não parece ser assim, porque seu corpo não tem poder para assumir a sua alma. Portanto, deve-se dizer que, quando Cristo morreu, sua alma foi separada de sua carne, caso contrário Cristo não estaria verdadeiramente morto. Mas em Cristo, a sua divindade nunca foi separada de sua alma ou de sua carne; mas estava unida à sua alma, enquanto descia ao mundo inferior, e a seu corpo, enquanto estava no túmulo. E, portanto, seu corpo, pelo poder de sua divindade, entregou sua alma, ou sua vida, pelo poder de sua divindade, e a retomou. Então, quando ele diz: ‘eu tenho outras ovelhas’, ele expõe o fruto da morte de Cristo, Cristo que é a salvação não só dos judeus, mas também dos gentios. Pois desde que ele disse: ‘Dou a minha vida pelas ovelhas’, os judeus, que se consideravam ovelhas de Deus – ‘Nós, o teu povo, o rebanho do teu pasto’, Sl 78, 13 – poderiam ter dito que ele deu sua vida somente por eles. Mas nosso Senhor acrescenta que não é só para eles, mas também para outros: ‘Ele profetizou que Jesus morreria pela nação, e não apenas pela nação, mas para reunir num só corpo os filhos de Deus dispersos’, Jo 11, 51” (p. 200).

O comentário de Santo Tomás ilumina nossa leitura do Evangelho de João. Ele mostrou-nos que os dois sinais característicos do pastor é o conhecimento das ovelhas e o reconhecimento delas. Mas não só. Estas características provadas na morte de Cristo e sua ressurreição, expandem esses sinais às próprias ovelhas, fazendo-as todas elas, partícipes de seu pastoreio. E as ovelhas de Cristo são todas as pessoas, as que ora estão com ele e também as que não estão com ele agora. Mais de uma vez se diz que a morte de Cristo interessa a todos os homens, mesmo o que não estão no seu redil.

 

Carlos Frederico Calvet da Silveira, professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio

 

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