Um diálogo histórico

 

Primeiro Seminário de Direito Romano e Direito Canônico

Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ) – 30 de setembro 2024

 

Ilustríssimos senhores e senhoras

Sabemos que o Direito nasce como uma necessidade da sociedade e tem por objetivo salvaguardar o bem comum. A vida dentro de um coletivo social exige um ordenamento capaz de garantir o bem-estar da pessoa, da sociedade e dos distintos grupos que a compõem. Com esse objetivo os romanos foram elaborando suas leis e constituindo organismos, tanto para a aplicação da lei como para o julgamento dos incumprimentos da lei. Assim, assistimos o surgimento do Senado romano e do Fórum romano.

Dois mil anos atrás, quando o cristianismo surgiu, ele se encontrou com uma cultura já então bem sedimentada, aquela do Império Romano, por sua vez já tributária da cultura e filosofia gregas. Roma vivia então a era conhecida como Pax Romana, tida como um período áureo da expansão romana sobre o Velho Mundo.

E foi assim que, quando o próprio Jesus de Nazaré veio ao mundo, o território em que ele nasceu, cresceu e desempenhou todo o seu ministério estava sob dominação romana.

A constatação de tal fato histórico se faz presente no próprio Evangelho de São Lucas, o qual registra que, por ordem de César Augusto, então Imperador Romano, foi determinado um recenseamento geral, em que cada um deveria alistar-se na cidade de origem de sua família. Por isso, subiu José, pai putativo de Jesus, da região da Galileia, da cidade de Nazaré, até a Judeia, à cidade de Davi, chamada Belém (porque era da casa e família do rei Davi).

Assim, já no início da história do cristianismo, vemos o lugar de nascimento de Jesus intimamente relacionado com um ato normativo romano, isto é, o decreto de recenseamento de César Augusto.

Posteriormente, após a morte, ressurreição e ascensão aos céus de Jesus, vemos o cristianismo se expandir e rapidamente chegar ao coração do Império, a Cidade Eterna: Roma.

Lá, segundo a tradição cristã, São Pedro e São Paulo foram martirizados, tendo Pedro, o primeiro Papa, sido crucificado de cabeça para baixo na colina do Vaticano, onde hoje se encontra a Basílica de São Pedro, erguida sobre o seu túmulo. Paulo, por sua vez, por ser cidadão romano, dez dias após sua condenação à morte, como previa a lei romana, foi decapitado fora da cidade e sem a presença de público. Podemos elencar, ainda, três momentos em que o Apóstolo dos Gentios fez uso de seus direitos de cidadão romano: em At 16, 37 informa aos magistrados filipenses que infringiram seus direitos ao ordenarem açoitá-lo; em At 22, 25-30 revela sua cidadania romana, o que evita de ser açoitado em Jerusalém; em At 25, 10-12 usa seu direito de cidadão romano de apelar a César para ser ouvido e julgado diretamente pelo imperador. Em At 25, 16, diante do pedido de condenação de Paulo, Festo respondeu: “Eu, porém lhes respondi que os romanos não costumam entregar um acusado, antes que tenha sido confrontado com os acusadores, podendo defender-se da acusação”.

Passados os três primeiros séculos e as grande perseguições oficiais do Império Romano aos cristãos, em 313 depois de Cristo, com o Édito de Milão, o Imperador Constantino Magno concedeu liberdade de culto aos cristãos em toda a extensão do Império.

Com isso, abrem-se as portas para que os cristãos passem a tomar ainda mais parte nas instituições oficiais romanas. Essa interpenetração do cristianismo e da cultura romana foi tão profunda que, quando caiu o Império Romano do Ocidente sob Odoacro, no ano de 476 depois de Cristo, foi a Igreja Católica que preservou o legado cultural de Roma, já agora sob os influxos do cristianismo.

O desenvolvimento do Direito Romano ao longo da história abarca mais de mil anos. Desde o século V a.C. até alcançar seu ápice, com o Corpus Iuris Civilis, promulgado pelo Imperador Justiniano I, no século VI d.C. Os historiadores sinalizam como marco inicial do Direito Romano a publicação da “Lei das doze tábuas”, por volta do ano 450 a.C., nas quais se encontram antigas leis ainda não escritas na época e as principais regras de conduta.

