Introdução
O encontro do perito da Lei com Jesus – que ocasionou a narrativa da parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37) – e a recepção de Jesus por Marta e Maria em sua casa – que ocasionou a distinção de posturas entre as duas irmãs e a frase: “Maria escolheu a boa parte que não lhe será tirada” (Lc 10,38-42) – servem de fundo e de base para o pedido de um dos discípulos e a pronta resposta de Jesus ao ensinar a oração do Pai-Nosso.
Ao ver como Jesus orava, os discípulos ficaram tocados e pediram que lhes ensinasse a orar. Sabemos que “palavras, o vento leva; exemplos arrastam”. O episódio narrado comprova a verdade desse provérbio. Dado interessante reside no fato de o discípulo usar, como critério, João Batista, que ensinava seus discípulos a orar. Pelo visto, até o momento, Jesus ainda não tinha ensinado os seus discípulos a orar. E por quê? Vejamos!
- Texto bíblico
1 E aconteceu que ele, em um lugar, estava orando; quando parou, um dos seus discípulos lhe disse: “Senhor, ensina-nos a orar, como também João ensinou os discípulos dele”.
2 A eles, porém, disse: “Quando orardes, dizei: Pai, santificado seja o nome teu; venha o reino teu; 3 o pão nosso, o de cada dia, dá-nos a cada dia; 4 e perdoa-nos os nossos pecados, pois também nós perdoamos a todos os que nos devem; e não nos leves à tentação”. 5 E acrescentou: “Quem dentre vós, tendo um amigo, e for buscado à meia-noite e lhe disser: Amigo, empresta-me três pães, 6 porque meu amigo veio de viagem a mim e não tenho o que lhe oferecer; 7 e aquele, de dentro, respondendo, disser: não me causes incômodos; a porta já está fechada e os meus filhos estão comigo no leito; não posso levantar-me e dar-te. 8 Digo-vos, se mesmo não se levantar para lhe dar por ser seu amigo, por causa da insistência dele se levantará e lhe dará o que precisar. 9 E a vós eu digo: pedi e vos será dado; buscai e encontrareis; batei e vos será aberto; 10 pois todo o que pede recebe, e o que busca encontra, e ao que bate será aberto. 11 Quem dentre vós, sendo pai, se o filho lhe pedir peixe, em vez de peixe lhe dará uma serpente? 12 Ou também, se pedir um ovo, lhe dará um escorpião? 13 Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do céu dará o Espírito Santo aos que lhe pedirem”.
- Que diz o texto?
Jesus é Deus, enquanto Segunda Pessoa da Trindade encarnada. Então: por que orava, se a sua comunhão com o Pai e o Espírito Santo era plena? Orava exatamente por isto. O evangelista Lucas teve a sensibilidade de colocar Jesus orando em vários momentos. Antes desse episódio, cinco vezes (Lc 3,21; 5,16; 6,12; 9,18; 9,28-29), e mais quatro vezes após esse episódio (Lc 22,32; 22,41-45; 23,34; 23,46), totalizando dez vezes. A intenção é evidenciar a viva comunhão de Jesus com o Pai e o Espírito Santo, em quem ele exulta de alegria (Lc 10,22).
Na época, era comum que os mestres ensinassem seus discípulos a orar, a fim de que aprendessem o seu modo próprio de se relacionar com Deus, pois na oração reside eficácia para o cotidiano da vida. Jesus, prontamente, ensinou a orar. A oração do Pai-Nosso representa tanto uma continuidade com a tradição orante do povo judeu quanto uma superação, ou novidade, na forma e no conteúdo assumidos e ensinados por Jesus.
À diferença da versão de Mateus, que traz sete petições (Mt 6,9-14), a de Lucas traz apenas cinco e é, por muitos estudiosos, considerada a mais antiga e a mais próxima da que, de fato, Jesus poderia ter ensinado.