A partir daí é possível observar a evolução das instituições jurídicas romanas, as quais gradativamente deram origem às três principais áreas do Direito Romano, o ius civile, o ius gentium, e o ius honorarium. Grande será a influência dessa sistematização do Direito Romano nas sociedades posteriores, incluindo a sociedade eclesiástica.

Na Comunidade Cristã, percebe-se, já em seus primórdios, o surgimento de um direito para assegurar o bem comum dos fiéis. A sociedade eclesial, cujo bem comum a ser custodiado é a salvação de cada pessoa, alcançada por meio da vida nova que Cristo Jesus inaugurou, organiza-se por suas leis e instituições para que sua finalidade seja plenamente alcançada. Assim, assistimos o surgimento dos Concílios e dos Tribunais eclesiásticos.

Sendo o grego a língua internacional no momento do nascimento do cristianismo, as decisões conciliares, tanto doutrinais como disciplinares, utilizarão o grego em seus textos. Daí o termo cânon palavra grega para designar regra, norma ou lei. Os cânones foram os primeiros textos eclesiásticos que mostram um estilo legislativo. A partir do século V ganharam relevância legislativa as denominadas ‘cartas decretais’, pelas quais o Romano Pontífice por inciativa própria ou em resposta a uma consulta, dava uma determinação para toda a Igreja.

A Igreja soube reconhecer o brilhantismo romano no campo do Direito, não desprezando as soluções geniais dos jurisconsultos romanos, mas antes aceitando-as e incorporando-as em seu próprio cotidiano. É admirável esta capacidade da Igreja Católica de conseguir vislumbrar a riqueza dos valores humanos autênticos presentes nas mais diversas culturas. Reconhecendo o alto valor para a regulação da vida social admiravelmente estruturado pelo Direito Romano prévio ao advento do cristianismo, a Igreja não o rejeita, mas o integra à civilização cristã.

Um exemplo claro disso se encontra no Corpus Iuris Civilis, essa relevantíssima compilação do Direito Romano ordenada pelo Imperador Justiniano, do Império Romano do Oriente, no século VI da era cristã. Ela se inicia não em nome do Imperador Romano, mas primeiramente In Nomine Domini Nostri Iesu Christi, isto é, “Em Nome de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Com o objetivo de conhecer e aplicar as decisões conciliares e as determinações papais, os cânones e as decretais passaram a ser reunidos dando origem às coleções canônicas, entre as quais destacam-se a Coleção Dionisiana e a Coleção Hispana. É a partir dessas coleções que o Direito Canônico vai ganhando forma.

Com a ascensão do Império Romano, tanto suas instituições como sua língua própria, o latim, passaram a ser a referência para as demais sociedades. Gradativamente, as instituições eclesiásticas foram se aparelhando em seu aspecto jurídico e tomaram como referência as instituições já estabelecidas pelo Direito Romano. Assim vemos, entre outras, as Dioceses e as Cúrias.

O grande desenvolvimento alcançado pelo Direito Romano com o Corpus Iuris Civilis foi de fundamental inspiração para a sistematização do Direito Canônico. O uso de uma técnica jurídica, graças à recepção do Direito Romano clássico, foi crucial para o florescimento das ciências jurídicas na Igreja, uma característica marcante na reforma gregoriana, no século XI.

Como manifestação desse aperfeiçoamento da atividade jurídica na Igreja encontram-se duas grandes publicações, o Decreto de Graciano e o Corpus Iuris Canonici, de clara inspiração no Direito Romano. É possível perceber, a partir dessas importantes obras, que por um lado grande foi a influência do Direito Romano na sistematização do ordenamento canônico. No entanto, por outro lado, a cultura eclesiástica levou para dentro das universidades recém fundadas (o Papa Francisco esteve em Louvain na Bélgica, neste final de semana, comemorando os 600 anos dessa Universidade), o estudo do Direito Romano, colaborando, desse modo, diretamente, para a participação do Direito Romano na elaboração do sistema jurídico europeu.