Embora a invocação direta e íntima de Deus como “Pai” (Abba) seja uma característica distintiva da forma como Jesus se relacionava com Deus, a noção de Deus como um pai para Israel já estava presente nas Escrituras. Em Jr 3,19, o próprio Deus afirma que será chamado de “meu Pai”. Is 63,16 afirma: “Pois, tu és nosso Pai”. Essa paternidade, porém, era entendida em um sentido coletivo, para todo o povo de Israel. Jesus, enquanto Filho Unigênito, a possuía de forma pessoal, mas a estendeu à sua comunidade de discípulos.
Deus quer a santidade do seu povo porque Ele é Santo (Lv 19,2). Nesse sentido, a petição “santificado seja o teu nome” reflete uma preocupação central na vida cotidiana. O Kaddish, uma das orações mais solenes do judaísmo, começa exatamente dizendo: “Exaltado e santificado seja o teu grande Nome”. Deus é santificado na vida do seu povo e em cada membro, na medida em que é obedecido, pois na obediência encontra-se o reconhecimento da sua autoridade e da sua grandeza. Jesus também deu a entender a mesma coisa no discurso da última ceia: “Se me amais, guardareis meus mandamentos” (Jo 14,15), isto é, me obedecereis.
Essa obediência se reflete na dupla possibilidade de tradução para a locução “βασιλεία τοῦ θεοῦ”, como “Reino de Deus” ou “Reinado de Deus”, revelando a fé e a esperança de que a soberania de Deus seja plenamente estabelecida sobre a face da terra. Não se trata de mero domínio, como em geral o ser humano o concebe e busca, mas como realização do plano de Deus para o ser humano, sua sublime criatura (Gn 1,26).
No reconhecimento dessa soberania, o ser humano não arvoraria para si o desejo de submeter o seu próximo ao seu domínio. Neste reside a razão dos grandes males que assolam a humanidade, pois onde entra o egoísmo, o egocentrismo e o individualismo, as relações não se estabelecem sobre a base da fraternidade, mas do servilismo e do apoderamento de uns poucos abastados sobre a grande massa empobrecida no mundo.
Admitir a dependência de Deus não elimina o trabalho, pelo qual se obtém o sustento diário. Pela lógica da narrativa de Gn 2,4b-25, o ser humano estaria e viveria feliz no Jardim do Éden, isto é, em um pomar que ofereceria uma condição favorável à sua vida. Contudo, pela desobediência, narrada em Gn 3, perdeu essa condição e, no lugar, teve que habitar uma terra que produz espinhos e cardos. Prolepse e alusão ao tempo do deserto em que os filhos de Israel foram mantidos vivos pelo maná provido pelo próprio Deus (Ex 16,4-36).
O pão não diz respeito só ao alimento, mas a tudo de que o ser humano precisa para viver com dignidade: bondade, respeito, fraternidade, justiça, lealdade, verdade, esperança, fé, saúde, etc., que podem ser assumidos como “o pão nosso de cada dia” a ser pedido, em oração, a Deus que nos alimenta com a sua Palavra (Dt 8,3).
A falta desses bens permite entrever o mal praticado e a necessidade do arrependimento e do perdão. Neste reside o sentido mais amplo de liberdade, pois quem perdoa desencarcera, de dentro de si, o ofensor e a ofensa recebida. Perdoar, segundo Lc 6,37, é deixar livre, é não aprisionar nada nem ninguém, pois a falta de perdão gera mágoa, rancor, ressentimento e pode chegar ao ódio. O perdão, então, é ato de amor, e só os fortes perdoam, ao passo que os fracos se vingam, aumentando o ciclo vicioso da maldade e do ódio no mundo.
O pedido para não ser levado à tentação é um reconhecimento do quanto o ser humano é capaz de fazer de mal, caso se deixe levar por suas fraquezas. Ninguém precisa de Deus para pecar, mas sem Deus é impossível evitar o pecado. Por isso, ao reconhecer as suas fragilidades, inerentes à natureza humana, o discípulo aprende a não se bastar e a necessitar da constante ajuda divina para resistir à tentação que pode levar ao pecado.