O Direito Canônico clássico, e o desenvolvimento experimentado pelo Direito Civil nesse mesmo período, foram configurando um sistema de Direito culto denominado Direito Comum, por ser aplicado a todo o Ocidente cristão. O Direito Comum, civil e canônico, era o que se estudava nas universidades europeias. O Direito Civil, a partir da recompilação de Justiniano I, e o Direito Canônico, sobre a base do Corpus Iuris Canonici. Ambos se apoiavam mutuamente, pois o Direito Romano servia para dotar de técnica jurídica o Direito Canônico, e este, por sua vez, ajudava a adaptar, com espírito cristão, as soluções do Corpus Iuris Civilis às novas necessidades.

Como podemos observar, estabeleceu-se nesse período uma profunda relação já inseparável entre o Direito Romano e o Direito Canônico. Esta relação, sem dúvida, foi fundamental para que o valioso patrimônio científico do Direito Romano chegasse até os nossos tempos. Desejo, por isso, que esse primeiro Seminário nos ajude a conhecer ainda mais a conexão existente entre esses dois âmbitos tão importantes do Direito.

Sobretudo no Ocidente, esta rica tradição jurídica ficou um tanto quanto esquecida na Alta Idade Média, por força das invasões bárbaras (embora de alguma forma sempre preservada, sobretudo nos mosteiros). Contudo, foi retomada com força com a criação das primeiras Universidades europeias na Baixa Idade Média, em que os juristas se formavam in utroque iure, isto é, ‘em ambos os direitos’, a saber, o Direito Civil e o Direito Canônico. O estudo de ambos os direitos permitia uma interpenetração em que o método jurídico civilista iluminava o canônico e vice-versa.

Assim, o que chamamos de Direito Ocidental Contemporâneo nasceu desta fecunda cooperação entre a Igreja e as comunidades políticas europeias na preservação, resgate e difusão da cultura jurídica romana.

Direito Canônico é o conjunto de leis que rege a estrutura institucional da Igreja Católica Apostólica Romana. Ele regulamenta todos os segmentos da vida eclesiástica; sua organização, governo, ensino, culto, disciplina e práticas processuais. Podemos dizer também que o direito eclesial compreende a totalidade da missão da Igreja no mundo, em seus três aspectos fundamentais: a missão de governar, a missão de ensinar e a missão de santificar. Atualmente esse conjunto de leis está condensado no Código de Direito Canônico, que foi promulgado em 25 de janeiro de 1983 pelo Papa São João Paulo II.

Até hoje, o Direito Canônico aplicado no dia a dia da Igreja, em todo o planeta, a partir de seus pressupostos e premissas teológicos, faz uso do instrumental do Direito Romano para plasmar as suas normas. Conceitos como ato jurídico, mandato, delegação, domicílio, capacidade civil, impedimentos matrimoniais, entre tantos outros, estão presentes não apenas nas mais antigas coleções canônicas, mas até hoje no atual Código de Direito Canônico de 1983, cuja edição original é, a propósito, composta em língua latina, à qual se deve recorrer sempre que há dúvidas na interpretação do texto legal.

Na conclusão dessa brevíssima síntese quero afirmar, sem sombra de dúvidas, que a Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro fez história ao reconhecer o passado comum desses dois grandes ordenamentos jurídicos que estiveram na base da própria constituição dos ordenamentos jurídicos contemporâneos ocidentais.

Esse reconhecimento, em forma de seminário, pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro é também um farol, em nosso tempo, para a colaboração de interesse público que a Igreja Católica no Brasil, até os dias atuais, continua a prestar à sociedade e aos cidadãos brasileiros.

Como afirma o tratado internacional Acordo Brasil-Santa Sé, nas relações históricas entre a Igreja Católica e o Brasil, estão diante de nós as respectivas responsabilidades a serviço da sociedade e do bem integral da pessoa humana, buscando ambas cooperar para a construção de uma sociedade mais justa, pacífica e fraterna.

Foi uma excelente manhã de palestras, com o desejo que esse primeiro Seminário nos ajude a conhecer ainda mais a conexão existente entre esses dois âmbitos tão importantes do Direito. Agradeço aos promotores e desejo que esses seminários continuem a aprofundar esse importante tema.

 

Orani João, Cardeal Tempesta, O.Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ

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