Do v. 5 ao v. 13, Jesus exemplifica que a oração não deve ser feita ocasionalmente, mas deve ser uma ação constante e intensa na vida do discípulo, que precisa aprender a não pedir a Deus o que quer, mas o que Deus quer dar. A insistência, nesse sentido, não serve para convencer Deus daquilo que se está pedindo, mas para deixar-se convencer do que, de fato, é necessário: fazer a sua santa vontade em pensamentos, palavras e ações.
A parábola do amigo importuno e a analogia do pai, que dá boas dádivas aos filhos, oferecem *insights* sobre a natureza da oração e a relação entre Deus e o discípulo, gerando impactos psicológicos e morais significativos. Essa parábola ajuda a vencer o desânimo aparente diante da ausência da resposta de Deus. A experiência de orar e sentir que as súplicas não são ouvidas, ou que Deus permanece em silêncio, pode levar à frustração e à perda de fé. Jesus utiliza a figura de um amigo que, por causa da “insistência” do amigo ao qual pede, acaba cedendo e dando não só o que é pedido, mas indo além. Deus é mais que um amigo. É Pai! Assim, a oração perseverante é como um antídoto para a ansiedade e a dúvida, promovendo uma atitude de esperança ativa.
Já a analogia do pai, que dá boas dádivas aos filhos, propõe uma confiança inabalável na bondade de Deus. Se pais humanos, que são imperfeitos e “maus”, no confronto com Deus, sabem dar boas coisas aos seus filhos (“peixe em vez de serpente e ovo em vez de escorpião”), quanto mais o Pai celestial dará o Espírito Santo aos filhos que o pedirem em oração. Com isso, o discípulo pode reconhecer no “pão de cada dia” o alimento que realmente é preciso pedir a Deus em oração: o Espírito Santo, que, nas palavras do apóstolo Paulo, vem em nosso socorro, pois não sabemos pedir o que, de fato, convém. Além disso, é pelo Espírito Santo que podemos chamar a Deus de Pai, pois nos convence de que somos filhos e filhas muito amados (Rm 8,15-16.26-27). Suplicar o Espírito Santo é pedir a sabedoria divina para discernir o bem, a força para resistir ao mal e a capacidade de amar e servir ao próximo, a exemplo do que o próprio Deus fez a favor da humanidade em seu Filho Jesus Cristo.
- Que propostas o texto faz?
Que, pelo encontro com Jesus na Palavra, na Liturgia e no cotidiano, sejamos capazes de cultivar a vida de oração constante e insistente, não rezando de forma mecânica o Pai-Nosso, mas conscientes de cada palavra.
Que peçamos o Espírito Santo, dom de Deus, que nos ensina a ter, como seus filhos e filhas, a sabedoria.
Que nunca deixemos de acreditar na bondade e na generosidade de Deus, certos de que nos responde não como queremos, mas como precisamos. Na oração do Pai-Nosso está a fonte de tudo o que é necessário.
- Que o texto faz dizer a Deus em oração?
Rezar o Pai-Nosso, refletindo sobre cada palavra proferida, e acrescentar a oração do Salmo 22(23).
- Que decisões o texto leva a tomar?
Aprendemos com Jesus a estabelecer o lugar e os momentos de oração, criando o hábito saudável de nos colocarmos diante de Deus. O tempo da oração é questão de preferência e não deve ser negociável, pois nada deve se antepor a Deus. É assim que se busca o Reino de Deus e a sua justiça; o mais vem por acréscimo.
Ao assumirmos o compromisso como discípulos de Jesus Cristo, também se assume a decisão de buscar e ampliar o conhecimento sobre Deus, que nos chama à vida de comunhão com Ele no amor. Isso requer que nos disponhamos a ler mais sobre a vida de oração e a participar com mais entusiasmo da liturgia, pois é a fonte inesgotável da presença e da ação de Deus, que nos renova a vida em sua graça santificadora.
Não basta saber-se filho(a) de Deus; é preciso aprender a nos comportarmos como tais e, para tanto, a vida de oração, tendo o Pai-Nosso como modelo, nos ensina a confiar em Deus e a abandonar os formalismos, cultivando uma relação mais pessoal, filial e afetuosa com Deus Uno e Trino.
Iluminados pela parábola do amigo importuno e pelas exortações feitas por Jesus: “Pedi e recebereis; buscai e encontrareis; batei e será aberto” (v. 9), somos convidados a persistir na oração e a cultivar a confiança inabalável na bondade de Deus. A certeza de que Deus escuta as nossas orações nos faz perseverar e sempre pensar que apenas Ele sabe o que, de fato, é o melhor para nós, seus filhos e filhas. Deus não quer nos dar o que comumente buscamos — coisas ou riquezas —, mas se nos dá em Jesus Cristo e no dom do seu Santo Espírito.
- Relação entre Lc 11,1-13 e Gn 18,20-32; Sl 137(138); Cl 2,12-14
A situação de Sodoma e Gomorra era terrível e digna de um grande castigo. Diante disso, Deus decidiu averiguar, mas Abraão se colocou como intercessor e a favor dos justos, para que não fossem punidos com os ímpios. A barganha de Abraão reflete a sua intenção de salvar os membros de sua família: Ló, sua esposa e filhas. Mas, para além disso, a narrativa quer evidenciar que Abraão, por obedecer a Deus, tornou-se seu amigo fiel.
Deus aceitou descer ao mínimo que Abraão conseguiu chegar: dez justos. O que fez encontra um forte eco no amigo que, na parábola, foi pedir pão para oferecer ao seu hóspede. Como Abraão barganhou com Deus, o amigo insistiu com o amigo até obter o necessário e além. O Salmo, por sua vez, evidencia a mesma realidade, pois o orante não abre mão da sua certeza: clama a Deus e sabe que é ouvido, pois a sua bondade é eterna.
Tudo isso evidencia o sentido da encarnação do Verbo Divino, que culminou no mistério da sua paixão, morte e ressurreição. Paulo encontra em Jesus não um barganhador como Abraão, mas Aquele amigo e irmão que nos devolveu a vida, pagando o preço do nosso resgate, eliminando a condenação que recaía sobre nós, devido à desobediência a Deus e à sua vontade. Com Jesus, aprendemos o que significa ser amigo de Deus: fazer a sua vontade em nossos pensamentos, palavras e ações. É nossa prova de amor a Deus e ao próximo.
Considerações finais
Decidir ser dependente de Deus não significa cruzar os braços, mas trabalhar incansavelmente pela promoção do seu Reino, na obediência incondicional à sua vontade, reconhecendo que Ele sabe de tudo de que temos necessidade. Em sua previdente providência, Deus quer encontrar em nós não só as boas disposições para receber o que pedimos, mas a firme convicção de buscar e querer que a sua vontade se cumpra em nossa vida.
Se Deus é bondoso e generoso para conosco, então não podemos deixar de imitá-lo, sendo igualmente bondosos e generosos com o nosso próximo, seguindo o exemplo de Jesus, nosso Bom Samaritano. Isto se traduz em palavras e gestos de generosidade, perdão, paciência, fraternidade e disponibilidade em tornar o mundo melhor, começando pelo lugar em que habitamos, pondo-se como Maria de Betânia: aos pés de Jesus Cristo.
Aprender a orar, com Jesus, significa encarnar os seus próprios sentimentos, pensamentos, palavras e ações, isto é, fazer da própria existência, e de tudo o que ela comporta, vida de oração pautada no Pai-Nosso. Que nossa oração seja constante, confiante, filial e receptiva, para que Deus realize em nós a sua santa vontade.
Padre Leonardo Agostini Fernandes
Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá-RJ
Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio